- Gabriel
- há 2 dias
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Essa foto acima, que encabeça a postagem, foi copiada de uma manchete do site de uma agência de notÃcias e tinha a seguinte chamada: "Senador interrompe CPI, elogia 'pré-treino' de VirgÃnia Fonseca e pede vÃdeo da influenciadora"
Sim, como parte de um triste capÃtulo daquilo que (a palavra é feia e compõe um neologismo meio bizarro, mas, igualmente, exata) parece a cada vez mais inimaginável merdificação geral da internet brasileira, o parlamento está (supostamente) interessado em investigar o fenômeno da atuação de influencers e outras personalidades do calibre (...) nos esquemas visivelmente salafrários das bets e outros elos de ladroagem e pirâmide que assolam o espaço virtual e as redes sociais, naquele poderio tão gigante que se pretende imperceptÃvel por ironia, como espécie de estágio normal de estagnação a ponto de esquecermos como o mundo existia sem isso.
Eu não quero que a frase que escreverei em seguida seja lida como uma espécie de declaração moral de superioridade patética, nem como um sinal luminoso de que eu quero emular (46 anos completos na quarta-feira dessa semana) a figura lamentável do homem que brada nostalgias caricatas sobre o "seu tempo" ou sobre "antigamente", nem quero simbolizar que sou mais elevado porque tenho preocupações intelectuais ou midiáticas maiores. Eu quero justamente discuti-la.
Aqui vai: eu (juro por tudo o que há de mais sagrado se é que há) simplesmente não sei quem é VirgÃnia Fonseca.
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Claro. O nome de VirgÃnia já circulou pela minha frente em várias cyber andanças. e dizer que tenho um total de 0% de informação sobre a pessoa é matematicamente falso. Mas, acreditem (ou não) sei pouquÃssimo além de alguma coisa vaga a respeito de ser uma influencer, que ganha (aparentemente) bastante dinheiro fazendo publis e que tem sua vida atrelada de modo inarredável daquilo que compõe como sua persona internética. Fora isso, nada: vi o rosto e a cor do cabelo dessa moça essa semana, somente (informações rápidas - se não estiverem erradas pela péssima alimentação atual das respostas sugeridas pelas inteligências artificiais dos buscadores da web - dão conta de que ela vende e sugere produtos e técnicas de maquiagem, idem).
Não sou melhor do que ninguém por isso (embora eu adore o meme caracterÃstico de que volta e meia alguém reclama sobre o fato de que "tudo o que" se vem a saber sobre certa pessoa/algo "é contra a minha vontade"). É um relato sincero: não uso o Instagram (hoje por uma certa convicção de não colaboração com esse ciclo macabro de frenesi e ansiedade artificialmente criada no planeta, mas, no começo, apenas porque não queria mais uma rede social) e não tenho o costume de assistir o YouTube como se fosse a televisão, a distração ou o rádio ligado perenemente para ninguém ouvir, por vezes, na casa da vó. Meus caminhos usuais não cruzam com os de VirgÃnia e na parcela de acaso que falta em relação a um eventual encontro, ela não 'gera' o tipo de 'conteúdo' que me interessa. Parece impossÃvel, mas é simples assim.
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VirgÃnia é parte de um extrato de pessoas que compõem ao mesmo tempo o exemplo mais eficaz do que acontece em termos de um dos fluxos mais rentáveis do capitalismo atual e o exemplo mais sinistro da mesma maldição que o acompanha: é um Ãcone vivo de uma vida pautada em um tipo de lógica de financeirização total e irrestrita que nem o caricato e trágico personagem do Matthew McConaughey em sua rápida participação em "O Lobo de Wall Street" (e sua sugestão de ingresso na torrente do mercado imobiliário que culminaria com "se masturbar pensando em dinheiro") poderia supor nos frenéticos anos 80 dos yuppies onde tudo começou a ficar especulativo e abstrato (não só os lucros e investimentos empresariais): há uma necessidade simbiótica tão alarmante dessa gente com uma mistura potente (e fatal) de vida privada, com vida pública e a exibição da ausência dessas fronteiras nas redes sociais que tudo em relação a ela precisa virar material e/ou ter ares de live sob pena não dela deixar de aproveitar chances, mas sim dela simplesmente desaparecer. Morrer. E em um sentido menos figurativo do que se possa pensar. Cada minuto da existência vira capital.
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Na obra que definitivamente não inventou o termo "cyberespaço" (essa façanha é creditada usualmente ao conto "Burning Chrome"), mas naquela em que o mesmo autor, William Gibson, lhe configurou o desenho definitivo e marcado culturalmente, "Neuromancer", o personagem principal, Henry Dorsett Case, é um proto-hacker (quando ainda a palavra - ou profissão - não bem existia, do mesmo modo) que tem um grau de vÃcio/problema neural na conexão em rede de tal modo que a proibição/punição legalmente (e quimicamente) imposta a ele quanto ao uso de suas habilidades está o fazendo definhar - o que vai ser neutralizado temporariamente pela sua contratação para serviços escusos e um tanto misteriosos por um grupo de pessoas idem que o "desbloqueiam". Mas o interessante na obra é um jogo conceitual que foi amplamente imitado de forma grosseira em "Matrix", de 1999, quinze anos depois: em um nÃvel de transferência de consciência para esse cyberespaço imaginado como uma dualidade, à época, quase mÃstica, de interação, a morte, nesse lugar, acarreta a paralisia das funções cerebrais reais, e o sujeito morre de fato.
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Ano passado, após o suicÃdio de um dos primeiros grandes youtubers do Brasil, PC Siqueira, ponderei algo que considero valioso para algumas discussões sobre o tema na atualidade: PC iniciou sua carreira - que cerca de apenas 5 anos antes seria uma coisa que jamais poderia ser chamada de, nem teria o desenho efetivo de uma, o que é muito chocante - gravando vÃdeos que ironizavam a própria condição de desajeitado, tÃmido (e estrábico) em uma rebarba de uma febre que varou a cultura pop na virada do milênio e transformou o conceito padronizado de nerd, de alguém aplicado em termos de estudo, fracassado socialmente, e dotado de um visual terminantemente datado e anti-sexy, em uma espécie de deprimido-cool munido de algum tipo de charme tristonho pelo próprio desarranjo, e tendo como matéria prima comentários vazios tal como haiku sobre a própria baixa autoestima.
Em um passe de mágica e timing, um rapaz sem qualquer estudo nem condições usuais se transformou a partir de um fenômeno que cobrava paralelamente um tipo de alimento tal e qual o da tolerância quÃmica entorpecente no organismo. Se tornou legitimamente influente (sobretudo no campo cultural e até polÃtico-partidário), e aproveitou benesses materiais e afetivas tÃpicas da fama, porém, foi um dos que massivamente em nosso paÃs inaugurou um tipo meio bizarro de dinâmica onde seu 'trabalho' consistia, nuclearmente, em dispor sua vida pessoal como motriz e tanto quanto como produto, em uma lógica com a qual todos nós já nos acostumamos, porém nunca deixarei de achar estranha: sai de cena o cantor ou a atriz que capitalizam sua fama e appeal em comerciais, entra a pessoa que simplesmente parece mais autêntica ao publicizar seu cotidiano de forma a receber dinheiro - e mais atenção, e, assim, mais dinheiro - pelo simples fato de exercer um tipo de personagem confuso de si mesmo.
Nada que já não vemos bastante em todo lugar, com um componente macabro, porém: ao ser envolto em uma acusação um tanto caótica sobre eventual preferência sexual pedofÃlica em 2020 a partir da divulgação de mensagens trocadas com um amigo (onde ele relata uma situação um tanto grotesca e inusitada, e um teor de excitação sexual a partir dela), e de uma explosão de especulações tÃpicas do maquinário de ódio internético (onde ele mesmo trafegou com galhofa e segurança nos anos anteriores, sabendo capitalizar hating como um ás), que amplificam tudo de modo imparável, a casa caiu. Como um Dorsett Case bufo, PC morreu no ambiente virtual da conexão. Desligaram a máquina de sua capitalização com uma velocidade incrÃvel e previsÃvel e ele basicamente não tinha mais nada a não ser o interesse negativo gerado e o ódio que, em certas doses, é combustÃvel formidável para quem atua nessa seara - mas em outras não.
Era uma questão de tempo até haver a morte (real) de alguém que basicamente tinha (em sentido metafórico e também palpável), todas suas fichas distribuÃdas no mesmo número da roleta: se para os teóricos do neoliberalismo enquanto racionalidade, em seus dias mais clichê, vivemos uma era onde as pessoas são empresárias-de-si-mesmas em uma lógica de capital especulativo e em uma economia-polÃtica que pauta o âmbito relacional a partir desse mesmo tom financeirizado-abstrato tal uma bolsa de valores de todos os aspectos da existência, e onde há uma mistura nociva e perversa entre as (ou a ausência de) fronteiras que dividiriam vida, trabalho, afetos e interesses, é possÃvel dizer que PC foi liquidado na sua única fonte de reserva e vetor de energia. Massa falida.
O que se seguiu de sua vida internética (em sentido direto: a única que realmente tinha) foi um ato triste tal um apêndice da mesma história - com ele transmitindo em lives brigas histriônicas com a namorada e devaneios motivados pelos abusos quÃmicos (em uma estratégia que, mesmo ela, se bem utilizada, pode render frutos variados nesse universo meio aterrorizante). Com o risco de parecer um piadista de mal gosto, mas com o perdão pela reflexão dentro do argumento, a única coisa que faltou foi a transmissão via Reels de seu enforcamento. A morte fÃsica acompanhou a (me arrisco a dizer, verdadeira, em seu caso) morte em termos de obscurização imagética.
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Então. VirgÃnia.
É muito difÃcil para mim conjugar a constatação rasa e primária de que essa gente 'não trabalha' com o fato de que, além de o que fazemos na web, especialmente nas redes, é legitimamente trabalho (e com tons bem lucrativo para alguns - para quem só se contenta com equivalência monetária direta).
Muita gente ficou criticando a postura de VirgÃnia, por horas denotando um profundamente lamentável vazio de personalidade e postura para quem tem tanta inserção midiática, por outras, atestando a questão de que não há prego sem estopa ali em termos de não se complicar diante de um esquema absolutamente criminoso de estÃmulo a apostas mediante métricas obscuras e que preveem bônus para a garota propaganda em caso de ser satisfatória a equação entre novos apostadores versus derrotas (que significam endividamento e deterioração de patrimônio familiar - além de uma série de consequências igualmente nefastas que chegam a reboque).
A mim - que (com quase certeza) estava associando nome à pessoa com rosto, pela primeira vez - veio o pensamento que me assombra há um bom tempo já: para além do ridÃculo desse bando de gente que supostamente vive sua vida cotidiana como fonte de interesse alheio e, a partir disso, 'produção' laboral (como um contraponto à falta de espontaneidade da já decrépita lógica da 'celebridade' em 'comercial' - o que também é irônico dado que o global do que se faz em termos instagrâmicos e estéticos hoje em dia acabou sendo autorreferenciado, e tudo, menos natural), a questão de que eles precisam, essa lógica toda precisa, tal oxigênio ou moléculas de água, de um componente singelo. Nós.
Acho estranho que as pessoas sigam pensando que criticar uma pessoa como essa no campo de atuação onde (quase) tudo vira energia consumÃvel por ela na forma de energia drenada de estar em evidência - as redes sociais - surte algum efeito que não o de engrossar a massa de trabalhadores, assessores, marketeiros, e mesmo advogados dela. Trabalho. Comentários na rede, likes, hates, "compartilhar", esquentar o assunto, fazer virar trend, preencher na aba de pesquisa: absolutamente tudo isso é trabalho, no instante em que há algo sendo extraÃdo, há algo sendo valorizado, há alguma ponta da tabela ou da corda onde se pressente até um barulho que indica moedinhas brotando sob a forma de conversão das capitalizações variadas.
"Só se fala em". Sim. Você fala.
É mais ou menos como a questão do engarrafamento, onde o sujeito sempre se crê "preso" no engarrafamento, como uma ameaça ou maldição exterior que recaiu sobre ele, e não como um dos compositores do engarrafamento na medida em que é mais uma pessoa que teve a ideia de se embretar em uma via com outros 430 veÃculos no mesmo fluxo.
VirgÃnia tirou selfies com parlamentares e desfilou um cinismo meio infantilizado ao dar seu depoimento, em que apenas os flashes de relance que pude assistir denotaram ela colocando a grande habilidade que aparentemente possui em prática: viver mais um episódio de sua (alegada) vida corriqueira de modo a estudar a melhor forma de expor isso em termos de capitalização. É algo diferente e ainda mais engenhoso do que quando, por exemplo, Luciano Hang, o "Velho da Havan" compareceu a uma CPI trajando um esquisitÃssimo terno verde e amarelo que o fazia parecer algum vilão menor do Batman e claramente usou a presença na transmissão como forma de diversionismo polÃtico e impressão de imagem pessoal. Hang é um empresário que usa a imagem e o buzz midiático. A empresa (ao mesmo tempo que seu capital, seu "maquinário" e seu produto, em uma trindade assombrosa) de VirgÃnia é esse buzz.
Não tenho muita saÃda para esse labirinto, mas se pudesse chutar algo no calor do momento, diria que há que se perder completamente a sensação falsária de uma certa "alienação" causada por não se fazer qualquer ideia de quem são algumas figuras como essas, da mesma forma que os envelopes e pacotes de produtos ostentam com algum orgulho o selo de 'orgânico' e livre de agrotóxicos. Ou, ao menos, que se descubra o que, ou em que grau, vale à pena (com algum ganho em termos de retorno) você abrir mão de um black-out de informações a respeito de coisas que não importam. Não sucumbir à tentação da fofoca de consumo imediato. Legar algumas doses de ostracismo a idiotas.
É hora de não sabermos nada sobre algumas coisas e pessoas - com o uso intenso de nossa vontade negativa de.
UM FILME: poucos filmes são mais densos e tristes (aviso: há uma carga inerente de monotonia no andamento) do que um dos primeiros retratos certeiros (sem alarmismos ou olhar cringe de boomer) da geração que expõe (auto)imagem, se comunica, troca experiências, medos, fotos, links e desejos pelos fóruns de web do que "We're All Going to the World's Fair", estranha e peculiar - além de cheia de personalidade - experiência de Jane Schoenbrun que é supostamente um inÃcio de trilogia que conta com o incensado "I saw the TV Glow" no meio e com uma vindoura produção em fechamento.
UM DISCO: estive em Fortaleza pela primeira vez no final de semana passado e pude ver um show de um dos meus Ãdolos, Chico César, acompanhado de uma banda magnÃfica, repassando seus sucessos confirmados e arriscando músicas novas e covers bem escolhidos. Vá de "Aos vivos", o curiosamente primeiro disco de Chico (ao vivo, antes mesmo de algumas do material terem versões lançadas em versão de estúdio), que recentemente completou trinta anos!
UM LIVRO: não sou um grande conhecedor da obra posterior de William Gibson passada a "Trilogia do Sprawl" e me arrisco a ser óbvio ao dizer que "Monalisa overdrive" e "Count Zero" perdem bastante potência quando comparados ao monumento chamado "Neuromancer". Mas para além de chavões e apostas manjadas, se você não leu, recomendo. É o tipo de coisa canônica, que deixou uma série interminável de imitações que não arranham sequer a genialidade original. Não apenas um gênero, mas toda uma mitologia e um padrão "oficial" foi inventado ali, literalmente. Não existia (ainda) a maioria de coisas sobre as quais Gibson escreveu sobre.