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"Explicação é para porteiro"

Foto do escritor: GabrielGabriel

Essa frase que dá título a esse post está escrita no meu "Livro do Bebê": quando nasci (1979 do nosso senhor) não havia OneDrive, nem pen-drive, nem celular, nem Rolo de câmera (esse havia, mas era físico e não um apelido para uma seção de um app do seu aparelho de comunicações portátil). Era muito comum as famílias terem livros de capa dura a servir como álbum - manual - de fotos e assim como era comum haver esse "Livro do Bebê", que era uma espécie de álbum como esses, porém dedicado aos registros iniciais sobre os mais novos integrantes das famílias.


No "Livro do Bebê" - mistura de caderno de notas, com álbum de fotos, com depósito/banco de dados genético (havia espaço com um compartimento de plástico, tal um envelope embutido em uma das páginas - para guardar uma mechinha de cabelo da criança) e espécie de diário da mãe gestante, haviam notas sobre "Meu primeiro banho", "Com quantos quilos eu nasci" (eu, no caso, 3 e pouquinho, não era muito grande não), espacinhos para registros e fotos dos períodos da gravidez e coisas assim.


Na seção inicial onde deveria ser preenchido "Meu nome é" (Gabriel) e o "Motivos que Papai e Mamãe escolheram esse nomezinho", essa segunda assertiva ganhava essa resposta já mencionada, com a letra do meu pai.


***


Falei muito rapidamente sobre David Lynch - meu diretor favorito, realizador do meu filme favorito ("Blue Velvet") e uma das pessoas mais inspiradoras para minha consciência e formação dentre todas do planeta - no post da semana passada, sobre Los Angeles e meu fascínio respectivo. Não haveria como não, sobretudo a partir do fato de que a Los Angeles (e a própria Hollywood) que ele retratou ser uma das tônicas constantes de alguns dos seus mais ousados trabalhos ("Lost Highway", "Mulholland Drive" e "Inland Empire") e ajudar vividamente a compor essa minha predileção já exposta.


Lynch tem uma filmografia fascinante onde por vezes (explicação mais comumente aceita) histórias têm trechos de sonhos (e/ou delírios) se interpelando entre a realidade ajudando a compor a narrativa.


Dois dados curiosos:


Lynch nunca evidencia de uma forma tão afirmativa que há o componente do sonho se opondo ao da realidade em partes distintas ou definidas dos filmes - embora faça sentido (seria esse o objetivo? meta-pergunta) - pensar o fio da meada do roteiro e da proposta assim (no caso de "Mulholland Drive" é inclusive um tipo de explicação "oficial" tida por canônica). Lynch nem sequer deixa claro que há o fator 'sonho' envolvido;


E: Lynch parece interessado em ver a coisa pela perspectiva do sonho e de quem o sonha, e não pela de quando esse sonhador desperta - ou pela nossa que vemos de fora. Ele está interessado na mensagem e não em sua tradução (o que não significa que é um puro non-sense imagético sem qualquer propósito senão a beleza, o torpor ou o horror visuais, mas, sim de que há uma mensagem passada que não necessariamente tem como ser traduzida ou que pode perder demais no câmbio com a moeda da racionalidade se assim o for).


Um dos fatores críticos (e que me deixa curioso sobre como a obra de Lynch pode ter sido tão sentida por um número de pessoas que extrapola, e muito, a condição do 'cinéfilo' padrão-básico) é o fato de que ele parece avesso a essa era inclusive naquilo que mais catastroficamente e tristemente a definem: o fato de que as pessoas, neutralizadas em termos criativos por um universo de conteúdos e veículos que é estrito, limitado, pobre e mercadologicamente (no eixo emissor e também no receptor) necessariamente rápido e rasteiro, precisam cada vez mais do único item com o qual o diretor pareceu quase nunca negociar: explicações lineares, curtas, de assimilação mal mastigada e que carimbam resumos de um fator para serem apreendidos durante uma espera em uma fila ou um trecho mais longo de elevador.


Pode parecer uma coisa ligada à ânsia de um professor nascido no último ano da década de setenta (faça os cálculos) no que diz para com a velha (porém necessária) reclamação de que o imediatismo vai destruir tudo e todos. Em parte é isso, sim. Mas: é espetacular como nesse quesito se pode ver que apesar dos assentidos acúmulos de sabedoria a partir de ciência, experiência e reflexão, o lógico (que seria evoluirmos com o uso e a predileção desses quesitos) é suplantado pela materialidade canhestra da faticidade: em vários e básicos quesitos, estamos piorando de modo geral. Interpretação de texto e capacidade de abstração são dois desses (cruciais).


A lógica da velocidade dos "vídeos curtos" e explicações cada vez mais resumidas (há vídeos rápidos - tal e qual a regra da onipresença pornografia na web - sobre basicamente tudo o que há), obedecem, ao fim, a uma lógica de consumo e de estética que alimenta, se alimenta e retroalimenta essa própria matriz. Seria fácil usar a cartada de culpar "o mercado" enquanto ente abstrato, mas a verdade é que a engenharia é mais complexa envolvendo nossa própria forma de ser e estar no mundo (sempre enfatizo a questão imaterial e cognitiva do capitalismo como fundamental: a disputa não é pelo nosso papel de consumidores e sim sobre quem somos, o que pensamos - e pensaremos - o que desejamos e de que forma tudo isso pode ser mais e mais previsível ou capturado). Há esse universo todo de conhecimento que ultrapassamos tal um lago apenas pela borda mais rasa, sem qualquer mergulho exploratório, porque, entre outras coisas, já somos assim e é assim que assimilamos uma forma correta de postura (sempre digo aos meus alunos que é verdade que eles conseguem fazer/prestar atenção em três ou quatro coisas ao mesmo tempo, da fato. Claro: mal, em todas, uma vez que se pode distribuir atenção, mas não como um microprocessador ou o Dr. Manhattan como se de fato uma duplicidade ou multiplicidade de consciência fosse possível. Um olho no gato, outro no peixe. Mais olhos não há, então, gato ou peixe, terão para si algum ponto cego de descuido, invariavelmente).


Há alguns anos se popularizou (com razão) a crítica quanto ao fato de que tratamentos/práticas mais lentas e profundas (e doloridas) como as análises psicológicas e/ou psicanalíticas perderam espaço para o imediatismo dos fármacos e de outros milagres instantâneos supostos. Ninguém quer: 'perder tempo' conversando e refletindo - e amadurecendo. O lance é maquiagem e doping. Lifting mental e estímulo. Hoje em dia a coisa se agravou para todo e qualquer campo e em termos de leitura e consumo cultural, a ordem é resumir tudo, adiantar tudo. Streamings com opção de "alterar a velocidade" do filme são vistos como algo que não parece ser a aberração que é. E as explicações. Muitas explicações. Tudo explicado. Tudo minuciosamente descrito.


Ai de se arriscar com uma cumplicidade ou com uma fagulha acesa de referência para quem lê, vê, ouve. Tudo tem de ser dado em forma padrão. Tudo o que você absorve já vem com as orientações típicas. É tudo um contrato de adesão que você alegremente assina, e no qual você se vicia rapidinho.


Vídeos rápidos/curtos não são absorção curta e rápida de conhecimento, na mesma medida em que olhar para quatro telas com uma falsa simultaneidade e dizer estar "acompanhando" quatro programas ou filmes diferentes. Da mesma forma, é de se questionar o quanto se está de fato aprendendo ou - pior - entendendo algo - na medida em que é quase uma exigência atual dos produtos culturais que eles apenas entreguem, apenas direcionem, não permitam qualquer espaço para o receptor. Mais: o próprio receptor exige e não se contenta com absolutamente nada que não seja uma entrega full de absolutamente tudo - sobretudo do 'sentido' das coisas que deva eventualmente ser simbolizado e do que deve ser ativado em termos afetivos. Pobreza.


É desse mundo que um cara como Lynch partiu, sendo, paradoxalmente, ovacionado por muita gente. Coisas que é melhor não tentar explicar.


UM FILME: separe um bom drink (se você for de), se aconchegue no sofá e dê play em "A estrada perdida" ("Lost Highway", 1997). Se nunca o fez - ou mesmo se já o fez, embora há tempos. Deixe o filme chegar até você. Não o interrogue.


UM LIVRO: "Em águas profundas" é o suposto livro de David Lynch sobre meditação onde ele não quer falar sobre filmes, séries, roteiros e intenta fazer uma espécie de propaganda voluntária da prática e suas vantagens, numa espécie de almanaque chinfrim mesclada com lógica de coach motivacional. Mas é claro que: em mais franjas e respiros onde ele mesmo admite claramente, vazam generosas informações, fluxos de consciência e curiosidades sobre seus filmes e sobre a imagética fascinante de seus trabalhos (não há, lógico, muitas explicações no sentido cartesiano, mas são gorjetas deliciosas que ele dá em meio a - sorry - muita papagaiada de branco semi-deslumbrado com papo transcendental).


UM DISCO: a trilha sonora de "Veludo Azul" (Blue Velvet, 1986) é um dos resumos da verve lyncheana. Traz o sombrio instrumental orquestrado pelo seu soul mate Angelo Badalamenti (que ficaria famoso pelo trabalho com Lynch nas peças sonoras marcantes de "Twin Peaks" anos depois), convivendo com pérolas pop como "In dreams" de Roy Orbison, a canção que inspirou o título do filme, por Bobby Vinton - e também pelo pré-dream pop enigmático de Jullee Cruise (que também viria a ser notável em "Twin Peaks")

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