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Foto do escritor: GabrielGabriel

Há muito tempo desenvolvi uma teoria.


'Teoria', por assim dizer, é só um modo de falar que em basicamente nada guarda relação com o que essa palavra na real exprime, estando distante de ideias ou teorias (em sentido concreto) que volta e meia desenvolvo também (é: já são 20 anos já envolvido com o mundo jurídico-acadêmico de pós - literalmente - graduação, então alguma coisa já rolou nesse sentido, sim, se querem saber).


Em real seria melhor dizer que identifiquei um sentimento, um afeto, um padrão, que diz respeito a uma coisa que sinto/penso, tem relação à forma como eu especificamente encaro um certo tipo de coisa, e que é útil para conhecer melhor um traço específico da minha personalidade. Assumi ou descobri algo em mim.


Bem, já sabemos que a primeira frase desse escrito já está meio deslocada de sentido, mas agora fica assim.


Eu sinto um certo fascínio tangencial a um misto de admiração e inveja de algumas pessoas famosas, habitantes do que se costumava chamar de círculo das celebridades do, vá lá, showbizz. Veremos inclusive que esse conceito se amplia hoje em dia, porque por mais que diga respeito a alguém que cintile no mundo ligado ao entretenimento e a alguma (ou algum resquício de) proposta artística, há quem entre nessa classificação (que agora pode englobar magnatas excêntricos, donos de empresas e até políticos), por uma espécie de porta dos fundos menos consistente ou glamurosa, mas inegavelmente eficiente (e aqui penso nesse tipo curioso da nossa era, influencers que 'vendem' um post para 'promover' um reel que vai anunciar um 'short' que polemiza um 'tweet' que era sobre 'expor' alguém que estava fazendo uma 'collab' - em uma espiral de vazio que diz respeito a algo tão singelo quanto sua rotina cotidiana).


Até aí alguém dirá: mas é lógico. E se inicia uma cantilena que passa por vários pontos de convergência de sedução que evocam sexo e desejo (sempre eles, não é mesmo?) e gravitam por situações, posições, chegando a bens materiais que trocam energia e colocações com os anteriores - em um estranho mas previsível ranking cambiante que vê pessoas e artigos de luxo como parte de um mesmo portfólio ou lista de commodities: "(...) quem não ia querer ser tão admirado como fulano(a)? Quem não gostaria de ter aquela mansão com praia exclusiva, aquele carro caríssimo? Quem não gostaria - mais evidente ainda - de estar ao lado daquela mulher/daquele cara em um jantar nababesco sob o luar de algum ponto imponente do mapa?"


Ok, trivial.


Mas quero referir outro aspecto:


Sinto, claro, inveja em algum grau (no nível que quase todo mundo sente) da quantidade de camadas de privilégio e suas facilidades atinentes para a conquista de mais facilidades (e assim, mais privilégios) que orbitam especialmente entre o binômio fama-dinheiro.


Mas pensei especificamente nisso mais uma vez nessa semana, quando, na festa de premiação do Grammy (não assisti), Kanye West¹ (fiquei sabendo pela osmose das redes sociais) compareceu ao lado de sua companheira, Bianca Censori², cuja proposta de traje (algo costumeiramente mais e mais importante nesse tipo de ocasião e nesse ecossistema, nos últimos tempos) era, em realidade, não usar traje, para além de uma quase invisível película transparente rente à pele. Estava nua.


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1 artista que não me influencia e anima em nada - e de quem transito entre uma certa raiva por suas declarações estúpidas costumeiras e uma surpreendente compaixão, dado que viver em um estado de nítido sofrimento psicológico em meio a um universo onde a conta bancária e as pessoas que lhe cercam são incapazes de dizer 'não' é complicado em vários aspectos

2 sobrenome curioso e irônico aqui

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O fato de que ninguém automaticamente não considerou a hipótese de Bianca ser maluca faz parte do que eu vou querer dizer aqui. Refiro um sentido médico, literal: não há qualquer possibilidade de imaginar que houve algum disparate ou equívoco bizarro, ou que, talvez, Bianca tenha sido traída por alguma falha ou erro de sua stylist ou má costura/rasgo de alguma peça. Todos sabemos que a medida foi algum tipo de statement ou vontade de causar de alguma forma limítrofe - e resta saber se isso será julgado como chic, ousado, punk, brega, "desnecessário", icônico ou over. E nada mais. E é isso, precisamente isso, que invejo (Kanye estava em uma das solenidades mais importantes do seu meio e estava de camiseta - isso também faz parte do que quero refletir. E também invejo).


Há um grau de pessoas que por seu magnetismo estilístico, ou por sua energia cool, ou por estarem em uma espécie poderosa de crista da onda (ou às vezes por nada disso e sim pela montanha de dinheiro sobre o qual repousam toda noite - que vem com o brinde da condescendência típica de quem passa a ter puxa-sacos), detém o privilégio (para mim) supremo de fazer o que bem entende, e isso ser imediatamente recepcionado como algum tipo de proposta.


Sim: há pessoas que têm ideias, propostas, oferecem hipóteses de tendências, comunicam coisas. E são imediatamente vistas, ouvidas e, especialmente, 'lidas' como tal.


Novamente: ninguém olhou para Bianca e correu para lhe oferecer uma capa para se cobrir, ou rapidamente acionou um psiquiatra. A posição (um tanto canhestra, mas, enfim) de atual companheira de um mega ídolo pop lhe oferece essa fatia (ainda que momentânea) de magia desse tipo de universo que lê sua nudez em público em um evento festivo (o terror/pesadelo de tanta gente ao acordar aflita após sonhar com isso) não resumida a uma nudez física, mas a uma ideia. Resta saber, enfatizo, se chic, ousada, punk, brega, "desnecessária", icônica ou over.


Nem eu nem (muito provavelmente) você (a menos que nesse momento eu esteja sendo lido por pessoas como Bianca, Charli XCX, Harry Styles, Timothée Chalamet ou Kanye West - uma abraço a todos. Não: para Kanye, não) pode aparecer de bermuda em um concerto de gala no teatro municipal, ou de sunga e camisa regata em um coquetel grã fino, ou de chinelos e calça do pijama para receber uma honraria entre seus pares. Não se trata de "coragem para" (como quem resolve encarar um desafio tal acariciar um leão ou se aproximar de uma cobra venenosa), e sim de "poder fazer", sendo esse poder (verbo) mais próximo de um tipo de aura do que da possibilidade, real, da ocorrência.


Verbalmente todos "podem" (possibilidade) ir de chinelos e chapéu de palha, ou vestidos e maquiados tal uma atriz dos anos 30 em uma ocasião formal(mesmo homens hétero), mas além de não necessariamente isso se concretizar ("Por que estou sendo barrado? Estou vestido que nem o Harry, ali") aqui o "poder" (condição ou permissivo específico) obedece uma outra lógica.


Gabriel, pelado, indo dar uma palestra para provar algum ponto, tal uma performance? Você indo só de calcinha à audiência para enfatizar alguma questão do processo? Aparecer no jantar da firma de calça de moletom e camisa furada pedindo desculpas porque recém acordou? Ou ir ao shopping vestido de dinossauro porque, bem, dinossauros são legais. Chama a Samu.


Um entreteiner de qualquer classe ir a uma ocasião como quem bola um traje para alguma festa à fantasia: proposta. Discurso. Reflexão. Tendência. Comunicar algo. Ou simples manifestação de um level de traquinagem que a nós (não, Charli, não é com você) é vedado.


Eu adoraria poder 'poder': invejo a possibilidade de tudo o que algumas pessoas fazem, dizem e mesmo vestem (ou não vestem) ser passível de ser visto como um quê planejado e pleno de algum significado ou ideia, para o qual as pessoas julgam se acharam ruim, bom, ousado ou patético. Elas não estão no palco (onde a extravagância atende a índices ainda mais extremos - mas tal um ambiente controlado onde, inclusive, se espera algo do tipo), travestidas de algum personagem. Elas podem ser personagem de si. Estão comunicando (e vistas como quem comunica) até com seu desleixo - ou mesmo nudez. É uma espécie de vida tal um desfile pret-a-porter onde você tem à disposição qualquer elemento comunicativo disponível (incluindo sua roupa, nudez, cabelo ou depilação) para explorar algum tipo de mensagem. Podem achar ruim, mas não lhe creem maluco, nem muito menos asqueroso. Você é avaliado pelo que propôs, e não no nível do absurdo flat de uma comparação frente ao que seria o 'normal'.


Poder 'poder' ir nua - ou com uma espécie de adorno sinistro tal uma maquete de castelo como se fosse um chapéu - em uma solenidade, por si só, não quer dizer nada, logicamente. Vem com um pacote onde volta e meia transitam outros fatores (sobretudo dinheiro e um quê de moral que em certa quantia é por este comprável). Mas há um ponto em que você pode se sobressair e propor/comunicar coisas da forma que bem entender, eis que sempre serão assim vistas (e/ou como uma tacada de estilo que visa dizer algo) e não como outra coisa.


Uma vez vi uma foto de Brad Pitt na arquibancada de um evento esportivo com uma camisa furada e velha que, se sou eu ainda que indo na fruteira da esquina para alguma emergência, suscitaria perguntas de chegados sobre necessidade de doações financeiras - ou mesmo pena (e boatos) por parte de algum núcleo eventual de conhecidos.



UM DISCO: rapaz, falando em Grammy, alguma coisa eu vi, sim: o Residente venceu algo como melhor disco de música urbana/contemporânea com o seu "Las letras ya no importan". Desde o Calle 13 e depois, em carreira solo, uma constante do universo é: Residente não erra.


UM FILME: dia desses ocorreu em uma cidade dos EUA de nome irrecuperável e impronunciável sem recurso de meios de pesquisa internéticos aquele estranho ritual de presságio sobre a questão da duração do inverno e da 'marmota', eternizado no filme adorável com Bill Murray. O que você talvez não saiba é que há uma versão italiana - tão boa ou (arriscado) até melhor, de 2004, chamado "È giá ieri" ("já é ontem"). Sério. E, sério, também, quanto ser tão bom quanto - ou melhor.


UM LIVRO: "Olhe para mim" da Jennifer Egan é o livro que me fez decidir, impreterivelmente: tudo o que essa mulher escrever, eu comprarei e lerei. Era 2001 e basicamente ela INVENTOU o Instagram. Boa leitura para quem quer lidar com esse entremeio de quem são -e porque o são- as celebridades do século XXI.

Foto do escritor: GabrielGabriel

Escrevo esse texto mais à moda antiga do que se pode suspeitar apenas por lê-lo. Moda antiga tipo blogs raiz: o relógio avança já no dia seguinte, tudo está silencioso e tenho que fazer muita coisa que não condiz com os minutos gastos para essa pequena reflexão, mas whatever. Amanhã tenho que acordar cedo para pegar um voo, inclusive. Lembro de uma vez que precisava fazer uma contestação de nível "esqueça, nunca que o juiz vai___" e pelas tantas eram muitos detalhes e teses a serem enfrentadas/expostas. Madrugada e eu fiz um texto para o blog. Era algo como 2003 ou 2004. Foi como respirar. Tipo se exercitar fisicamente como uma estranha forma de neutralizar outros cansaços. Serviu. Funcionou.


***


Estou lendo o livro "Ainda estou aqui", de Marcelo Rubens Paiva. Creio ser um bom complemento para o momento de hype glorioso do filme e a aclamação de Fernanda Torres em tempos de premiações globais. O que chama a atenção é justamente que a obra é um apanhado de memórias sob a forma de crônicas freestyle que foram linda e gentilmente transformadas em uma narrativa posta sobre a história de uma família. O livro igualmente conta uma história, mas longe de ser algo sequer próximo de um roteiro de filme.


Na cena (do filme) cuja força já ganhou o mundo e os comentários, uma reportagem sobre a situação que envolve a família se encerra com um pedido de uma fotografia e uma curiosa solicitação para gerar um quadro dramático mais preparadamente intenso: solicitam a Eunice e aos filhos/as que se mantenham sóbrios, quando não ensaiadamente tristonhos para compor o tom da matéria. A matriarca se recusa e incita todos a sorrirem.


No livro, a questão não é narrada primeiramente de forma específica por Marcelo, e sim como um conjunto de ideias. Está em um dos primeiros capítulos da Parte I do livro: ele discorre sobre o fato de que sua mãe jamais aceitou a posição de uma vítima que dá aos algozes o gosto de mais essa vitória. "A família não foi mais vítima da ditadura que o próprio país". Não apareceriam jamais fracos e chorosos. Um compromisso. Algo de se notar tal uma estratégia de relações públicas dessas pessoas que foram jogadas para o debate público - mais, cívico/democrático - sem quererem. Após, o próprio livro se encarrega de descrever o dia da foto, e os semblantes e a ironia meio cruel da coosa toda, mas complementado pela ânsia e ímpeto já descritos. Sob as lentes, é uma única composição, pois assim deve ser.


Há um esporte sobre o qual pouco entendo - beisebol - e há um filme do qual gosto muito - "Moneyball" - que explora um enredo envolvido com esse esporte. Nele, Brad Pitt interpreta um ex-atleta e promessa (não cumprida) da modalidade, que, como manager de uma equipe (Oakland A's), encontra uma notoriedade marcante, ao desenvolver um peculiar e revolucionário método de contratação, dispensa e aproveitamento de jogadores baseado em uma leitura e combinação de estatísticas como nunca antes fora feita. Um dia por curiosidade tive a chance de ler o livro: que surpresa positiva. O livro só torna o filme mais divertido porque é uma espécie de biografia, não do protagonista, encarnado por Pitt, mas da própria metodologia por ele desenvolvida, e da própria mania (agora recorrente) de uso aprofundado de estatísticas para as finalidades esportivas no geral. A história da faísca do manager que decidiu ir contra a maré (e literalmente 'mudar o jogo') é um pano de fundo para algo contado muito mais como uma matéria expositiva do que uma romantização do protagonista. Elegeram um viés de "Moneyball" - o livro - para ser recortado e montado de outra forma quando apresentado como "Moneyball" (o filme). À imagem e semelhança, poderia ser um bom documentário. Com liberdade de adaptação, virou um filme-pipoca boa praça.


"Ainda estou aqui" (o livro) é uma coleção de recortes de memórias de um membro de uma família. Alguém decidiu contar a história dessa família, e tem no livro um quebra cabeças que não será montado até o fim, ou um brinquedo de Lego com uma proposta original, que, após concluído tal uma tarefa mecânica e linear, quase que invariavelmente convida as crianças (e os adultos) a montarem - com as mesmas peças - algo mais original, interessante, instigante ou simplesmente diferente, por recombinação.


Walter Salles, diretor de "Ainda estou aqui" - enquanto filme - teve coragem suficiente para mexer com um clássico incomensurável de toda uma geração (de muitas, em realidade) e trouxe para as telas, certa vez, uma versão de "On the road". Choveram críticas de vários lados (eu considero uma adaptação honesta, possível e que dimensiona bem a história em um outro formato alheio ao para o qual ela fora pensada). Se levado o purismo ao limite, nenhum livro deveria virar filme, jamais. Porém, se visto aquele não como uma tentativa de reprise de "On the road" e sim como um "On the road", não vejo como não ser palatável. As pessoas não costumam ter problemas com adaptações afetadas, ensandecidas e exageradas de absolutamente todo produto cultural possível para o tipo de teatro estadunidense que ganha o epíteto do trecho de avenida onde costumam ser encenadas: na Broadway (assim como em "Las Vegas" - mais um estado de espírito que uma cidade), há uma tolerância intrínseca da opinião dos ferrenhos críticos, por (parece ser) um automatismo em suspender a descrença (ou em relaxar) em relação ao fato de que ali se encena, expõe, propõe algo que decididamente não é o seu filme, livro ou mesmo outra peça favorita (mesmo disco: soube de um espetáculo da Broadway que encena - veja bem - "American Idiot" do Green Day, por deus). Há por lá atualmente rolando uma versão de muito sucesso de "O beijo da mulher aranha", cujo olhar na versão filme, de Hector Babenco, supera e muito (como leitura "oficial") o próprio livro original de Miguel Puig. Ninguém parece preocupado em defender, frente às Broadways da vida, a dignidade ontológica dessas obras. Relax.


O fato é que o perspectivismo é uma coisa bonita e útil para o amadurecimento. Aceitar a ideia de que um ponto de vista e uma situação em si podem mudar o panorama de diretrizes, vieses e prioridades a partir do qual uma coisa pode ser contada - sem abalar seu tom de 'verdade' - é impressionante. Há verdade (ou pode haver) quando se resume algo, quando se enfatiza algo, quando se negligencia ou minimiza algo. Não há que se ter uma sanha reprodutiva amorfa. Não existimos reproduzindo coisas como o pequeno robô de Star Wars que guarda dentro de si uma mensagem na forma hologramática. Nossa versão, para tudo, é única. Assentir isso enquanto recurso artístico e enquanto - insisto no termo - proposta, é uma ferramenta estupenda.


Em 1998, sabe-se lá porque (a falta da velha pessoa que faz a função de colocar uma mão no ombro e dizer "amigo, não"?) Gus Van Sant decidiu (e alguém mais criminoso ainda o bancou para isso) refilmar "Psicose", de Hitchcock, de um modo literal, absolutamente bizarro. Talvez uma crítica ou exercício sobre a questão do consumo/reprodutibilidade da arte? O resultado é catastrófico. Não traz nem diz nada. Da mesma forma que o livro que entusiasmadamente recomendei a vocês lerem, alguns posts atrás, junto com minha advertência severa para que ninguém perca tempo vendo o filme: "Pergunte ao pó", de John Fante - e de Robert Towne na tenebrosa aventura fílmica. É uma sucessão de cenas, apenas. É uma tentativa de condensação de uma história inteira num filme tratado apenas como espaço para tanto. São partes de um livro explicadas em um tutorial visual em ordem cronológica. Péssimo. Ofensivo.


"Duna", de 1985 passa por esse problema: uma ideia de montagem de algo como quatro horas foi ordenada por um canetaço de estúdio a parecer mais razoável e qualquer coisa que você queira com aquele festival de baixo orçamento (ainda com uma que outra opção estética interessante - adoro o visual das Bene Gesserit ali conferido) depende de uma prévia leitura do livro (ao menos do tomo inicial, que é onde o filme todo se desenrola em velocidade recorde despido de qualquer nuance). É uma salada de frutas absolutamente mal resolvida e meio constrangedora. Villeneuve adaptou com sucesso o mesmo tomo em dois filmes de quase três horas cada, e apesar da lindeza visual e da emoção que atinge picos, foi obrigado a dar cavalos de pau e construir novos tuneis por conta própria. Nem dinheiro infinito e a fina flor do primor técnico resolve 100% de certas coisas.


É claro que no caso do livro de Fante, no de Kerouac, e mesmo no de Herbert, há uma sanha incontrolável de buscar a obra tal e qual um bloco de anotações do fiscal de trânsito e exibir os pontos de equívoco, um por um. Mas que tal se soubermos diferenciar outra coisa: quem está propondo contar uma história com personalidade e sem negar ou esconder no edredom o seu olhar, e quem está simplesmente enfileirando cenas? É a mesma diferença entre cantar no tom e apenas recitar as palavras da letra de uma canção na métrica exigida pelo ritmo. Ou de decididamente mudar o tom e a métrica. Propor. Brincar com.


Mais uma vitória para o desde logo já maior triunfo do cinema nacional em muito tempo (quiçá todos os): é baseado em um livro? Sim. E não. Até porque ele gira (e representa, segundo Selton Mello que vive o personagem) uma pessoa que tecnicamente não está mais aqui e que ganha um corpo a partir de um olhar, de um jeito de ser retratado, de algumas ênfases e de muitos silêncios. Mas a versão como é contada nas telas o faz estar, de várias formas, para todos os presentes (no enredo, dentro da tela, e em frente a ela). O livro é a visão de um Marcelo criança, depois adolescente, depois jovem adulto e depois tutor da própria mãe. O filme sai dos poros disso. Um enriquece o outro, não reproduz.


***

UM DISCO: e "O Mundo dá voltas", novo e finíssimo disco do Baiana System, hein? Repleto de batuque, brasilidade, latinidade e participações especiais que somam demais. Tem inclusive um lindo "álbum visual" para complementar a audição.


UM FILME: assisti "Conclave" e para além das questões de enfrentamento óbvio e quase caricato entre os cardeais progressistas/liberais e conservadores no seio de um Vaticano em polvorosa para a escolha de um novo Papa - e para além também de algumas surpresas que o filme reserva optando pelo recurso até meio covarde do "plot twist" ou surpresinha na manga, ao final, as atuações de Ralph Fiennes e Stanley Tucci dão um tom seguro e de classe à coisa. Funciona.


UM LIVRO: estou no meio dele. Quando terminar, haverá sinais.

Foto do escritor: GabrielGabriel

Atualizado: 25 de jan.


Essa frase que dá título a esse post está escrita no meu "Livro do Bebê": quando nasci (1979 do nosso senhor) não havia OneDrive, nem pen-drive, nem celular, nem Rolo de câmera (esse havia, mas era físico e não um apelido para uma seção de um app do seu aparelho de comunicações portátil). Era muito comum as famílias terem livros de capa dura a servir como álbum - manual - de fotos e assim como era comum haver esse "Livro do Bebê", que era uma espécie de álbum como esses, porém dedicado aos registros iniciais sobre os mais novos integrantes das famílias.


No "Livro do Bebê" - mistura de caderno de notas, com álbum de fotos, com depósito/banco de dados genético (havia espaço com um compartimento de plástico, tal um envelope embutido em uma das páginas - para guardar uma mechinha de cabelo da criança) e espécie de diário da mãe gestante, haviam notas sobre "Meu primeiro banho", "Com quantos quilos eu nasci" (eu, no caso, 3 e pouquinho, não era muito grande não), espacinhos para registros e fotos dos períodos da gravidez e coisas assim.


Na seção inicial onde deveria ser preenchido "Meu nome é" (Gabriel) e o "Motivos que Papai e Mamãe escolheram esse nomezinho", essa segunda assertiva ganhava essa resposta já mencionada, com a letra do meu pai.


***


Falei muito rapidamente sobre David Lynch - meu diretor favorito, realizador do meu filme favorito ("Blue Velvet") e uma das pessoas mais inspiradoras para minha consciência e formação dentre todas do planeta - no post da semana passada, sobre Los Angeles e meu fascínio respectivo. Não haveria como não, sobretudo a partir do fato de que a Los Angeles (e a própria Hollywood) que ele retratou ser uma das tônicas constantes de alguns dos seus mais ousados trabalhos ("Lost Highway", "Mulholland Drive" e "Inland Empire") e ajudar vividamente a compor essa minha predileção já exposta.


Lynch tem uma filmografia fascinante onde por vezes (explicação mais comumente aceita) histórias têm trechos de sonhos (e/ou delírios) se interpelando entre a realidade ajudando a compor a narrativa.


Dois dados curiosos:


Lynch nunca evidencia de uma forma tão afirmativa que há o componente do sonho se opondo ao da realidade em partes distintas ou definidas dos filmes - embora faça sentido (seria esse o objetivo? meta-pergunta) - pensar o fio da meada do roteiro e da proposta assim (no caso de "Mulholland Drive" é inclusive um tipo de explicação "oficial" tida por canônica). Lynch nem sequer deixa claro que há o fator 'sonho' envolvido;


E: Lynch parece interessado em ver a coisa pela perspectiva do sonho e de quem o sonha, e não pela de quando esse sonhador desperta - ou pela nossa que vemos de fora. Ele está interessado na mensagem e não em sua tradução (o que não significa que é um puro non-sense imagético sem qualquer propósito senão a beleza, o torpor ou o horror visuais, mas, sim de que há uma mensagem passada que não necessariamente tem como ser traduzida ou que pode perder demais no câmbio com a moeda da racionalidade se assim o for).


Um dos fatores críticos (e que me deixa curioso sobre como a obra de Lynch pode ter sido tão sentida por um número de pessoas que extrapola, e muito, a condição do 'cinéfilo' padrão-básico) é o fato de que ele parece avesso a essa era inclusive naquilo que mais catastroficamente e tristemente a definem: o fato de que as pessoas, neutralizadas em termos criativos por um universo de conteúdos e veículos que é estrito, limitado, pobre e mercadologicamente (no eixo emissor e também no receptor) necessariamente rápido e rasteiro, precisam cada vez mais do único item com o qual o diretor pareceu quase nunca negociar: explicações lineares, curtas, de assimilação mal mastigada e que carimbam resumos de um fator para serem apreendidos durante uma espera em uma fila ou um trecho mais longo de elevador.


Pode parecer uma coisa ligada à ânsia de um professor nascido no último ano da década de setenta (faça os cálculos) no que diz para com a velha (porém necessária) reclamação de que o imediatismo vai destruir tudo e todos. Em parte é isso, sim. Mas: é espetacular como nesse quesito se pode ver que apesar dos assentidos acúmulos de sabedoria a partir de ciência, experiência e reflexão, o lógico (que seria evoluirmos com o uso e a predileção desses quesitos) é suplantado pela materialidade canhestra da faticidade: em vários e básicos quesitos, estamos piorando de modo geral. Interpretação de texto e capacidade de abstração são dois desses (cruciais).


A lógica da velocidade dos "vídeos curtos" e explicações cada vez mais resumidas (há vídeos rápidos - tal e qual a regra da onipresença pornografia na web - sobre basicamente tudo o que há), obedecem, ao fim, a uma lógica de consumo e de estética que alimenta, se alimenta e retroalimenta essa própria matriz. Seria fácil usar a cartada de culpar "o mercado" enquanto ente abstrato, mas a verdade é que a engenharia é mais complexa envolvendo nossa própria forma de ser e estar no mundo (sempre enfatizo a questão imaterial e cognitiva do capitalismo como fundamental: a disputa não é pelo nosso papel de consumidores e sim sobre quem somos, o que pensamos - e pensaremos - o que desejamos e de que forma tudo isso pode ser mais e mais previsível ou capturado). Há esse universo todo de conhecimento que ultrapassamos tal um lago apenas pela borda mais rasa, sem qualquer mergulho exploratório, porque, entre outras coisas, já somos assim e é assim que assimilamos uma forma correta de postura (sempre digo aos meus alunos que é verdade que eles conseguem fazer/prestar atenção em três ou quatro coisas ao mesmo tempo, da fato. Claro: mal, em todas, uma vez que se pode distribuir atenção, mas não como um microprocessador ou o Dr. Manhattan como se de fato uma duplicidade ou multiplicidade de consciência fosse possível. Um olho no gato, outro no peixe. Mais olhos não há, então, gato ou peixe, terão para si algum ponto cego de descuido, invariavelmente).


Há alguns anos se popularizou (com razão) a crítica quanto ao fato de que tratamentos/práticas mais lentas e profundas (e doloridas) como as análises psicológicas e/ou psicanalíticas perderam espaço para o imediatismo dos fármacos e de outros milagres instantâneos supostos. Ninguém quer: 'perder tempo' conversando e refletindo - e amadurecendo. O lance é maquiagem e doping. Lifting mental e estímulo. Hoje em dia a coisa se agravou para todo e qualquer campo e em termos de leitura e consumo cultural, a ordem é resumir tudo, adiantar tudo. Streamings com opção de "alterar a velocidade" do filme são vistos como algo que não parece ser a aberração que é. E as explicações. Muitas explicações. Tudo explicado. Tudo minuciosamente descrito.


Ai de se arriscar com uma cumplicidade ou com uma fagulha acesa de referência para quem lê, vê, ouve. Tudo tem de ser dado em forma padrão. Tudo o que você absorve já vem com as orientações típicas. É tudo um contrato de adesão que você alegremente assina, e no qual você se vicia rapidinho.


Vídeos rápidos/curtos não são absorção curta e rápida de conhecimento, na mesma medida em que olhar para quatro telas com uma falsa simultaneidade e dizer estar "acompanhando" quatro programas ou filmes diferentes. Da mesma forma, é de se questionar o quanto se está de fato aprendendo ou - pior - entendendo algo - na medida em que é quase uma exigência atual dos produtos culturais que eles apenas entreguem, apenas direcionem, não permitam qualquer espaço para o receptor. Mais: o próprio receptor exige e não se contenta com absolutamente nada que não seja uma entrega full de absolutamente tudo - sobretudo do 'sentido' das coisas que deva eventualmente ser simbolizado e do que deve ser ativado em termos afetivos. Pobreza.


É desse mundo que um cara como Lynch partiu, sendo, paradoxalmente, ovacionado por muita gente. Coisas que é melhor não tentar explicar.


UM FILME: separe um bom drink (se você for de), se aconchegue no sofá e dê play em "A estrada perdida" ("Lost Highway", 1997). Se nunca o fez - ou mesmo se já o fez, embora há tempos. Deixe o filme chegar até você. Não o interrogue.


UM LIVRO: "Em águas profundas" é o suposto livro de David Lynch sobre meditação onde ele não quer falar sobre filmes, séries, roteiros e intenta fazer uma espécie de propaganda voluntária da prática e suas vantagens, numa espécie de almanaque chinfrim mesclada com lógica de coach motivacional. Mas é claro que: em mais franjas e respiros onde ele mesmo admite claramente, vazam generosas informações, fluxos de consciência e curiosidades sobre seus filmes e sobre a imagética fascinante de seus trabalhos (não há, lógico, muitas explicações no sentido cartesiano, mas são gorjetas deliciosas que ele dá em meio a - sorry - muita papagaiada de branco semi-deslumbrado com papo transcendental).


UM DISCO: a trilha sonora de "Veludo Azul" (Blue Velvet, 1986) é um dos resumos da verve lyncheana. Traz o sombrio instrumental orquestrado pelo seu soul mate Angelo Badalamenti (que ficaria famoso pelo trabalho com Lynch nas peças sonoras marcantes de "Twin Peaks" anos depois), convivendo com pérolas pop como "In dreams" de Roy Orbison, a canção que inspirou o título do filme, por Bobby Vinton - e também pelo pré-dream pop enigmático de Jullee Cruise (que também viria a ser notável em "Twin Peaks")

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