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  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • há 7 horas
  • 12 min de leitura

Estava ponderando entre comentários e replies em uma boa discussão que vi na web esses dias - sim, elas não só existem como merecem um parênteses, abaixo


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(parênteses)


Por favor, repense a cada vez que você foi fazer uma queixa genérica, remetida ao cosmos, sobre a suposta 'baixa' ou 'deprimente' qualidade do que se vê nas redes sociais: salvo questões de direcionamento explícito de plataformas - mais ou menos rente ao que vou expor nesse texto - você escolhe a) quem/o que você 'segue' e, especialmente, principalmente, retumbantemente, b) quem/o que você elege para o que vai dar muita bola e com que gastar muita energia.


Sei lá, você não é uma vitima 100% alheia e sem agência - vide especialmente item b)


<parênteses, fim do\>


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(outro - mini - parênteses)


Estou estudando textos de Nick Land para um projeto que quando "vier aí" eu conto mais sobre.


Por hora basta saber que: 1) é um verme 2) meu intuito é utilizar ele como ponto de crítica e 3) negar que em algum momento ele fez boa filosofia, teve ótimos e originais insights e tem/tinha conteúdo seria simplesmente mentira e despeito - tem a ver com o que virá nesse texto, da mesma forma, só queria pontuar.


<idem/>


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Então, as redes:


Era uma discussão sobre a hipocrisia da mentalidade conservadora-neopentecostal em criticar todo e qualquer pedaço do Oriente Médio fora das fronteiras israelenses (em um símbolo dessa união cabulosa entre evangélicos de show-church com o sionismo old money brasileiro) como um lugar que despreza e aniquila minorias como a população LGBTQIA+ e subjuga mulheres, quando essas são as próprias plataformas dessa gente. Disso resulta tanto uma 'defesa' de ocasião das liberdades que não serve de fato para modificar nada em relação a elas, senão que para atacar outras categorias eventuais (ex: islâmicos) de forma difusa.


Aí poderia residir um bom começo de uma discussão de 'apartar', como quem filtra, discurso - sujeito discursante, emissor - bravata ou mesmo a tão combalida ladainha da separação entre "autor e obra". O problema é que, essa última, parece só existir (e: na exclusiva forma de ladainha) em um (único) caso, em um (único) contexto, em relação a uma autora e uma (única) obra. E aqui começam nossos problemas.


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É por não aguentar mais esse papo remansoso que tenta morder a própria cauda, em looping que eu retomo uma fórmula que eu já publicizei, aqui e ali - simbolizado em três perguntas (e alguns adendos):


É simples, e é assim: o autor(a) de quem você fala - primeira pergunta - é famoso(a) por quê? Sim, porque se estamos diante de alguém que simplesmente 'tem opiniões' que vão do babaca light ao constrangedor nível morte, talvez sua obra não seja símbolo nem estandarte das mesmas nem de algum outro cavalo de batalha canhestro que a pessoa tenha consigo.


Vejam o caso do cara já semi-calvo - na alma, o que é pior do que ser careca, no sentido material, o que não tem nenhum problema - que chega ao vale sinistro entre os 40 e 50 ainda curtindo muito as canções pré-adolescentes do Ultraje a Rigor - a banda que virou animadora orgulhosa de auditório de um fascista, Raimundos - um símbolo do ressentimento infantilóide loser-incel encarnado pelo vocalista Digão ou, até há pouco, admirando o Lobão - um sujeito que abriu mão de um portfólio de respeito para terminar rejeitado até pelo olavismo. Por que você fala nesses três nomes hoje em dia? É mais por alguma idiotice proferida por algum deles em algum mesa-cast, ou post, certo? Mais do que por lembrar de alguma canção ou ter visto alguma apresentação, isso? Bem, aí está um indicativo - e um guia.


Fagner, um bom exemplo (pelo simples fato de que eu gosto dele e esse blog é meu): fez campanha anti-petista sempre que pode, desde que o mundo é mundo (embora haja controvérsias se era mais um dos 'arrependidos' na última eleição), mas não vemos sua música ser cooptada nem ele tratando de colocar esse tipo de coisa antes dela. É um cantor - e talvez você sequer soubesse de seu viés eleitoral antes de ler isso. Quem fala dele (alguém ainda fala?) o recorda como músico. E só. Outro guia (PS: sim, sei da rivalidade com o Belchior, e prefiro imensamente o Belchior, mas não vem ao caso).


Há quem você simplesmente não possa - por uma questão de imponência e influência do conteúdo - simplesmente fingir que não existiram: quando se fala na filosofia de Heidegger ou nas ideias jurídico-políticas de Carl Schmitt, por exemplo, você está falando (no caso do primeiro) de alguém que aderiu ao Partido Nazista na época de sua ascensão e/ou de alguém (no caso do segundo) que teve um papel ativo na burocracia e nos altos escalões administrativos alemães no período (e até 'adaptou' sua teoria e suas lições para dançar conforme a música). Ambas obras são incontornáveis em seus nichos de pesquisa e basicamente marcaram tudo o que veio depois, quando não se oferecem como um ponto na estrada dos debates afins de onde não se pode passar sem pagar algum tipo de pedágio. Eles se colocam obrigatoriamente como um "tópico" - nem que seja para ser objeto de crítica (embora a magnitude e a influência de seus pensamentos fazem com que haja um paradoxo, eis que se você acha que eles seriam um mero saco de pancada do ponto de vista moral do que algo a considerar 'atravessar' ou 'enfrentar', você possivelmente está errando). É um pouco mais difícil no caso de Schmitt e sua ostensividade, mas é perfeitamente possível falar de Heidegger (não que eu goste) sem esbarrar francamente nesse fato sinistro (ainda que momentâneo) de sua biografia (não que eu queira).


Não neutralizei o Caetano Veloso da minha vida nem depois daquela manifestação ridícula de apoio ao "Juiz Bretas", não vai ser agora que ele perde cinco minutos sofridos de seu show atual com aquela dureza de música ruim de culto. Nem em relação a todos os posicionamentos errados e meio cringe que já teve (e, sabemos, como dois e dois, que ainda lhe restam alguns anos para ter mais outros). Quando se fala dele, não se perde em nada ao passar por cima desse tipo de coisa.


Ou seja: não procure pelo em ovo. Alguns até tem, mas, assim, mesmo? Esse desgaste todo? O que é maior, aqui?


Ou seja: há gente com equívocos simplesmente superáveis ou desprezíveis, e outros onde é possível (ou há que se) separar obras ou fases, tranquilamente.



O que a pessoa efetivamente faz - segunda pergunta - com a sua vida e sua obra - e os cruzamentos entre ambas? Uma importa para a outra de forma crucial?


É perfeitamente possível acusar Roberto Carlos e a maior parte dos integrantes da infame "jovem guarda" de serem frouxos perigosamente alienados entre o mau-caratismo e a tolice. O próprio "Rei" por várias vezes já se declarou "de direita". Mas: ele estampa campanhas e mete seu capital e sua cara nesse tipo de pataquada expressa? Os motivos para alguém gostar dele - e/ou aqueles para alguém desgostar - não passam primeiro (ou quase exclusivamente) pelo seu style do que por outras coisas de sua vida intelectual e pessoal que até hoje são meio nebulosas? Ou seja: tranquilo, em meu ver, achar a pessoa péssima e a obra massa.


(E veja bem, não peço arrego, salvo conduto, nem que você dê uma chance para escutar o "Rei", apenas lembro que: 49% do Brasil votou em Bolsonaro em 2022. Você odeia, odeia mesmo, odeia-raiz, todos esses? Não há contemporização para ninguém? Isso é tudo o que importa? Dependendo você está falando com uma boa porcentagem das pessoas que faz parte da sua vida. Você vive mentindo, então?).


Ney Matogrosso - que pode ser tachado de qualquer coisa (literalmente, eis que um dos motes de seu trabalho) - menos de burro, fascista, conservador ou qualquer outro epíteto desse tipo já escutou muito por ter declarado uma vez que, desgostoso com os rumos do país pós "Mensalão", não havia apoiado o PT em uma eleição presidencial dentre as últimas (creio que a de 2014). Igualmente, "escutou" porque lançou certa vez uma conversinha liberalóide, meio 'Morgan Freeman", de que não queria "rótulos" - de gay, por exemplo - porque era "uma pessoa" que não queria ostentar definições e bandeiras - mandaram ele "ler Judith Butler", no Facebook.


É sério que você - em um debate como esse - considera Ney Matogrosso alguém que (a) não tem cadeira cativa ao seu lado e (b) alguém que precisa provar algo em termos de afirmação sexual e/ou alguém que (c) eventualmente não tem legitimidade para dizer algo que não bate 100% com o que você esperava?


(Daí vem outro problema contemporâneo dos Enzos que basicamente choram diante de nuances e divergências - mas isso é outro capítulo)


O conservadorismo machão meio redneck (ainda que californiano) do Metallica é na maioria das vezes inócuo (ainda que aqueles papos da cobrinha ancap e algumas mensagens nas músicas sejam curiosos e engraçados símbolos de uma tentativa de politização chinfrim e meio pueril), bem como o é o tom quadrado e cafona adotado nas falas dos membros do The Who (que certa vez diziam que esperavam morrer antes de ficarem velhos - risos). Dá para separar, simplesmente, não fará mal a uma mosca - e não, você não quer ficar embretado nessa mosca purista que inviabilizaria muita coisa ao nível paranoico.


Lemmy, do Motorhead, em um documentário sobre sua vida, que leva seu nome (2010), exibe, e comenta com ênfase sobre, sua coleção de memorabilia das grandes guerras (temas bastante explorados pela banda, inclusive). Bandeiras com a suástica (entre outras, bem verdade) causam imenso desconforto em quem assiste o filme, bem como a sequência meio patética em que ele vestido de soldado alemão vai visitar um sítio onde é possível passear com tanques de guerra. A fraquíssima (e bem confusa) desculpa esfarrapada que ele dá, argumentando que "se o exército de Israel tivesse os uniformes mais legais, ele iria colecionar eles como faz com os alemães" e que "ele, caso fosse nazista, seria o mais incongruente de todos, dado que já teve seis namoradas negras" é penosa de engolir. Mas, melhor ficar com outras evidências inegáveis: ao olhar para quem é esse sujeito, como levou a vida, de que forma se postou cotidianamente, e o que ele deixa de legado, talvez possamos crer que um legítimo representante dessa turma aí veria nele um inimigo e um opositor (inclusive estético). Gosto de Motorhead, mas em minha opinião, convém dar uma 'separada', sim, se querem saber.


Ok, Gabriel, "e o ator/diretor aquele (lato senso) que foi condenado por estupro, ontem?" Bem: se um cirurgião for condenado por estupro os pontos das cicatrizes de todas suas intervenções de qualidade anteriores não se abrem automaticamente. O que já está feito não pode ser retroagido à moda orwelliana. Talvez você deva querer esse sujeito punido criminalmente e talvez seja constrangedor para a gente ter que aduzir uma nota de rodapé a cada vez que mencionamos aquela obra prima (ou aquela cicatrização que nem se nota). Talvez tenhamos que propositalmente extinguir o prestígio que iremos conferir ao sujeito, mas lembre-se que é bem diferente admirar um trabalho já realizado em um contexto anterior, de passar por cima de coisas aterradoras para admirar um trabalho em curso ou futuro (o que não é fácil em relação a pessoas que operam com o prestígio como um fator essencial). O terreno aqui muda de lugar: a discussão não é entre autor versus (vida e) obra e sim aquela sobre que tipo de chances merecem os condenados frente ao teor de suas penas e crimes praticados e como lidar com isso. A obra segue lá, e segue genial, não sendo necessário negar infantilmente isso, mas, igualmente, não sendo necessário ficar jogando confete a esmo para canalhas.


Terceira - e quase última pergunta - quando há mescla efetiva e proposital entre vida e obra, tem como argumentar algo?


Alguém como Puff Daddy é intrinsecamente inseparável de ficar tagarelando sobre um estilo de vida que basicamente é o único assunto que possui e a única coisa da qual se (retro)alimenta. Ao saber que na materialização disso, entravam no pacote aliciamentos e estupros como parte das "atrações" de uma "grande festa ininterrupta", talvez seja o caso de dar adeus às canções (existem?) ou às produções que você admira(va) (oi?) em relação ao rapper (sic.).


Mas, já que falávamos em suásticas e iconografias quetais:


Caso mais agudo é o de Kanye West - de quem graças a deus, juntamente com Morrissey, nunca fui fã e não precisei 'abandonar' nem 'cortar na carne' nada pelas cretinices onde se enfiam (dois problemas a menos): sua excentricidade era motor criativo e virou um caos tragicômico e psiquiátrico e não me parece possível de sustentar sua diatribe nazista como 'loucurinhas trendy' de um malvado favorito fazendo style (coisa que alguém insuspeito nesse viés, como David Bowie, certa vez fez - deixando claro que estava fazendo um comentário-crítica-performance vivendo uma persona - o que acho bastante infeliz, mas compreendo como proposta).


Erza Pound tem todo um cabedal magnânimo que o faz um cânone gigantesco da poesia no mundo, sendo uma espécie de divisor de águas antes de, digamos, pirar absolutamente na década de 20 do século passado, se mudar para a Itália, virar um dos maiores difusores de propaganda fascista de que se tem notícia e embarcar com fulgor em toda e qualquer oportunidade de engrossar seu rol de adesões políticas grotescas com tudo o que estava nessa gaveta. Há, hoje, grupos supremacistas que o honram e levam seu nome. Provavelmente é possível absorver o que Pound fez até esse momento sem estar 'contaminado', mas ao contrário do que se disse aqui quanto a outros, talvez seja até inconveniente querer 'separar' algo em relação a alguém que morreu convicto e orgulhoso de ser um símbolo da idiotice, mais do que qualquer outra coisa que tenha feito. Ele que se enterre no buraco que passou a maior parte da vida cavando. Tem mais poesia por aí.


Hoje em dia algumas personalidades internéticas (e apesar de músico consagrado, isso aqui cabe para Kanye) basicamente não apenas não se diferenciam nesse quesito como, ao contrário, sua fonte de renda é uma curiosa junção (quando não transposição pura e simples) de sua vida cotidiana para uma tradução publicista de 'conteúdo'. Não creio que haja como promover qualquer tentativa de separação entre alguém cuja vida em si é sua 'produção' da mesma em sentido material. Aqui não há persona - ou só há, o que dá num estranho mesmo.


Lembre-se que tem quem goste (e como tem) de influencers, podcasters, YouTubers, comediantes - e outros - justamente pela canalhice que eles promovem. Ela é o seu meio de transporte. Não há porque perder tempo procurando 'separar' nada de casos extremados que sequer o querem - e sequer se importam com o que você está achando (quando não usam isso como combustível para a engenhoca). Melhore seu gosto pessoal.


ADENDO N. 1 - a senhora do Harry Potter:

Bem. Há uma mulher que usa a fortuna que descobriu como petróleo no quintal oriunda de todos os royalties de um universo inventado de sua cachola para ostensivamente diminuir pessoas, deslegitimar pessoas, agredir pessoas e tentar varrer da face da terra pessoas por uma discordância de vivificação de gênero e orientação sexual. Pelo amor de deus. Ela afirma que usa - e usará - seu dinheiro para isso. Não há nuances nem dúvidas. Acho (e só acho) que parar de fazer qualquer coisa que renda dividendos vindouros para uma asquerosa como essa é algo sem discussão e que precisa ser imediato.


Daí vem o Adendo do Adendo: você, assim, quem sabe, tipo, só sugestão, viu?, que, porventura, talvez, argumente que é 'muito difícil' parar de consumir mais e mais elementos relativos a essa "franquia', para além da questão da memória afetiva e preferências pessoais, não acha que é meio demasiado lastrear toda sua personalidade em torno de um punhado de livros e filmes que marcaram uma etapa da sua vida (de fato), mas que estariam causando um entrave ético e psíquico? Em outras palavras, um pouco mais duras: vamos superar essa merda de uma vez?


A boa notícia é que tudo que "Harry Potter" eventualmente tenha dado a você continua lá. Agora, sinceramente: trabalhar como se o mundo lhe devesse algo - tal e qual uma indenização - por você ter que perder "o chão" ao dar às costas ao "bruxinho" e seus amigos não é um pouco demasiado, como se preferências, ícones e imagéticas não pudessem (e não, por vezes: devessem) morrer como plantas e até pessoas? "Tudo passa", diz a tatuagem no pescoço do Neymar.


Não se preocupem com discriminação com os candidatos a alunos de Hogwarts: vale tudo o que eu disse para Star Wars, "bonecos Marvel" e toda e qualquer coisa que as pessoas parecem não saber simplesmente curtir/fruir sem que aquilo vire um core religioso hipnotizante. Você 'gosta' das coisas, as ama, mas não lhes 'deve' sua vida.


ADENDO N. 2

Esses dias, também, postaram no Bluesky (a título de galhofa) um anúncio desses - moda antiga - recrutando instrumentistas para uma banda de rock que traria influências e cuja proposta seria algo como "ser um Rage Against The Machine" mas com o "intuito de propagar as ideias do liberalismo e do anarco capitalismo". Bem. Não é preciso dizer que quando a obra é nada mais do que um panfleto para o autor, ela é geneticamente ruim.


Sem comparações alarmistas e bobas com o exemplo ridículo acima, mas é impossível que as pessoas falem nesse assunto e não lembrem de um binômio fascinante que é o quão são chatas e sonolentas as músicas-discurso-óbvios-ululantes do rebelde e "extremista" de esquerda Roger Waters em sua carreira solo, bem como são enfadonhas e caricatas as músicas de elevador do que restou do Pink Floyd chefiado pelo bastião neoliberal David Gilmour. Juntos, eram sublimes (e não, não venham dizer em uma análise retroativa que sempre gostaram da banda apenas pela verve e postura de Waters - está provado que ele sozinho é um avião de uma só asa).


Do mesmo modo, a leva de artistas que surgiu no (e parece ter sido drenada pelo) limbo do ForaTemerCore é pavorosamente chata: darling, adoro seu posicionamento e conto com seu voto na urna, mas não me peça para ir em seu show se além daquela postagem linda falando coisas como "minha corpa" ou mandando o dedo para candidatos do PL, você não tem talento e inventividade para me oferecer. "Ser de esquerda" (de modo altamente amplo) ou "ter Feito o L" não pode ser seu exclusivo background, né?



UM LIVRO: ---------------- (Fanged Noumena, do Nick Land, mas avisei - ou quase - o porquê)


UM FILME: "The Shrouds" o novo do Cronenberg é: ruim. Simples assim. Demorado, burocrático, sem carisma e com tensões gráficas e sexuais não-excitantes e sem carisma nenhum. Bem diferente do que o diretor sempre entrega (há inclusive referências/alusões/cópias requentadas de momentos de Crash - 1996 - que não funcionam senão como citação meio sem inspiração: veja a cena da transa entre Vincent Cassel e Diane Kruger e a cicatriz constantemente ostentada por ao menos duas atrizes no filme).


UM DISCO: "I quit", uma coisa meio música de rádio comercial, meio tentativa de pop chiclete, meio anos 90, atingindo alguns despenhadeiros quase 'Revista Capricho". As irmãs Haim podiam mais (embora haja momentos joia).


  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 20 de jun.
  • 9 min de leitura

A cama tremeu.


Parecia algum tipo de equívoco sensorial causado por algum movimento de eventuais molas no colchão, ou engano dado movimento das pernas. Eu estava de bruços, tv ligada, eventualmente teria me confundido.


Achei estranho e fiz aquele silêncio típico das pessoas que querem prestar atenção em algo, como quem desliga o rádio para estacionar melhor (em tese nenhuma relação, mas: sabemos), e permaneci estático.


A cama tremeu de novo instantes depois. A cama, o chão, as cortinas. O quarto. Estava de bermuda e camiseta de dormir. Desesperado, desci pelas escadas - o quarto era no segundo piso - e cheguei à Recepção aflito (não lembro se cheguei a calçar sapatos) e comuniquei o fato ao sujeito no balcão. Ele, sem tirar os olhos do monitor, mexendo no mouse respondeu, aborrecido: "É, deu uma sacudida. Desse tipo acontece bastante".


Foi talvez um dos terremotos mais suaves da história da Guatemala. Mas: foi meu primeiro terremoto.


Olá: meu nome é Gabriel e assim teve início um dos dias mais malucos da minha vida e - acredite - o terremoto não foi exatamente a parte mais excêntrica dele.


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Desde 2017 faço parte do corpo docente de um curso de Maestría em Criminologia na Universidad San Carlos, Guatemala, capital. Esse tipo de curso, na USAC (é a quarta mais antiga universidade das Américas) costuma ser repleto de professoras e professores dos mais variados cantos das Américas do Sul, Central e México - além de gente da Espanha, igualmente. É uma oportunidade incrível de troca de experiências, de poder lecionar em outro idioma, de conhecer outras paragens (a Guatemala hoje é, matematicamente, um dos países onde mais estive) e de escutar sobre outras visões - acadêmicas e de mundo, em si.


O módulo consiste em uma semana onde ministro aulas das 17h30 às 21h no horário local (três horas abaixo do nosso fuso brasileiro - geralmente eles me encaixam em algum voo que chega domingo de tarde e parte no sábado de manhã seguinte: de Porto Alegre são seis horas direto até o Panamá e de lá mais quase duas até o La Aurora). Na maior parte dos dias eu fico livre para desfrutar as benesses do ótimo hotel em que sempre me hospedam (jamais pensei que me transformaria em um tipo desses, mas: a academia do hotel é de primeiríssima linha e sou cliente habitual) e para passear pelas redondezas (estrategicamente perto de uma excelente cafeteria e da loja oficial da Zacapa, o melhor rum do planeta inteiro).


Por vezes, há algum compromisso com a universidade, como, por exemplo participação em algum seminário ou debate e, bem, digamos que era uma ocasião dessas naquela manhã de algum dia qualquer de junho de 2018 - para a qual houve convite excepcional para participação em Bancas examinadoras de Teses de Doutorado. Estava rolando Copa do Mundo e nos mais aleatórios horários passava algum jogo na TV. Havia um (não recordo qual) durante o café daquela manhã onde ocorreu um mini terremoto e eu, ainda nervoso, mal e mal engoli alguma coisa e tratei de vestir um terno logo em seguida. Eu e um professor mexicano da Universidad de Puebla iríamos ser apanhados pelo motorista cedo para irmos até o campus e participar da avaliação de dois trabalhos de doutoramento (me foram inclusive enviados, fisicamente, pelo correio semanas antes)


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No caminho, o professor parecia muito mais aflito com a situação da definição da classificação do México para a fase eliminatória da competição do que com o eventual terremoto júnior, que revelou ter sentido, fazendo igual ou menos caso que o recepcionista (era um dia em que eles perderam de 3x0 para a Suécia e a cada gol, via alerta no aplicativo do motorista programado para acompanhar o minuto a minuto da partida, o mexicano desfalecia em lamúrias). O motora (o conheço desde a primeira vez que estive lá - sujeito querido, mas de pouquíssimas palavras) parecia também mais atento ao futebol do que em comentar uma tremidinha corriqueira no solo.


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Após trajarem-nos de forma altamente pomposa e protocolar, com togas e chapéus com detalhes vermelhos, os organizadores nos conduziram à sala dos exames, em uma mesa de madeira antiquíssima e elegante, e procederam-se os debates jurídicos sobre os trabalhos e suas respectivas defesas. O primeiro era um rapaz que fez um compilado inacreditavelmente grande sobre as formas alternativas de resolução de conflitos que poderiam dispensar a lógica padronizada dos tribunais. A segunda, era uma mulher na casa dos seus 40 anos, que discorreu sobre tipos penais e lógica de enquadramento de acusações de corrupção.


Em meio à apresentação dessa segunda candidata, fiquei sabendo que ela era juíza na capital e pude notar que no momento da sua vez de tomar a palavra, entraram na sala um senhor mais velho de cabelos grisalhos e dois tipos carrancudos vestindo terno preto e óculos num pique men in black (a sala ficou vazia durante a apresentação do primeiro, que foi embora assim que se encerrou sua avaliação).


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Feitos os cumprimentos (a candidata foi aprovada) o senhor grisalho pediu a palavra: era o pai da agora Doutora, um ilustre advogado tarimbado do país, que fez algo como que um discurso louvando sua filha. Digo 'fez algo como' porque o sujeito falou por cerca de dois minutos e eu basicamente não entendi nada. Nada. Zero.


Considero que sou bom com língua espanhola e mais ainda quando se entra no modo Guatemala-visitante, quando o idioma é tudo que se escuta por uma semana inteira (o cara chega a falar sozinho em espanhol, acredite - não raro). Mas, o fato é: jamais tinha escutado um sotaque e uma pronúncia daquele jeito. Não compreendi nada fora de algumas palavras soltas - e o nome da filha, em meio ao falatório do homem.


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Percebi que qualquer movimento na sala agitava os men in black presentes e que a menção de todos deixarem o recinto os fez saltar rapidamente dos assentos e conduzirem uma checagem estranhíssima da porta e dos corredores.


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Na sala onde nos desmontamos das togas e estávamos assinando as papeladas atinentes ao protocolo, fiquei sabendo de duas coisas:


A juíza, em questão, era basicamente uma das pessoas mais famosas da Guatemala. Ficou conhecida por ser persona non grata ao condenar e mandar prender acusados de corrupção em esquemas de fraudes públicas na capital, fora mandada para uma comarca próxima ao México onde conduziu julgamentos de narcos perigosos, tirada de lá por sua segurança e enviada para uma comarca onde bateu de frente com grileiros locais (estamos contabilizando já o terceiro grupo que a jurou - literalmente - de morte), e atualmente trabalhava em um rumoroso caso onde uma família de um empresário russo que havia fugido de seu país por estar em maus lençóis com o governo Putin estava preso por uso de documentos falsos para forjar uma cidadania guatemalteca, e cuja família estava movendo campanhas de difamação contra ela na web, dizendo ter provas de que ela e outros órgãos guatemaltecos agiam perseguindo-os (à mando e pagos pelo governo da Rússia).


Meio espantado e nervoso, brinquei que teríamos corrido 'risco de vida' em realizar essa banca hoje e ninguém riu. "A sala foi inspecionada pela equipe de segurança da juíza e a janela atrás da mesa da Banca foi considerada uma das menos propensas para haver o enquadramento do espaço por algum sniper próximo", me disse o coordenador do curso de forma bastante séria. "Poderíamos fazer em um gabinete mais fechado, mas não queríamos que a doutora se sentisse aqui também sitiada como costuma viver nos últimos tempos". Passei cerca de duas horas de costas para uma janela, sentado exatamente em frente onde uma pessoa poderia estar sendo alvo de snipers, real/oficial.


A segunda coisa é que a doutora e seu pai estavam muito felizes e faziam questão de levar eu e o professor mexicano para almoçarmos. Era início da tarde e parte da equipe de segurança da juíza que não estava na sala estava analisando sua camionete preta blindada para um double check sobre eventual instalação de bombas e existência de pessoas estranhas no perímetro do prédio do Direito.


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Houve um impasse na hora da divisão dos carros - o motorista da universidade tinha saído em outra missão - e em um átimo de segundo ficou para mim a decisão se eu cumpria um trajeto de cerca de 25 minutos na companhia de um homem de quem eu não entendi sequer uma palavra, ou em uma camionete Dodge gigantesca com plausibilidade de ser atingida por um míssil vindo de um descampado ou por sicários com metralhadoras antiaéreas desde a caçamba de um caminhão em frente. Como prefiro ser dado como louco (ou mal educado) do que como falecido, optei por acompanhar o senhor e mais alguns dos 'homens de preto'. O professor mexicano entrou na trevosa camionete, e partimos.


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O sotaque do homem era realmente estranho (não parecia o cadenciado e limpo espanhol guatemalteco típico da capital, nem nenhum outro que já escutara), mas, para minha sorte, meus ouvidos se acostumaram mal e mal da mesma forma que nossos olhos, pelas tantas, se acostumam e passam a distinguir uma que outra coisa na escuridão repentina. Foi quase meia hora de uma conversa meio errática, mas sem maiores problemas - nem sequestros.


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Chegamos a um restaurante chique em uma zona mais afastada do centro quase pelo meio da tarde. Os seguranças se dividiram entre alguns do lado de fora e dois que foram "almoçar" em uma mesa não tão colada à nossa - mas também não muito distante. O pai orgulhoso anunciou que eu e o professor mexicano éramos convidados de honra e podíamos comer e beber do que quiséssemos (a essa altura percebi que se tratava de um homem de cacife - e muito fino trato). Bebemos vinho, comemos muito bem - a especialidade da casa eram filés - e conversamos em um almoço que transcorreu sem maiores notas. Dessa vez o senhor nos levou ao hotel enquanto a juíza e seu séquito rumaram para outro lado na camionete-fortaleza, desfazendo-se a comitiva.


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No dia seguinte, próximo ao horário da aula, um auxiliar que trabalha como espécie de 'faz tudo' nos cursos das Maestrías sorriu ao me ver no corredor e disse que eu "estava famoso". Não entendi exatamente a brincadeira, que foi repetida quase com mesmas palavras por outro funcionário da secretaria. Quando a secretária do coordenador veio falar comigo me indagando se eu esperava vir do Brasil para acabar virando tema de discussão na Guatemala, eu tive que - meio consternado - perguntar do que ela estava falando. "Você não viu no Twitter?". Era difícil, naquela época, eu não ter visto alguma coisa no Twitter, mas obviamente assuntos internos da Guatemala não eram minha área de domínio e eu não tinha ainda a dimensão exata do que tinha sido minha tarde do dia anterior.


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Ela me espichou a tela do seu celular e havia um engajadíssimo post da conta do empresário russo que estava preso (a conta - bem como um site dedicado ao tema - eram alimentados por familiares do acusado, que se martirizava como 'preso político' e 'perseguido' e sustentava uma campanha voraz contra a pessoa da juíza em questão). Na tela, uma foto da nossa mesa no almoço no restaurante chique, tirada de uma proximidade perturbadora, onde se viam as costas da juíza e seu pai, e, de frente, eu e o outro professor.


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Imagine, sei lá, no Brasil, no mesmo ano de 2018, alguém ser fotografado, tipo, numa lanchonete com Sérgio Moro e Deltan - é mais ou menos esse o pique.


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Na legenda, uma clara tentativa de fake news que perguntava "o que a grandessíssima baluarte do combate à corrupção no país estaria fazendo em um almoço ~secreto ~em pleno meio da tarde de um dia de semana, na companhia de ~advogados misteriosos?"


Seguiam-se mais algumas fotos onde estava lá eu bebendo um vinho de gabarito e mandando altos papos com a juíza. Os comentários eram igualmente pérolas do sugestionamento que começaram a alcançar ares fantasiosos delusionais: uma pessoa questionou se a impoluta juíza não deveria estar trabalhando para justificar seu alto salário ao invés de estar em convescotes nababescos. Outro disse que "conhecia" os advogados em questão (...) e não eram nada mais nada menos do que os representantes de um réu que fora o único para quem ela havia concedido liberdade em um caso bombástico que havia julgado recentemente.


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Veio uma série de ofensas misóginas e algumas outras galhofas infelizes, como de praxe.


Deitado no hotel, à noite, depois da aula, confesso que dediquei horas que deveriam ser de sono à acompanhar tardiamente o desenrolar do bafafá e procurar ler sobre a situação.


Estava até meio receoso quando do acesso às áreas de embarque do aeroporto (mas passou assim que me uni a um grupo entusiasmadíssimo de locais para ver o jogo Argentina versus França poucos instantes antes da hora da partida).


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Na primeira vez em que estive lá, em 2017, alguns alunos após a última aula, me levaram para jantar, no que se estendeu para um convite para beber em uma boate localizada na surrealmente fantasiosa zona da Ciudad Cayalá (pesquise aí você: renderia, garanto, outro texto) e, de uma sacada no estabelecimento olhava para as luzes da capital pensando "O que poderia ser mais inusitado nessa vida do que eu estar de forma completamente aleatória em uma night na Guatemala?". Mal sabia eu.


UM FILME: assisti "Magic Farm" atraído pela presenta da ídola Chloe Sevigny, que desde sempre é uma referência para mim em termos de coolness. Saí nada desapontado com Chloe (bem pelo contrário), mas maravilhado com a diretora (e também atriz no filme) Amalia Ulman e todo seu trabalho de produção artística e visual que sequer conhecia.


UM DISCO: "Caro vapor II - qual a forma de pagamento" de Don L. Que figura interessantíssima do rap brasileiro é esse cabra. O seu "Roteiro pra Aïnouz vol 2", anterior, já era um petardo magnífico. Abre portas para bossa nova, samba, pop e muito mais, mas mantém a crueza, o veneno e a malandragem 'ruim' nas rimas. Excelente.


UM LIVRO: Guatemala? Não diga mais nada --> "Homens de milho" (Hombres de Maiz), Miguel Ángel Asturias.


  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 13 de jun.
  • 7 min de leitura

Ontem de noite eu estava na estrada - sim, você já sabe - e eclodiram bombardeios em Teerã - sim, você também já sabe - e promessas de respostas a Tel Aviv.


Eu nasci no ano da revolução iraniana que colocou o Aiatolá no poder (ou seja, embora já veterano, assim como vocês eu nunca vi um Irã de outro jeito) e vivi minha infância inteira sob a égide do chamado "Conflito Irã-Iraque", de tal maneira que creio que foi minha primeira experiência de 'hipernormalização': todo dia o noticiário tinha alguma notinha para dar sobre o conflito, de tal modo que desenvolvi minha personalidade meio que achando normal e inescapável o fato de que aqueles dois países se bombardeavam. Era do seu feitio.


Quando uns anos depois o Iraque invadiu o Kuwait logo após eu achar que haveria uma folga de tanto tiro nessas quebradas comecei tunar a percepção de que o Oriente Médio não era para amadores - tudo isso entremeado por Israel, aqui e ali, devastando Beirute de tempos em tempos (que demorei a descobrir que era um lugar lindo e cosmopolita, pois na minha cabeça todas as cidades mencionadas em tudo o que saía sobre a região eram uma espécie de escombros de edifícios mal colocados sobre um deserto árido. A visão de garotas de biquini e caras bronzeados jogando vôlei de praia na costa israelense também me deu tilt, na primeira vez).


De lá para cá, muita coisa em termos do que algum não tão jovem (as gírias: adoro como são incapturáveis e como quando você acha que as domou, elas já são obsoletas) chamaria de uma treta infinita que ultimamente tem uma de suas mais cruéis pontas soltas naquilo que Israel pratica com Gaza sob os olhos covardes do mundo e de algumas 'notas de repúdio' ou posts manifestando 'solidariedade'.


O ponto é que era algo como 23h34 e eu já tinha lido um capítulo do livro de Rodrigo Guerón discutindo Deleuze e Guattari, escutado um podcast (grande Gonzo, e seu trabalho excelente com os debates sobre Fisher no CriseCriseCrise) e já estava farto do videogame (o Manchester United começou meio errático sua jornada na Premier League) e uma vasculhada na web (já amaldiçoou o cara que desenvolveu a interface de "scroll infinito"? Vai lá, porque até ele se arrepende, literalmente - pesquise aí, o brother pediu desculpas já) parecia uma boa para aqueles momentos de quase-Porto Alegre. O que meus olhos cansados viram me inundou de tanta, mas tanta, mas tanta opinião que quase desmaiei tipo uma máquina sobrecarregada real (não 'máquinas desejantes', mais pra desktop antigo superaquecido).


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É uma pergunta irônica mas: como algumas pessoas conseguem ter tantos takes sobre tudo? Claro: seria de se elogiar que em alguns casos certas feras descobriram um conteúdo hormonal que às torna imunes a uma das doenças do século, que é a "síndrome da impostora" (uso preferencialmente no feminino, eis que a incidência é sabidamente maior em mulheres). Pessoal vai lá e simplesmente explana a guerra nascente em detalhes, diretamente de seu Motorola em Embu das Artes.


Sim, estamos todos aqui para dar pitacos, comentar, pegar o microfone por alguns instantes na ágora como naqueles programas em que o auditório faz fila para tentar ganhar algum brinde. Alguns tem tino profissional ou talento inato, para. Mas nos últimos tempos mais e mais a fome e a sede com a qual alguns precisam, quase que organicamente, aparecer e querer pautar coisas maiores que sua barriga e sua cabeça é meio incrível. Não acho que seja parte exclusiva do fenômeno de bancar o sabichão e vencer a "impostora", mais do que parte de uma necessidade já natural de acreditar que tudo, a qualquer momento, deve ser publicado. As pessoas andam com uma urgência meio surreal em 'participar' de algo, de algum modo, sendo a presença ou não de reverberação disso um mero detalhe eufórico.


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Uns dias atrás um camarada achou por bem divulgar na web que havia descoberto um relacionamento extraconjugal de sua companheira com um sujeito do trabalho através de vasculha nas conversas de whatsapp dela, printando detalhes sobre os papos entre ela e o amante e dando informações sobre a agência de publicidade em que ambos trabalhavam e onde viviam o romance furtivo - um trecho especialmente tragicômico do diálogo exposto dava conta de que os amantes, que costumavam se encontrar na escadaria do edifício, na altura do terceiro andar, não poderiam o fazer naquele momento dado que repentinamente apareceu outro colega por ali (situação que teve de ser administrada e seguida de uma mensagem de 'abort mission' ou algo que o valha).


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É bem sabido que esse tipo de atitude vai ocasionar muito mais galhofa e potencial de reversão do que uma eventual solidariedade. A opinião pública tem tendências variadas nesse caso - com destaque para a solidariedade com o apaixonado enganado (pacote básico e clássico), justificação heroicizante para o traidor(a) em alguns casos (pacote advanced, em especial se a amante for mulher e o caráter do companheiro for de tino duvidoso ou visivelmente desprezível), torcida eventual para o neo-casal, e mesmo condenação do terceiro elemento (por vezes o papo furado de que esse apenas está aproveitando uma chance - como se não tivesse qualquer relação factível com a outra pessoa enquanto alguém que está deliberadamente enganando outrem e fosse uma espécie de inimputável moral, no caso - já não cola como se em uma peça de Nelson Rodrigues).


Agora uma coisa é certa: o gambling arriscado com essas posições neutras-idealizadas-iniciais é tremendo no instante em que há dois fatores em jogo: pessoal não costuma tolerar bem a transição de vítima/enganado para alguém proativo quando não envolva reações novelísticas (ex: "dar o troco"), e diga respeito a atividades policialescas que incluem uma nem um pouco saudável bisbilhotice em celular alheio. O traído-vítima vira neurótico, se torna instantâneo vilão e - levado em conta o fator meio caótico da internet brasileira em extrair piada de tudo (mormente com a situação típica de 'corno') - as chances eram imensas para que o brado kamikaze do marido enganado caísse na vala comum da anedota com ele sendo o bobo da corte ou a atração do picadeiro. Foi o que ocorreu.


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Pergunto se não foi igualmente o caso tanto de querer de alguma forma prejudicar os amantes, munido de raiva e desolação (quem nunca?) tanto quanto um fator já inerente da vida cotidiana, que é a pessoa acreditar que qualquer coisa que tem em mãos possa ser algum tipo de conteúdo que é publicizado como forma de porta para vantagens e mesmo como espécie de obrigação. Como se não pudesse mais existir histórias privadas.


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(Lembrei rapidamente do "Breve Romance de Sonho" de Arthur Schnitzler, vertido para o cinema no último suspiro de Stanley Kubrick, que é um dos meus filmes prediletos da vida, "De olhos bem fechados". Não pretendo resumir toda a experiência de livro e filme de modo galhofeiro aqui, mas é preciso dizer que uma mera possibilidade de serem traídos faz os personagens enlouquecerem, perdidos em conjecturas com um alto nível de octanagem de absurdo. No filme, Nicole Kidman pira criando cenários dados como fatos somando peças para as quais sua imaginação completa vastos espaços indefinidos, após fumar um baseado enquanto discute a relação, e confessa ao marido que adoraria ter largado a família para ficar um um militar com quem mal trocou um olhar, certa vez, como forma de dar algum tipo de contra-ataque antecipado às supostas cagadas dele. Cruise se embreta em uma jornada de 24h malucas em Nova Iorque para tentar remediar de algum modo sua condição de corno hipotético usando métodos antigos como amigos, putas e convites para festinhas-barbada. É uma -hoje em dia- estranha crise vivida no modo analógico).


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Há (há?) um paralelo meio disforme aqui, no instante em que a pressa para se ter alguma opinião e/ou para ter algum conteúdo publicável não é exatamente - ou somente - respectiva a se tentar algum tipo de ganho imediato, nem é da ordem do "querer aparecer" antiquado (tal e qual velhos yelling at clouds ainda referem as 'coisas da internet'), mas é uma espécie de obrigação ou dívida que se assume.


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Você já viu alguma notícia ou esteve envolvido em alguma situação onde a primeira coisa subsequente que pensou foi na forma de expor, problematizar, exibir, 'postar' isso? (Escrever em um blog - né - vai saber?).


Você já quebrou a cabeça imaginando quase subsequentemente ao fato a forma que isso ia ser narrado? Ou que teria que ser?


Somos os únicos seres da terra que 'contam histórias' - e fazem promessas (Nietzsche). Mas não creio que deveria ser essa a pegada.


Enfim: tudo satura. Coisas importantes, banais, cruciais, inusitadas, informações, estudos, reflexões, fofocas. Tudo parece sugado pelo imenso vórtice das 'coisas que saturam'. Uma massa compacta, da mesma cor. Que passa na nossa frente. Ali, passou. O corno, o genocídio, o golaço (o do Corinthians contra o Grêmio, ontem, foi, infelizmente). O gigantesco bloco de 'coisas que saturam'.


UM FILME: se nunca viu "De olhos bem fechados" (1999) veja. Mas o filme que indico essa semana é "Meu nome é Maria" de Jessica Palud, 2024, que conta a triste história da atriz Maria Schneider e a espiral de depressão que se seguiu após ela participar do infame "Último Tango em Paris" de Bernardo Bertoluci e especialmente marcante por uma cena de violência sexual enxertada de última hora no roteiro por Bertolucci e Marlon Brando sem o conhecimento da atriz (a história é célebre, mas talvez você não saiba maiores detalhes). Uma cena que causou dor, desolação e, acredite, mudou para sempre - e para pior - sua carreira e sua vida.


UM DISCO: gosto bastante da banda Menores Atos e seu indie rock com clara inspiração em algo como "os emos cresceram e agora falam de dores, problemas e relacionamentos reais, ora vejam". É uma barulheira que ganha letras que volta e meia acertam o alvo (embora nem sempre e tudo bem). Passei a semana ouvindo o último trabalho, "Fim do Mundo", muito parecido com "Lapso", de 2018, que me fez reparar na banda pela primeira vez.


UM LIVRO: aqui é um espaço para literatura, com a qual estou há um tempinho em dívida, mas vai esse daqui que estou estudando e foi referido ali em cima: "Capitalismo Desejo & Política. Deleuze e Guattari leem Marx", de Rodrigo Guerón, pela Nau Editora. Didática e abrangência impressionantes.

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