
Há muito tempo desenvolvi uma teoria.
'Teoria', por assim dizer, é só um modo de falar que em basicamente nada guarda relação com o que essa palavra na real exprime, estando distante de ideias ou teorias (em sentido concreto) que volta e meia desenvolvo também (é: já são 20 anos já envolvido com o mundo jurídico-acadêmico de pós - literalmente - graduação, então alguma coisa já rolou nesse sentido, sim, se querem saber).
Em real seria melhor dizer que identifiquei um sentimento, um afeto, um padrão, que diz respeito a uma coisa que sinto/penso, tem relação à forma como eu especificamente encaro um certo tipo de coisa, e que é útil para conhecer melhor um traço específico da minha personalidade. Assumi ou descobri algo em mim.
Bem, já sabemos que a primeira frase desse escrito já está meio deslocada de sentido, mas agora fica assim.
Eu sinto um certo fascínio tangencial a um misto de admiração e inveja de algumas pessoas famosas, habitantes do que se costumava chamar de círculo das celebridades do, vá lá, showbizz. Veremos inclusive que esse conceito se amplia hoje em dia, porque por mais que diga respeito a alguém que cintile no mundo ligado ao entretenimento e a alguma (ou algum resquício de) proposta artística, há quem entre nessa classificação (que agora pode englobar magnatas excêntricos, donos de empresas e até políticos), por uma espécie de porta dos fundos menos consistente ou glamurosa, mas inegavelmente eficiente (e aqui penso nesse tipo curioso da nossa era, influencers que 'vendem' um post para 'promover' um reel que vai anunciar um 'short' que polemiza um 'tweet' que era sobre 'expor' alguém que estava fazendo uma 'collab' - em uma espiral de vazio que diz respeito a algo tão singelo quanto sua rotina cotidiana).
Até aí alguém dirá: mas é lógico. E se inicia uma cantilena que passa por vários pontos de convergência de sedução que evocam sexo e desejo (sempre eles, não é mesmo?) e gravitam por situações, posições, chegando a bens materiais que trocam energia e colocações com os anteriores - em um estranho mas previsível ranking cambiante que vê pessoas e artigos de luxo como parte de um mesmo portfólio ou lista de commodities: "(...) quem não ia querer ser tão admirado como fulano(a)? Quem não gostaria de ter aquela mansão com praia exclusiva, aquele carro caríssimo? Quem não gostaria - mais evidente ainda - de estar ao lado daquela mulher/daquele cara em um jantar nababesco sob o luar de algum ponto imponente do mapa?"
Ok, trivial.
Mas quero referir outro aspecto:
Sinto, claro, inveja em algum grau (no nível que quase todo mundo sente) da quantidade de camadas de privilégio e suas facilidades atinentes para a conquista de mais facilidades (e assim, mais privilégios) que orbitam especialmente entre o binômio fama-dinheiro.
Mas pensei especificamente nisso mais uma vez nessa semana, quando, na festa de premiação do Grammy (não assisti), Kanye West¹ (fiquei sabendo pela osmose das redes sociais) compareceu ao lado de sua companheira, Bianca Censori², cuja proposta de traje (algo costumeiramente mais e mais importante nesse tipo de ocasião e nesse ecossistema, nos últimos tempos) era, em realidade, não usar traje, para além de uma quase invisível película transparente rente à pele. Estava nua.
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1 artista que não me influencia e anima em nada - e de quem transito entre uma certa raiva por suas declarações estúpidas costumeiras e uma surpreendente compaixão, dado que viver em um estado de nítido sofrimento psicológico em meio a um universo onde a conta bancária e as pessoas que lhe cercam são incapazes de dizer 'não' é complicado em vários aspectos
2 sobrenome curioso e irônico aqui
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O fato de que ninguém automaticamente não considerou a hipótese de Bianca ser maluca faz parte do que eu vou querer dizer aqui. Refiro um sentido médico, literal: não há qualquer possibilidade de imaginar que houve algum disparate ou equívoco bizarro, ou que, talvez, Bianca tenha sido traída por alguma falha ou erro de sua stylist ou má costura/rasgo de alguma peça. Todos sabemos que a medida foi algum tipo de statement ou vontade de causar de alguma forma limítrofe - e resta saber se isso será julgado como chic, ousado, punk, brega, "desnecessário", icônico ou over. E nada mais. E é isso, precisamente isso, que invejo (Kanye estava em uma das solenidades mais importantes do seu meio e estava de camiseta - isso também faz parte do que quero refletir. E também invejo).
Há um grau de pessoas que por seu magnetismo estilístico, ou por sua energia cool, ou por estarem em uma espécie poderosa de crista da onda (ou às vezes por nada disso e sim pela montanha de dinheiro sobre o qual repousam toda noite - que vem com o brinde da condescendência típica de quem passa a ter puxa-sacos), detém o privilégio (para mim) supremo de fazer o que bem entende, e isso ser imediatamente recepcionado como algum tipo de proposta.
Sim: há pessoas que têm ideias, propostas, oferecem hipóteses de tendências, comunicam coisas. E são imediatamente vistas, ouvidas e, especialmente, 'lidas' como tal.
Novamente: ninguém olhou para Bianca e correu para lhe oferecer uma capa para se cobrir, ou rapidamente acionou um psiquiatra. A posição (um tanto canhestra, mas, enfim) de atual companheira de um mega ídolo pop lhe oferece essa fatia (ainda que momentânea) de magia desse tipo de universo que lê sua nudez em público em um evento festivo (o terror/pesadelo de tanta gente ao acordar aflita após sonhar com isso) não resumida a uma nudez física, mas a uma ideia. Resta saber, enfatizo, se chic, ousada, punk, brega, "desnecessária", icônica ou over.
Nem eu nem (muito provavelmente) você (a menos que nesse momento eu esteja sendo lido por pessoas como Bianca, Charli XCX, Harry Styles, Timothée Chalamet ou Kanye West - uma abraço a todos. Não: para Kanye, não) pode aparecer de bermuda em um concerto de gala no teatro municipal, ou de sunga e camisa regata em um coquetel grã fino, ou de chinelos e calça do pijama para receber uma honraria entre seus pares. Não se trata de "coragem para" (como quem resolve encarar um desafio tal acariciar um leão ou se aproximar de uma cobra venenosa), e sim de "poder fazer", sendo esse poder (verbo) mais próximo de um tipo de aura do que da possibilidade, real, da ocorrência.
Verbalmente todos "podem" (possibilidade) ir de chinelos e chapéu de palha, ou vestidos e maquiados tal uma atriz dos anos 30 em uma ocasião formal(mesmo homens hétero), mas além de não necessariamente isso se concretizar ("Por que estou sendo barrado? Estou vestido que nem o Harry, ali") aqui o "poder" (condição ou permissivo específico) obedece uma outra lógica.
Gabriel, pelado, indo dar uma palestra para provar algum ponto, tal uma performance? Você indo só de calcinha à audiência para enfatizar alguma questão do processo? Aparecer no jantar da firma de calça de moletom e camisa furada pedindo desculpas porque recém acordou? Ou ir ao shopping vestido de dinossauro porque, bem, dinossauros são legais. Chama a Samu.
Um entreteiner de qualquer classe ir a uma ocasião como quem bola um traje para alguma festa à fantasia: proposta. Discurso. Reflexão. Tendência. Comunicar algo. Ou simples manifestação de um level de traquinagem que a nós (não, Charli, não é com você) é vedado.
Eu adoraria poder 'poder': invejo a possibilidade de tudo o que algumas pessoas fazem, dizem e mesmo vestem (ou não vestem) ser passível de ser visto como um quê planejado e pleno de algum significado ou ideia, para o qual as pessoas julgam se acharam ruim, bom, ousado ou patético. Elas não estão no palco (onde a extravagância atende a índices ainda mais extremos - mas tal um ambiente controlado onde, inclusive, se espera algo do tipo), travestidas de algum personagem. Elas podem ser personagem de si. Estão comunicando (e vistas como quem comunica) até com seu desleixo - ou mesmo nudez. É uma espécie de vida tal um desfile pret-a-porter onde você tem à disposição qualquer elemento comunicativo disponível (incluindo sua roupa, nudez, cabelo ou depilação) para explorar algum tipo de mensagem. Podem achar ruim, mas não lhe creem maluco, nem muito menos asqueroso. Você é avaliado pelo que propôs, e não no nível do absurdo flat de uma comparação frente ao que seria o 'normal'.
Poder 'poder' ir nua - ou com uma espécie de adorno sinistro tal uma maquete de castelo como se fosse um chapéu - em uma solenidade, por si só, não quer dizer nada, logicamente. Vem com um pacote onde volta e meia transitam outros fatores (sobretudo dinheiro e um quê de moral que em certa quantia é por este comprável). Mas há um ponto em que você pode se sobressair e propor/comunicar coisas da forma que bem entender, eis que sempre serão assim vistas (e/ou como uma tacada de estilo que visa dizer algo) e não como outra coisa.
Uma vez vi uma foto de Brad Pitt na arquibancada de um evento esportivo com uma camisa furada e velha que, se sou eu ainda que indo na fruteira da esquina para alguma emergência, suscitaria perguntas de chegados sobre necessidade de doações financeiras - ou mesmo pena (e boatos) por parte de algum núcleo eventual de conhecidos.
UM DISCO: rapaz, falando em Grammy, alguma coisa eu vi, sim: o Residente venceu algo como melhor disco de música urbana/contemporânea com o seu "Las letras ya no importan". Desde o Calle 13 e depois, em carreira solo, uma constante do universo é: Residente não erra.
UM FILME: dia desses ocorreu em uma cidade dos EUA de nome irrecuperável e impronunciável sem recurso de meios de pesquisa internéticos aquele estranho ritual de presságio sobre a questão da duração do inverno e da 'marmota', eternizado no filme adorável com Bill Murray. O que você talvez não saiba é que há uma versão italiana - tão boa ou (arriscado) até melhor, de 2004, chamado "È giá ieri" ("já é ontem"). Sério. E, sério, também, quanto ser tão bom quanto - ou melhor.
UM LIVRO: "Olhe para mim" da Jennifer Egan é o livro que me fez decidir, impreterivelmente: tudo o que essa mulher escrever, eu comprarei e lerei. Era 2001 e basicamente ela INVENTOU o Instagram. Boa leitura para quem quer lidar com esse entremeio de quem são -e porque o são- as celebridades do século XXI.