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  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • há 7 dias
  • 9 min de leitura

Havia um sem número de lendas no que diz respeito à atuação do meu avô, Ivo, durante a enchente de 1941 em Porto Alegre, nas imediações do 4o Distrito: uma delas conta que ele e amigos ajudaram a subir mantimentos e utensílios de um depósito (às vezes um estabelecimento comercial, por outras uma casa, havendo vezes que o cenário era a própria sede social do clube Gondoleiros) para o segundo piso para salvar os itens da inundação, e que, posteriormente ao trabalho findo, ele teria saído dando uma 'ponta' da janela diretamente para o meio da Avenida Presidente Roosevelt, repleta de água como uma piscina olímpica surreal - gigante e opaca. Meu avô, tal um Tarzan urbano, de calças curtas e sem camisa, completando a imagem heroica. Era uma figura mental composta de trechos simulados com uma ideia meio pixelada que eu tinha em mente do meu avô jovem, que por vezes se misturava de forma desconexa com o rosto dele mais velho das fotos que povoaram minha infância. Até que surgiu em meio a outros registros familiares há muito guardados, a foto que ilustra tudo tão bem que chega a tornar verosímil o que nela não está, como um rabo, uma cauda, um resto de ideia que acompanha uma imagem congelada.


As lendas e causos relativos ao período da "enchente de 41" povoaram a imaginação de quem nasceu em Porto Alegre em algum momento do século XX, e mesmo para pessoas das gerações mais jovens ('z'?, alpha?, me perco por vezes nessa trilha) e/ou para gente de outras regiões do estado, sempre pairaram como uma espécie de mitologia meio nublada, meio irreal, por vezes a partir de um que outro chocante instantâneo do Largo Glênio Peres, no centro da cidade, junto ao Mercado Público, tomado por barcas a remo repletas de fugitivos. Impacto inicial que era seguido pela imaginação posta a fertilizar, sobre como estaria o resto do centro, de outros bairros costeados pelo rio, da cidade. As imagens sempre foram raras (e até pouco tempo tidas por indocumentadas). Sobre quanto tempo teria durado (parte de um filme apocalíptico que chega a criar mini-enclaves amorais? Trecho que constituiu uma momentânea suspensão das regras? Não foi para tanto? Mesmo a boa memória se dispersa nessas horas). Sobre como quem não tinha a disposição de rapazes fortes e heroicos para carregar mantimentos e saírem a nado teria feito para salvar seus pertences (histórias de quem 'perdeu tudo' abundam, idem).




Tudo isso parecia vir à tona volta e meia com o debate que minha geração viu por algo que parecia uma eternidade de ladainhas, consistentes na discussão de o porque de a cidade e as zonas centrais parecerem ignorar - quando não negaceiam, veementemente - o trecho portuário que é tão rentável, vistoso e protagonista em outras cidades (há uma incômoda comparação com o que foi feito no Puerto Madero, em Buenos Aires, que há muito tempo me perturba pela absoluta incompatibilidade geográfica do espaço em questão, amplamente diferente, mas cuja ideia central, de uso/renovação, assombrou prefeitura após prefeitura durante décadas desde que o empreendimento porteño virou um caso de sucesso inegável). "Atrás do muro existe um rio. E nesse rio mergulha o sol" diz uma famosa canção que leva o nome da capital no título: há um muro de concreto (não entre "nossos lábios", como em outra canção da mesma banda), entre a cidade e seu cartão postal mais famoso, fruto do medo de que um dia as águas se revoltassem e novamente invadissem o largo, o Mercado, o 4o Distrito, e uma Avenida Presidente Roosevelt já sem meu avô para salvar qualquer muda de roupa ou saco de feijão.


Não há quem não ponderou alguma vez sobre a imbecilidade de uma zona inteira de contato com as águas que banham a cidade ser isolada por uma murada que não conseguia ter graça nem com a constante exposição artística renovada de suas pinturas na parte de 'dentro': o 'fora' está vedado na medida do seu perigo. Imagens do Guaíba avermelhado do final de tarde, ou espelhando o brilho solar em dias frios e claros, em dada parte do centro foram, por muito tempo, vistas de revesgueio ou entre brechas de muros e construções que são igualmente isoladas como terreno de marinha, área restrita do estado ou propriedade privada tristemente abandonada bloqueada por grades, cancelas e guaritas. Há uma praça com um chafariz/fonte antiquíssimo na altura da Rodoviária, onde se costuma chamar de Cais Mauá, mas como se na Berlim Oriental estivesse, só pode ser vista entre as árvores e um silo abandonado, por quem chega pela rodovia e aproveita os poucos segundos da elevada antes da descida para o pátio onde os ônibus estacionam. Não se pode ir ali. Muro.


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Em 2024, a história compareceu, e o 'impossível' aconteceu: uma nova cheia do Rio Taquari e de outros de seus afluentes grandes, a partir de um aguaceiro pesado e ininterrupto por parte de uma noite, levou poucos dias para desembocar inteira no Delta do Jacuí - que compõe o Guaíba - e encontrou a cidade de Porto Alegre (como sói acontecer há anos e anos) desprovida de aparelhos básicos de organização, especialmente nesse quesito. Em 2023 uma chuva de proporções bíblicas também atingiu o Vale do Taquari destroçando cidades ao nível/abaixo da linha de corte do rio e de afluentes caudalosos, como Encantado e Muçum, e chegou pelo fluxo usual à Capital, que teve que acionar um arcaico mecanismo de tranca de comportas que são localizadas em locais aparentemente estratégicos ao longo do muro e de proteções similares já na parte do bairro do Humaitá. Uma delas, próxima à ponte antiga, emperrou no meio do trilho de correr e proporcionou um dos momentos mais ridículos que se tem notícia no quesito da gestão desse tipo de técnica já vistos (mal sabíamos que no ano seguinte a nova e mais potente enxurrada faria a mesma comporta emperrar novamente, antes de quebrar de vez, mostrando que o ridículo não podia ser subestimado).




As imagens - seja você de fora da cidade ou do estado - certamente correram por seus olhos de forma que não é preciso dar detalhes: áreas imensas da cidade foram tomadas por uma água marrom que atingia picos de mais de dois metros de altura em alguns lugares e fez riachos onde haviam vielas, novos rios onde estavam avenidas, córregos em becos e servidões e alterou o mapa do desenho padrão da cidade: "estamos aqui na Rua Santa Rita, na nova margem do Guaíba", me disse um amigo que estava recolhendo donativos e equipamento em um dos pontos de resgate e saída de botes salva-vidas, para me orientar sua localização, eis que eu sabia que ele estava operando no coração dos bairros Floresta e São Geraldo, área da casa de meus pais, onde morei por boa parte da vida e onde fica a mesma avenida Presidente Roosevelt, na mesma esquina com a rua Moura Azevedo onde está a, hoje reformada, sede do Clube Gondoleiros, lugar onde meu avô saltou de um segundo andar com estilo de campeão, em uma 'ponta', direto para a rua, e bateu uma foto em meio à leptospirose com amigos, sorrindo após o dever cumprido, naquela que poderia ser uma das primeiras incursões estilo blogueirinha da história da cidade, no século XX. Salvaram o dia. Tá pago. Mas: não estão rindo como quem debocha ou como quem inconsequentemente caçoa da própria penúria. Não fazem carão para a foto. Ninguém ia dar like (ou match). Riem porque vivem um momento único. Sabidamente surreal. Estão juntos para o que der e vier. Foram mais fortes que a catástrofe. Los tres amigos.


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Se quiser, faça o exercício de colocar no mapa e ver o tremendo trecho de bairro que estava basicamente submerso a partir dessa indicação (Rua Santa Rita, Floresta. "Nova margem" do rio). Não é fácil de acreditar.


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Não falarei sobre 'redenção' nem sobre 'resiliência' (tranquilamente uma das palavras por si só mais cansativas de todos os tempos, dado que evoca sempre algum discurso falsário meritocrático e cínico, quando não uma espécie de auto-ilusão mística perigosíssima). Pessoas perderam tudo o que tinham. Em áreas dos municípios vizinhos como Canoas, Eldorado do Sul e Guaíba, o cenário foi devastador e apocalíptico. Em bairros tão distantes e díspares da capital, como Sarandi (onde houve um rompimento de dique) e Guarujá (bem próximo a banhados que margeiam o rio) o alagamento foi desolador. No Humaitá, nos arredores da Arena do Grêmio, as pessoas ficaram vivendo em uma espécie de brejo por mais de um mês após a situação já começar a se normalizar em outros lugares. Isso para não mencionar o Vale do Taquari em larga extensão, com cidades que, em sentido literal, foram simplesmente varridas por um volume de água de dezenas de metros a mais do que o normal.


Quem passou por isso sabe o que viveu. Sabe o que viu. Sabe o choro que escutou, o que (e, por vezes, quem) nunca mais se achou. Sabe para onde não voltou e, se voltou, o que encontrou (e não encontrou) por lá. Meus pais foram socorridos de barco após um desligamento de energia que os deixou à beira da incomunicabilidade e da ausência de água e provisões.


Casas, estabelecimentos comerciais, restaurantes, prédios abandonados: tudo em certas partes da cidade (no São Geraldo, lugar em que querem construir o novo mais alto prédio do estado, com discurso de arrojo e sustentabilidade estilo 'fazenda vertical' - seja lá o que diabo - e onde há - ou havia - uma espécie de polo trending de inovação empresarial, por exemplo, é muito evidente) lembra a tragédia que ainda não se amainou. Ruas ainda cheias de areia, marcas de barro como linhas retas que insistem em não sair da parede, mau cheiro.


Quero falar, sim, dessa estranha conexão com meu avô, com quem sou tão parecido fisicamente (se você me conhece saberá com alguma facilidade dizer quem é ele na imagem que encabeça esse escrito), que nunca conheci em vida, de quem só escutei histórias e de quem colecionei relatos. Passei a me sentir mais próximo dele por uma bizarra e estranha conexão a partir do fato de que, mesmo eu não tendo dado 'ponta' alguma para o meio de rua qualquer (embora, modéstia à parte, seja bom nadador), vivenciei um pouco da loucura que foram aqueles dias onde ele, entre outras coisas, tinha à sua disposição nada mais do que a imperiosidade de aproveitar o viço da juventude para ajudar de alguma forma aquela desgraça absolutamente impensável, alguns amigos igualmente galhofeiros, corajosos e viris e alguém maluco(a) ou vivaz o suficiente para tirar uma foto que é absolutamente histórica, pela precisão de registro do mesmíssimo local há um ano igualmente inundado, tanto quanto pela questão de que agora não sei se a lenda ganha carimbo de realidade ou se é a realidade que se curva a toda e qualquer narrativa lendária sobre aquela época que automaticamente ganha crédito.


Carreguei e descarreguei caminhões, empilhei montanhas de roupas em pallets, separei itens, fui elo de corrente de garrafões d'água passando de mão em mão, tudo estranhamente com meu avô ao meu lado. Não quero usar a palavra conforto para uma desgraça tão gigante, mas alguma coisa que ele viveu permanece, alguma coisa tristemente periga permanecer e foi como sentir a flecha do tempo passando por dentro da carne, rumo a sua direção sempre incerta. A enchente de 24 nos costurou, todos juntos. Passou pelo meu avô. Senti no instante em que passou por mim.


UM FILME: filmado em larga escala nos arredores da casa dos meus pais, quando eu ainda morava ali, "O Homem que Copiava" de Jorge Furtado é uma cândida, por vezes deprimida, por outras safada e divertida homenagem à decadência do bairro São Geraldo e das pessoas que compõem sua paisagem diária. Sempre digo que a janela do quarto da Leandra Leal pode ser vista da sacada que era do meu, o que faz com que eu pudesse rivalizar na espionagem com o Lázaro Ramos. Inclusive o apto do Lázaro, no filme fica na esquina da mesma rua onde a foto do meu avô, e a que eu tirei, acima: o prédio segue na frente da antiga sede dos Gondoleiros, e é a mesma esquina. Entre muitas locações nas quadras adjacentes, há um encontro entre eles na praça do Cais Mauá, aquela, que referi, que não se pode nem chegar perto hoje em dia. Ficou para o lado errado do muro.


UM LIVRO: muito do que sei sobre a cidade foi contada pela experiência de micro-história (ou algo que o valha) mais divertida de todos os tempos, tal um catecismo bizarro e tresloucado que define uma época toda muito mais do que uma análise fria e apurada: "O anedotário da Rua da Praia" de Renato Maciel de Sá Júnior é uma coleção de historietas, verídicas em larga escala, mas com talvez algum toque de fantasia ou liberdades poéticas aqui e ali. É um verdadeiro almanaque de como Porto Alegre funcionava na primeira metade do século passado e há coisas que fazem o sujeito ter um tipo de colapso de tanto rir e há pessoas que você vai lamentar muito por jamais ter conhecido.


UM DISCO: "Alívio imediato", Engenheiros do Hawaii (muito embora o épico meio cafona "Anoiteceu em Porto Alegre" citado pelas tantas no texto esteja no álbum "O papa é pop" - sintomático nesse momento de Conclave, inclusive)

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 25 de abr.
  • 7 min de leitura

Nessa madrugada, imediatamente anterior a esse texto estar indo para o ar, o ex-presidente da República Fernando Collor de Mello foi preso após os últimos recursos frente à condenação que ele havia sofrido no STF em 2023 serem definitivamente rejeitados, percorrido um caminho de quase dez anos entre sua denúncia no próprio Supremo (era 2015 e ele exercia o cargo de Senador da República), sua efetivação como réu (2017), as condenações iniciais (2023) e imbróglios a respeito da estipulação de sua pena, que duraram até coisa de dois dias atrás e sua detenção no aeroporto de Maceió, às quatro da matina. Em meio às principais acusações, a recepção de cerca de R$ 20 milhões em propinas entre 2010 e 2014 a partir da BR Distribuidora - uma subsidiária da Petrobrás - ainda como resultado de desdobramento da (cruzes, século passado) "Operação Lava Jato".


Entre uma vida de trambiques obscuros, muitos deles chinfrins (como o caso da Fiat Elba - jovens, pesquisem), abuso de poder, 'coronelismos' e apoio aos ideais e pessoas mais equivocados e tenebrosos da história brasileira recente, uma marca indelével: o confisco, em 1990, das poupanças dos brasileiros e o bloqueio de valores de outras aplicações de renda fixa (também chamado ironicamente de "empréstimo compulsório") como medida de liquidez do caixa da Fazenda e tentativa de "conter a inflação".


Eram anos estranhos onde a jovialidade, a beleza, a afeição por extravagâncias e práticas esportivas do presidente, seu caráter (supostamente) renovador que fugia do perfil dos ditadores e proto-estadistas de araque dos anos antes do retorno da democracia representativa, parecia fazer o Brasil estar ingressando em uma legítima nova era. A imprensa comprou forte Collor, esse símbolo de um Brasil se arrojando à era neoliberal, seus cavalos de pau de jet-ski no lago Paranoá, suas voltinhas em motos potentes, seu jogging nos arredores de mansão breguíssima onde ele vivia ao invés dos aposentos oficiais e mesmo seu jeitinho de figurante a ser assassinado logo no primeiro capítulo em novela do Bret Easton Ellis - o que inclusive combina com outro suposto hábito frequente que ele possuía, e o fazia fungar excessivamente entre pronunciamentos energéticos com olhos arregalados e uma mandíbula que parecia ter vida própria, por vezes.


Sim, as contas (conta, corrente, aquela que era para ser a tranquilinha, manja?) de boa parte da população brasileira foi bloqueada e tomada da noite para o dia (literalmente - e aqui uma piscadela de ironia que, da noite para o dia tenha, idem, não só se decretado a prisão compulsória quanto a própria dura, no aeroporto, tenha ocorrido) com a promessa de ser 'devolvida' gradualmente aos cofres das pessoas, na coisa que mais tinha cara de 'fundo perdido' de todos os tempos.


E, sim, novamente, caso pareça tão surreal a ponto de que você pense que não entendeu bem: boa parte dos brasileiros acordou quebrada, sem acesso a seu próprio dinheiro, que sumiu, numa manhã de abril (outra coincidência?).


Minha família sofre até hoje com os efeitos daquilo. Não é força de linguagem ou considerações mediatas ou especulativas. Não é que nem o papo das "netas das bruxas" que "não conseguiram queimar", porque as 'netas' no caso, é um estado político e metafórico de identificação - muito embora eu desconfio que os 'netos' dos que queimavam as bruxas são netos mesmo - descendentes não só morais diretos como consanguíneos em muitos casos, a ver. Refiro algo absolutamente direto e literal: a espiral de dívidas, empréstimos e rebolations variados em que meus pais se enfiaram desde aquela época ressoa até hoje em uma desconjuntura financeira estilo não uma bola de neve, mas uma multidão de bolas de neve descendo a ladeira, unidas a outras bolas que não conseguem ser empurradas acima, tipo a pedra de Sísifo.


Éramos da suposta, chamada - e, finada - 'classe média' que foi definitivamente aniquilada pela medida.


Eu teria todos os motivos do mundo para celebrar a prisão desse crápula (a condenação, inicialmente, é de 8 anos e alguns meses de xadrez - e, claro: já veio o laudo médico de ocasião, praxe nesses casos, atestando uma série de doenças dignas de almanaque que vai tentar fazer ele comer em casa, com café com leite, boa fatia desse bolo). Não nego que um patife como Collor, preso, ainda que momentaneamente, é muito mais justiça sendo feita do que ele full time solto e impune.


Mas uma prisão oriunda de um montante de propina que totaliza algo como 5 milhões ano (convenhamos, parece pouco ante os salários que alguns técnicos ruins do futebol ganham mensalmente e num mundo em que nos acostumamos cada vez mais com os bilhões ao invés dos milhões - quem quer ser um "milionário"?) e que nada tem a ver com o maior e mais canalha de seus atos, não me impressionou nem excitou tanto.


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Há muito tempo, já, quando iniciaram os procedimentos de investigação que culminaram com aquilo que historicamente ficou conhecido nos anos do Governo Dilma como "Comissão da Verdade", e fora suscitada a possível volta à tona de processos e medidas referentes aos responsáveis pelo período nefasto do Golpe Militar brasileiro, tivemos que escutar, de forma muito insistente (tanto quanto errônea) a questão de que eventualmente "prender antigos generais de pijama" não valeria à pena.


Havia, no caso, um misto de descrédito, despotencialização, suposto sentimento de 'página virada' e também uma coisa muito esquisita (mais afeita à área dos juristas, mas não só), que era a de rechaço, como algo desatualizado e despropositado, do que se passou a chamar de "esquerda punitiva". A ideia de que um discurso verdadeiramente progressista não deveria se pautar em absolutamente nenhum aspecto a partir de uma espécie de (a) uso 'vingativo' dos aparelhos jurídico-penais-estatais e (b) de que não se poderia manifestar uma espécie de crença ingênua na possibilidade de haver uma espécie de redenção do sistema penal quando ele fosse falsariamente usado "para o bem".


Sobre um desses aspectos, em tempos de Oscar e de neo-golpe tentado, parece que a (tal) ingenuidade e o progressismo viraram o fio, e não há quem em sã consciência que não apregoe que 1) anistia é o caralho, 2) crimes dessa monta não podem simplesmente prescrever e 3) a desresponsabilização deliberada dessas pessoas é causa de uma espécie de não-cicatrização que justamente impede que páginas sejam viradas de fato. Mas, sob certo aspecto, falar de militares é fácil. A questão é o discurso cotidiano.


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Fui forjado acadêmica e profissionalmente (e, quando não, ideologicamente, em alguns aspectos) em um ambiente onde a "esquerda punitiva" era vista como um mal tão grande quanto o próprio punitivismo reacionário convicto, em si - afinal, eram punitivismos, ambos: essa odiosa crença, esse abjeto fervor de impor sofrimento a partir de um orgulho meio fascista, meio bobo, de ver os estamentos penais funcionando para impor dor e privações.


Havia, segundo alguns, até um que de psicanalítico (e jamais a psicanálise foi aplicada tão despotencializada do que quando se pensava que ela podia ser um alicerce jurídico-garantista para um anti-punitivismo de forma simples) na tendência sádica em 'gozar' com a punição (sentido amplo).


Principalmente: se denunciava a tolice que seria colaborar para "manter vivo" /ou "engordar" a lógica punitiva inteira, ao se querer que contra a parcela mais rica, poderosa e perversa ela fosse aplicada com intensidade.


Por muitas vezes já me manifestei e escrevi sobre o fato de que, em relação a essa assunto, a coisa 'não é bem assim': sobretudo nesse texto aqui onde discuto (com bastante reverência, embora com críticas) um texto clássico de autoria de Maria Lúcia Karam que basicamente cristalizou o termo e suas circunstâncias, em nosso meio político-acadêmico e também no Capítulo 9 de meu terceiro livro - dá pra fazer donwload aqui, no próprio site (tem o botão 'downloads' ali em cima - que batizo, justamente, de um "Acerto de contas" por mais uma vez com a "Esquerda Punitiva".


O fato é: uma tentativa desenfreada de seguir querendo dizer que o panorama político e o discurso progressista devem ficar engessados nos anos 90 e no início dos anos 2000, somada a uma sinalização virtuosa de que você não vai defender esquemas punitivos para não se rebaixar moral e politicamente ao nível dos reacionários e a uma espécie de medo absolutamente infantil de que defender a prisão de salafrários das altas rodas faz automaticamente crescer também a repressão aos 'descamisados' (como se o sistema penal fosse organicamente um banco onde qualquer depósito de fé, em qualquer contexto, o fizesse necessariamente ganhar peso direto em termos de poder para ele terminar de agir para apenas um lado e isso fosse uma operação aritmética fácil).


Desculpem o excesso de franqueza, mas o punitivismo (diário, regular, assassino e orquestrado) dos miseráveis e precarizados não tem como "outro lado da moeda" o discurso - supostamente ingênuo - de se querer regozijar com os poucos exemplos de punição dos 'grandes' (tal e qual a plebe vibra e debocha com escândalos palacianos - para depois apanhar dos guardas).


O "avesso" da (mesma) moeda do morticínio dos pobres é a impunidade inata dos poderosos.


E isso nada tem a ver - e não legitima - visões draconianas, medievais, estúpidas e grotescas de anti-garantismo: não quero que haja descalabros contra Collor, Bolsonaro e tantos quetais. Mas recuso terminantemente a ideia de que apenas o fato de querer vê-los punidos já me faz ideológica, moral e filosoficamente igual a alguém que respira punitividade hidrófoba por todos os poros. Como se essa gente fosse tão blindada que é blindada até contra hipóteses.


Aqui não, truta.


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Então: estrou triste com a prisão de Collor. Queria muito ela. Mas queria que fosse por outra coisa, e por muito mais tempo. E, sim: está tudo bem. É sobre isso, sim. E não é preciso disfarçar nada.


UM FILME: essa é fácil, né? Não à toa que fora mencionado de relance, "Psicopata Americano", de Mary Heron, EUA, 2000, é baseado na novela de Bret Easton Ellis, um verdadeiro fanático por retratar o histrionismo ridículo e cruel que era o zeitgeist dos anos 80 e se foca na escrotice e no padrão neurótico dos yuppies de Wall-Street (uma padrão que Collor representava, ou queria representar, mesmo que de um jeito absolutamente jeca e ridículo) em uma fábula que é mais (acredite) uma crítica psico-social do que um filme sobre assassinatos. Magnífico. Há uma continuação meio apócrifa de 2002 (não vi) e um previsto remake para breve (possivelmente não verei).


UM LIVRO: ele volta e meia aparece por aqui, e não poderia ser diferente. Mark Fisher chega ao Brasil de novo, agora com "Desejo Pós Capitalista", transcrição de suas últimas aula em um curso sensacional que ele vinha ministrando (eram previstos 15 encontros, ele faleceu antes da metade), onde boa parte do material mais quente em termos de filosofia contemporânea e discursos idem era mobilizado para fazer o que ele sabia de melhor: se apoiar no presente para olhar para o passado recente para, daí, pensar o futuro.


UM DISCO: influência fisheriana? Talvez. Ele, que teorizada muito sobre jungle e drum n' bass: deu vontade esses dias enquanto corria de escutar "Timeless" de Goldie. Ainda que o cara represente um drum n' bass mais comercial, na contramão do que o professor MArk curtia, sempre foi um estilo que me chamou muita atenção, e parece nos conduzir para algum tipo de outro lugar, um outro cenário, onde dançamos e suamos - apesar de nossos braços prateados cyborgues.

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 18 de abr.
  • 8 min de leitura

A Páscoa sempre foi um feriado extremamente simpático no meu ponto de vista. No Rio Grande do Sul significa - se tudo correr bem - dias de sol, porém com um friozinho convidativo que encoraja atividades ao ar livre em meio a uma quebra do que vinha sendo a normalidade rotineira do ano.


(Na minha família sempre se optou por um segmento light em termos das tradições cristãs, então não se costumava comer carne vermelha muito ostensivamente na sexta - havendo, porém, enquanto opção sidekick, estilo 'de ontem', junto à macarronada e algum prato de peixe branco: certa vez belisquei um salame italiano enquanto a massa não ficava pronta e, alertado pela minha avó, fiquei pensando se ia para o inferno. Acabou o sentimento ruim na primeira dentada em um 'Diamante Negro' pós almoço).


Estudante de escola e universidade de orientações católicas, a sexta-feira santa sempre se alarga para uma quinta-feira igualmente santa, o que torna a terça-feira anterior à quarta pré-quinta um dia já energizado dado que, como diriam Otávio Augusto e Cecil Thiré na cena do filme "Muito Prazer" de 1979 que retornou nessa quadra histórica como meme, ali pelas 16h da quarta a "(...) semana está praticamente encerrada", ao natural.


Agora calcule a questão da terça-feira transformada de engate inicial da marcha de uma semana que ainda parece longa em véspera de uma quarta (não santa, mas em vias de canonização: beata, já, digamos) que por sua vez ganha ares de sexta de uma forma que nem os personagens do filme imaginariam.


Somem-se fatores como os da época em que eu trabalhava na Justiça Federal e - sabe-se lá por qual motivo exato e já perdido no tempo - havia uma recomendação de o feriado iniciar na quarta mesmo, o que faz da terça-feira um ponto interessante de anestesia (convenhamos: quem vai iniciar algo que envolva muita mão de obra em uma semana fadada ao break) e consegue a proeza de até mesmo eliminar a depressão natural de domingo (o verdadeiro dia 'santo' conforme a liturgia bíblica) precedendo a segunda-feira como símbolo de uma trilha de desafios.


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Os feriados na Justiça Federal sempre me intrigaram tal e qual aquela historieta do Eduardo Galeano sobre a necessidade de um guarda em um quartel de Sevilha marcar posição ao lado de um banco no pátio, que, descoberta, era uma reminiscência da vez em que havia a necessidade de alguém ficar ali avisando os passantes que o banco estava recém pintado. Quando não havia ainda oficializado o recesso dos trâmites processuais - para dar um mini respiro para a classe advocatícia, a Justiça Federal fazia por conta uma parada em meados de dezembro até o início do ano que não era reprisada por Tribunais e Fórum de classe estadual. Certa vez perguntei para minha chefe da Secretaria no TRF o porquê disso (sem parecer que estava desconfortável ou reclamando) e a explicação dela foi tão surreal que jamais fui atrás de tentar averiguar, porque simplesmente não quero ter outra hipótese: a estrutura interna de funcionamento/organograma do TRF havia sido tirada do modelo de uma corte inglesa que previa uma parada a essa época do ano dada a possível intensidade de neve na região e a inviabilidade dos trabalhos. Teriam copiado a estrutura - e a parada. Realmente acho difícil de ser sustentável essa explicação, mas admitamos: eu - e você - queremos que essa pitoresca resposta seja a verdade. Deixemos assim.


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Já fui uma pessoa que - metódico para algumas coisas - se incomodava com o chamado 'feriado em meio de semana', visualizando-o como uma espécie de quebra de ritmo tal e qual o corredor que avança como uma gazela após o disparo do tiro mas que é obrigado a voltar dado que um dos adversários fora eliminado por queimar a linha de largada. A potência concentrada daquele arranque talvez não volte e não será exatamente reprisada na nova largada.


Parecia, inegável, que a pessoa terminava por se desconjuntar - e ficar ainda mais cansada - após uma parada ocasional em uma terça feira (até porque a folga não é aproveitada na maioria dos casos em uma inércia como uma máquina que resfria ou um carro desligado), para o que a galhofa (mas, é preciso dizer, alguma lógica) sugere que o feriado precisa de uma emenda como um complemento óbvio e seria melhor, pois 'transferir' para segunda algo que recairia na terça, ou para a sexta algo que originalmente era na quinta.


Não me parece má ideia, mas o ponto é: o cansaço da vida laboral e da nossa própria realidade circundante faz com que basicamente o trabalhador veja qualquer motivo de pequena folga ou pausa como uma dádiva semelhante ao do caminhante no deserto que vê a miragem de um bebedouro de água gelada e brilhante.


Dia desses, no podcast aquele onde sou um dos criadores e apresentadores - aquele, sabe? - teve esse episódio onde eu conversei com um querido amigo sobre sua função na chefia de um gabinete parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo. Uma das coisas que levantei é uma tese recente que desenvolvi a respeito do revival avassalador que a série "The Office" (na versão americana, no ar entre 2005 e 2013 - com muito mais desenvolvimento e sucesso que sua versão original, inglesa) ganhou durante os anos da pandemia. Para além das gags famosas em redes sociais, ilustrativas enquanto 'figurinhas' (mesmo descontextualizadas e não necessariamente referindo diretamente questões do enredo - o que também é um tipo de fenômeno), a série (que tem alguns dos grandes momentos do humor sarcástico televisivo em todos os tempos) gira basicamente em torno de pessoas que tem seu ápice de socialização durante as tardes de trabalho, mas que, igualmente, possuem em comum uma espécie de aversão ao trabalho, e passam o tempo todo gastando uma energia descomunal em torno de problemas comezinhos e diversionismos de atenção que sempre que possível paralisam o fluxo do escritório (as duas pessoas maníacas por organização e produtividade - de um jeito muito mais doentio do que competente, propriamente - não escapam dos non-senses tresloucados e da engambelagem reinante no ambiente, idem, mas são justamente um casal secreto e desajustado, formado por pessoas estranhamente reacionárias e portadores de personalidades altamente contraditórias e confusas).


A adorável narrativa de um escritório onde todos estão o tempo todo resolvendo outros problemas que não os da firma, em si, empenhando um emoção e vivacidade absurdas em coisas como a disputa sobre de qual confeitaria vai se pedir o lanche, ou que cor devem ser as bandeirolas para enfeitar a sala de reuniões para o aniversário de alguém, e onde os superiores reais (a matriz, em Nova Iorque) são vistos como inimigos, intrusos ou exageradamente desumanos por cobrarem questões básicas de diligência e efetividade e, especialmente, a forma como o re-sucesso repentino da série triplicou a quantidade de referências a ela para uma geração que só a conheceu na disponibilidade dos streamings diz muito: estamos todos engatilhados com o excesso de trabalho.


Dentre os personagens que angariam e redobraram a simpatia, pelo público, um casal que usa o tempo entre as batidas do ponto para viver uma espécie de romance evidente (porém, durante algum tempo velado), enquanto prega peças infantilóides em um membro específico da equipe ao longo de toda tarde de expediente, um sujeito que evidencia estar sempre prestes a se demitir, como objeto de barganha salarial, e faz questão de não demonstrar engajamento algum com proatividades típicas da função (usualmente dorme durante reuniões), e, ainda, um tipo curioso, cuja piada reside justamente em estar lá sem ninguém exatamente saber nada sobre sua vida privada, seu passado e sequer sua real função na empresa.


Espécies de 'heróis' contemporâneos disfuncionais.


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Há quem diga que existem feriados demais no Brasil.


Por mais que seja verdade sob um certo aspecto, e por mais que o tom sempre festivo (no mau sentido que possa ter isso) resvale para uma gandaia inconsequente porém não autoafirmada enquanto tal, no quesito (que ocasiona um incômodo antagonismo entre o repouso - e a farra - enquanto projeto, ou enquanto leniência/letargia displicente), é preciso dizer que o estado geral de culpa que nos atormenta quando estamos fruindo de espaços de não-trabalho literal (é triste chamar assim) é algo a ser diagnosticado e combatido.


Não é preciso reprisar toda uma cantilena contemporânea sobre a forma como nos foi incutido (a golpes de simbologias mitológicas e romantização enquanto 'batalha', 'luta', motivos 'épicos' ou remetentes à natureza selvagem das criaturas no ciclo vital) a superação física e psicológica dos desafios nos impele a não optar pela fraqueza da desistência ou a imoralidade do desfrute enquanto temos à nossa frente: trabalho. Produtividade. Possibilidade de render.


Não é preciso eu reprisar o meu mantra costumeiro de que - carregando na garupa uma multidão de autores e autoras que tenho estudado bastante nos últimos anos - o grande e atual esconderijo (nem tão escondido assim) do capitalismo está na nossa subjetividade forjada e em nossa forma de viver e ver as coisas em um ritmo de produtividade(s) que opera na (mesmíssima) lógica do trabalho e/ou que estende o momento do trabalho para muito antes, muito depois e muito além da 'firma'.


O descanso e/ou o feriado são sempre vistos sobre essas perspectivas fanfarronas ou decadentemente deprimentes, onde algum funcionário (mormente "público") oferece uma espécie de catimba perene para procurar trabalhar o menos possível (se The Office fosse ambientada numa repartição brasileira, a crítica seria seis mil vezes mais manjada, óbvia e sem graça: é, sim, surpreendentemente uma visão de mundo corporativo - mesmo que arcaico - estadunidense).


Portanto, ao ler essas mirradas linhas, aproveite para fazer o que deve sim, ser feito, sem culpa e na medida do sempre-que-possível: descanse. Mais do que isso: faça coisas, se quiser, mas não produza. Mesmo colocar em dia leituras, fazer exercícios, fazer sexo e cozinhar são atividades que podem ser realizadas enquanto fruição, prazer, passatempo ou mote de alegria/hobby, mas são facilmente porta camuflada de entrada para o cavalo de Tróia da 'produtividade'. Números. Metas a serem batidas. Postagem na rede. "Tá pago". Espécie de "anúncios" não para sua pessoa, mas para os outros, "seguidores", como quem bate o botão no xadrez competitivo anunciando que é a "vez" do adversário. Disputa surreal. Embate, corrida virtual. Unilateral, porém de todos contra todos.


Trabalhe, se pá (e aquela pilha de roupas ali?), mas não 'produza', faça-me o favor. Só hoje.


UM LIVRO: o nome sugere algo mais literal e raso em relação ao tema do texto de hoje do que sinceramente o é. Não que não seja, também e muito, mas "O Apocalipse dos trabalhadores" é mais uma das pequenas obras primas que Valter Hugo Mãe nos deixa de brinde, como se fosse fácil escrever com tamanha maestria. Exploração e suor é uma das coisas que você vai encontrar nesse livro. A única nota negativa é que ele é da fase em que (acho muito ruim) Mãe escrevia tudo com letras minúsculas, por algum tipo de manifesto estilístico em relação aos substantivos que ele mesmo abandonou, felizmente.


UM DISCO: escutando essa semana "Lucro Sucio; Los Ojos del Vacío" - do Mars Volta. Gosto demais da banda, mas admito que a pira sonora dos parças Bixer-Zavala e Rodriguez-Lopez que se afastou de algo como uma psicodelia com mais peso e se voltou para uma coisa meio música latina indie/jazz contemporâneo bizarro/experimentalismo aqui e tentativas mais comerciais ali está meio estranha para meu paladar.


UM FILME: assisti ao simpático "North Hollywood" de Mike Alfred, 2021. Filminho da galera do Illegal Civ., coletivo de vídeos e produção criativa ligada ao skate e à moda juvenil de rua da última década. Um pessoal meio Jackass sobre rodinhas, mas aqui gravando e filmando mais comportados, como profissionais. Um retrato doce de uma juventude meio vazia, a partir de um bando adorável de desajustados que poderia descambar para dramas maiores como perdição de vida desde o consumo de drogas, mas tem um clima de amigos tomando refrigerante em uma mesa redonda de lanchonete.

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