
Há um exercÃcio que não apenas me cansa no sentido fÃsico e muscular (quando não me agride no sentido ósseo, conjuntamente), mas que parece sugar minha força vital e meu elã sempre que sou impelido a realizá-lo. Ele se chama Burpee, e mesmo o nome é ridÃculo e parece algo inventado por uma criança para batizar algum tipo de amigo imaginário.
Consiste mais ou menos em você, de pé, empenhar um misto de apoio/flexão com um tipo de (quase) abandonar-se no ar, jogando as pernas para trás, sendo amortecido pelas mãos no chão, até que você esteja paralelo e grudado ao solo como um tapete estendido - ou uma lesma. A segunda parte do movimento é o caminho oposto, e você faz a força de erguer o torso com as mãos ao lado do peito (a volta da flexão), mas de forma a dar algo como que um impulso/pulinho que permita que suas solas do pé retornem ao chão para você se botar em pé (ou quase), como se uma hipotética câmera de filmagem desse rewind na fita do mesmo movimento anterior. O ciclo se completa quando já semicurvado, tal um gorila, você eleva os braços acima da cabeça e dá um pequenino salto que conta "um" para o movimento. Uma batida de palmas acima da cabeça para marcar o numeral e complementar o salto é opcional.
E vamos de novo.
Há uma variação literalmente diabólica dessa desgraça chamada Devil Press (quem inventa esses nomes, meu deus?) onde o apoio no chão é feito segurando um (ou dois) haltere e o movimento de retorno conta com alguns itens a mais: depois de se reerguer no solo (pés no chão, semi curvado), você vai balançar o peso por baixo do arco (do triunfo) formado pelas suas pernas abertas e erguer ele em riste acima da cabeça, como o He-Man defronte o Castelo de Greyskull. Se estiver fazendo com apenas um, é agora (haltere para cima) a hora de rapidamente trocar ele de mão para que o próximo seja finalizado com o braço contrário.
Se me mandam realizar 15 desses eu tenho uma técnica de tentativa de auto engano mental que consiste em diluir a contagem em blocos de cinco, três vezes, em uma espécie de prestação que não funciona se não num âmbito meio imbecil de sugestão que, corporalmente, não parece adiantar muito.
Já tentei realizar diversos tipos de contagens distintas - a mais trivial é começar de cima para baixo e ver minha tarefa paulatinamente se aproximando dos numerais mais baixos até chegar no 'um' que precede o final redentor. Partida do ônibus espacial. Medo. Explosão da Challenger quando eu era pequeno. Coisas aleatórias passando pela cabeça. Já tentei fazer combinações meio esdrúxulas, mas que residem em um auto incentivo meio vergonhoso - que agora divido com todos - no que diz para com contar três blocos de três repetições e depois mais três blocos de duas cada, 'pulverizando' mentalmente os 15 desafios em pequenos punhados de somas onde a satisfação da exigência parece mais próxima do que em uma contagem regular.
Imagino por vezes imagens gráficas gamificadas na mente onde vasos se enchem de lÃquido de alguma cor berrante, escadas e andares com números são transpostas, voltas em uma pista de corrida são completadas. Uma que curti esses dias eram números na quantidade das repetições como lâmpadas apagadas dando check e se acendendo à medida que mais uma repetição era vencida. Desafios mentais, imaginação criando cenários onde falta aquilo para uma vitória em uma competição fantasiosa (à s vezes com plateia ou com uma aposta comigo mesmo ganhando ares de desenho gráfico até abstrato). Tudo, absolutamente tudo para esse pavor se encerrar e o objetivo, mais do que o exercÃcio e seu trabalho muscular em si, seja satisfeito:
Acabar logo. Acabar logo esse sofrimento infernal.
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Minha semana docente esse semestre contém um dia em que dou aula à noite, seguido por uma manhã onde também dou aula, que engata em uma noite do mesmo dia onde também dou aula. Parece pouco, à primeira vista, mas para quem conhece minha rotina de viagens e meus outros compromissos invariáveis, já se demonstra cansativo e pesado, mormente na manhã de quarta feira quando, após uma noite de trabalho na terça e um sono avassalador a ser vencido, vislumbro o compromisso da mesma noite como um exército numeroso que cedo ou tarde estará à s portas do castelo para me triturar, e já é visÃvel nas colinas próximas.
Esses dias me peguei pensando se o sentido da vida é torcer para que uma rodada de devil press passe logo, como quem se vê em uma situação em que faz o que faz mais pela anestesia posterior de alguns segundos de descanso entre as séries do que por elas, em si.
Perguntas sobre o porquê de eu fazer isso comigo mesmo - estando correta a pressuposição de que não sou um prisioneiro torturado nem um atleta bodybuilder patrocinado - são da mesma categoria do tipo de cinismo infantil que manda o cara, caso não esteja gostando, trocar de emprego ou ir trabalhar na construção civil, para ver o que é bom para a tosse.
Não queria - creio, ninguém queria - me tornar aquelas pessoas que passam o tempo todo dizendo "menos um" para qualquer coisa e, num passe de mágica, transformam a vida toda em uma dificuldade tal e qual uma série de devil press que você, pelas tantas começa em dado momento a questionar o porquê de tudo isso em um labirinto de perspectivas.
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Minha avó, ao final da vida, começou a não ver mais a novela das 20/21h até o final, depois ela já estava meio que para dormir no Jornal Nacional, por vezes já adormecia no sofá durante a novela das 19h e repentinamente o café com leite da tarde já basicamente virava uma janta e cada vez mais cedo ela se punha recolhida, não como quem está momentaneamente doente ou indisposta, mas como quem dava sinais de que queria acelerar o fim de cada dia, de todos os dias, de todos os eventuais dias que ainda restassem, como se pudesse correr numa velocidade mais rápida do que os próprios dias para que - cheia do saco - pudesse descansar de um jeito definitivo tão logo.
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Era uma manhã dessas após acordar pelas 6h depois de ter ido dormir passada uma da manhã (trabalhe à noite, falando por quase três horas e veja uma desproporção entre o precisar e o conseguir adormecer) e eu tinha em mente que, se aguentasse (esse é o termo) aquela tarde e seus compromissos atinentes, e depois mais uma noite, na quinta feira eu poderia dormir um pouco mais. Um momento. Uma chance. Um objetivo. Uma missão. Aturar. Sobreviver. Mais uma tarde. Ótimo, você conseguiu. Mais uma noite agora. Quase chegando em casa. Chegou. Come uns snacks caros da lojinha de produtos naturais. Toma um iogurte. Liga a TV. Está passando Lakers contra Nuggets (o Lakers vence bem, surpreendentemente dada ausência de Lebron, mas o Nuggets também está sem Jokic então há uma facilidade enganadora no ar). Deita na cama. No dia seguinte mais trabalho. E estrada (volta para Porto Alegre). Soa o sinal. Volta ao ring. Olho roxo.
A vida tipo rounds de uma luta de filme onde o protagonista está em maus lençóis. O corner como não um respiro e um tempo tático. O corner como um minuto de paz. O desejo já não pela vitória, pelo nocaute, mas pelo corner. O corner e os poucos segundos sem jogo de pernas nem socos na cara e na barriga como objetivo, em si. Gelo. Gelo no olho. Toalha. Um banquinho para sentar.
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Que coisa. "A depressão quer me pegar, vou sair fora". O verso do Mano Brown. Uma singeleza e tanto. Depressão? Vou sair fora. Como, bem: Brown não explica. Dá teus pulos. O fato é: viver esperando o Gatorade da pausa técnica não dá. A consciência de que está errado já é um começo (será?).
UM DISCO: disco, disco, não é a prioridade aqui, mas se você for para o disco "Maravilhas da vida moderna" da banda portoalegrense Dingo (ex Dingo Bells) você vai se deparar com um pop rock bem agradável, mas mais do que agradável é uma das faixas que me emociona de sobremaneira desde a primeira vez que escutei (e tem uma relação direta com uma coisa referida no texto acima). "Dinossauros". Mais do que escutar, volta e meia, penso, real, na letra.
UM LIVRO: está em breve chegando nas livrarias (um passarinho me contou) a compilação traduzida em versão nacional das últimas aulas e palestras do Mark Fisher (falei dele dia desses). Para um dos seminários da minha disciplina do mestrado indiquei alguns artigos dele, procurando fazer uma entrecruza de suas ideias com uma crÃtica jurÃdica vanguardista. A edição brasileira de "Realismo Capitalista" é um excelente - e rapidinho começo - para conhecer quem melhor trabalhou com a questão da depressão e trabalho atuais como fonte de vazio existencial e sofrimento.
UM FILME: não vi filme nessa semana que passou, mas vamos com mais uma série - "Entre Estranhos" (The crowded room) é bem interessante, embora resvale várias vezes para o absolutamente previsÃvel (uma psicóloga obstinada reconstitui peças de um quebra cabeças mental de um acusado por um crime atabalhoado e mergulhamos num recorte sobre a vida desse sujeito. Tom Holland está bem demais, assim como a cenografia de uma Nova Iorque dos anos 70/80). Não é preciso andar quase nada nos 10 episódios para sacar qual é o lance, mas 'o lance' não era para ser exatamente um mistério, anyway.