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ALAGADOS

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • há 5 dias
  • 9 min de leitura

Havia um sem número de lendas no que diz respeito à atuação do meu avô, Ivo, durante a enchente de 1941 em Porto Alegre, nas imediações do 4o Distrito: uma delas conta que ele e amigos ajudaram a subir mantimentos e utensílios de um depósito (às vezes um estabelecimento comercial, por outras uma casa, havendo vezes que o cenário era a própria sede social do clube Gondoleiros) para o segundo piso para salvar os itens da inundação, e que, posteriormente ao trabalho findo, ele teria saído dando uma 'ponta' da janela diretamente para o meio da Avenida Presidente Roosevelt, repleta de água como uma piscina olímpica surreal - gigante e opaca. Meu avô, tal um Tarzan urbano, de calças curtas e sem camisa, completando a imagem heroica. Era uma figura mental composta de trechos simulados com uma ideia meio pixelada que eu tinha em mente do meu avô jovem, que por vezes se misturava de forma desconexa com o rosto dele mais velho das fotos que povoaram minha infância. Até que surgiu em meio a outros registros familiares há muito guardados, a foto que ilustra tudo tão bem que chega a tornar verosímil o que nela não está, como um rabo, uma cauda, um resto de ideia que acompanha uma imagem congelada.


As lendas e causos relativos ao período da "enchente de 41" povoaram a imaginação de quem nasceu em Porto Alegre em algum momento do século XX, e mesmo para pessoas das gerações mais jovens ('z'?, alpha?, me perco por vezes nessa trilha) e/ou para gente de outras regiões do estado, sempre pairaram como uma espécie de mitologia meio nublada, meio irreal, por vezes a partir de um que outro chocante instantâneo do Largo Glênio Peres, no centro da cidade, junto ao Mercado Público, tomado por barcas a remo repletas de fugitivos. Impacto inicial que era seguido pela imaginação posta a fertilizar, sobre como estaria o resto do centro, de outros bairros costeados pelo rio, da cidade. As imagens sempre foram raras (e até pouco tempo tidas por indocumentadas). Sobre quanto tempo teria durado (parte de um filme apocalíptico que chega a criar mini-enclaves amorais? Trecho que constituiu uma momentânea suspensão das regras? Não foi para tanto? Mesmo a boa memória se dispersa nessas horas). Sobre como quem não tinha a disposição de rapazes fortes e heroicos para carregar mantimentos e saírem a nado teria feito para salvar seus pertences (histórias de quem 'perdeu tudo' abundam, idem).




Tudo isso parecia vir à tona volta e meia com o debate que minha geração viu por algo que parecia uma eternidade de ladainhas, consistentes na discussão de o porque de a cidade e as zonas centrais parecerem ignorar - quando não negaceiam, veementemente - o trecho portuário que é tão rentável, vistoso e protagonista em outras cidades (há uma incômoda comparação com o que foi feito no Puerto Madero, em Buenos Aires, que há muito tempo me perturba pela absoluta incompatibilidade geográfica do espaço em questão, amplamente diferente, mas cuja ideia central, de uso/renovação, assombrou prefeitura após prefeitura durante décadas desde que o empreendimento porteño virou um caso de sucesso inegável). "Atrás do muro existe um rio. E nesse rio mergulha o sol" diz uma famosa canção que leva o nome da capital no título: há um muro de concreto (não entre "nossos lábios", como em outra canção da mesma banda), entre a cidade e seu cartão postal mais famoso, fruto do medo de que um dia as águas se revoltassem e novamente invadissem o largo, o Mercado, o 4o Distrito, e uma Avenida Presidente Roosevelt já sem meu avô para salvar qualquer muda de roupa ou saco de feijão.


Não há quem não ponderou alguma vez sobre a imbecilidade de uma zona inteira de contato com as águas que banham a cidade ser isolada por uma murada que não conseguia ter graça nem com a constante exposição artística renovada de suas pinturas na parte de 'dentro': o 'fora' está vedado na medida do seu perigo. Imagens do Guaíba avermelhado do final de tarde, ou espelhando o brilho solar em dias frios e claros, em dada parte do centro foram, por muito tempo, vistas de revesgueio ou entre brechas de muros e construções que são igualmente isoladas como terreno de marinha, área restrita do estado ou propriedade privada tristemente abandonada bloqueada por grades, cancelas e guaritas. Há uma praça com um chafariz/fonte antiquíssimo na altura da Rodoviária, onde se costuma chamar de Cais Mauá, mas como se na Berlim Oriental estivesse, só pode ser vista entre as árvores e um silo abandonado, por quem chega pela rodovia e aproveita os poucos segundos da elevada antes da descida para o pátio onde os ônibus estacionam. Não se pode ir ali. Muro.


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Em 2024, a história compareceu, e o 'impossível' aconteceu: uma nova cheia do Rio Taquari e de outros de seus afluentes grandes, a partir de um aguaceiro pesado e ininterrupto por parte de uma noite, levou poucos dias para desembocar inteira no Delta do Jacuí - que compõe o Guaíba - e encontrou a cidade de Porto Alegre (como sói acontecer há anos e anos) desprovida de aparelhos básicos de organização, especialmente nesse quesito. Em 2023 uma chuva de proporções bíblicas também atingiu o Vale do Taquari destroçando cidades ao nível/abaixo da linha de corte do rio e de afluentes caudalosos, como Encantado e Muçum, e chegou pelo fluxo usual à Capital, que teve que acionar um arcaico mecanismo de tranca de comportas que são localizadas em locais aparentemente estratégicos ao longo do muro e de proteções similares já na parte do bairro do Humaitá. Uma delas, próxima à ponte antiga, emperrou no meio do trilho de correr e proporcionou um dos momentos mais ridículos que se tem notícia no quesito da gestão desse tipo de técnica já vistos (mal sabíamos que no ano seguinte a nova e mais potente enxurrada faria a mesma comporta emperrar novamente, antes de quebrar de vez, mostrando que o ridículo não podia ser subestimado).




As imagens - seja você de fora da cidade ou do estado - certamente correram por seus olhos de forma que não é preciso dar detalhes: áreas imensas da cidade foram tomadas por uma água marrom que atingia picos de mais de dois metros de altura em alguns lugares e fez riachos onde haviam vielas, novos rios onde estavam avenidas, córregos em becos e servidões e alterou o mapa do desenho padrão da cidade: "estamos aqui na Rua Santa Rita, na nova margem do Guaíba", me disse um amigo que estava recolhendo donativos e equipamento em um dos pontos de resgate e saída de botes salva-vidas, para me orientar sua localização, eis que eu sabia que ele estava operando no coração dos bairros Floresta e São Geraldo, área da casa de meus pais, onde morei por boa parte da vida e onde fica a mesma avenida Presidente Roosevelt, na mesma esquina com a rua Moura Azevedo onde está a, hoje reformada, sede do Clube Gondoleiros, lugar onde meu avô saltou de um segundo andar com estilo de campeão, em uma 'ponta', direto para a rua, e bateu uma foto em meio à leptospirose com amigos, sorrindo após o dever cumprido, naquela que poderia ser uma das primeiras incursões estilo blogueirinha da história da cidade, no século XX. Salvaram o dia. Tá pago. Mas: não estão rindo como quem debocha ou como quem inconsequentemente caçoa da própria penúria. Não fazem carão para a foto. Ninguém ia dar like (ou match). Riem porque vivem um momento único. Sabidamente surreal. Estão juntos para o que der e vier. Foram mais fortes que a catástrofe. Los tres amigos.


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Se quiser, faça o exercício de colocar no mapa e ver o tremendo trecho de bairro que estava basicamente submerso a partir dessa indicação (Rua Santa Rita, Floresta. "Nova margem" do rio). Não é fácil de acreditar.


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Não falarei sobre 'redenção' nem sobre 'resiliência' (tranquilamente uma das palavras por si só mais cansativas de todos os tempos, dado que evoca sempre algum discurso falsário meritocrático e cínico, quando não uma espécie de auto-ilusão mística perigosíssima). Pessoas perderam tudo o que tinham. Em áreas dos municípios vizinhos como Canoas, Eldorado do Sul e Guaíba, o cenário foi devastador e apocalíptico. Em bairros tão distantes e díspares da capital, como Sarandi (onde houve um rompimento de dique) e Guarujá (bem próximo a banhados que margeiam o rio) o alagamento foi desolador. No Humaitá, nos arredores da Arena do Grêmio, as pessoas ficaram vivendo em uma espécie de brejo por mais de um mês após a situação já começar a se normalizar em outros lugares. Isso para não mencionar o Vale do Taquari em larga extensão, com cidades que, em sentido literal, foram simplesmente varridas por um volume de água de dezenas de metros a mais do que o normal.


Quem passou por isso sabe o que viveu. Sabe o que viu. Sabe o choro que escutou, o que (e, por vezes, quem) nunca mais se achou. Sabe para onde não voltou e, se voltou, o que encontrou (e não encontrou) por lá. Meus pais foram socorridos de barco após um desligamento de energia que os deixou à beira da incomunicabilidade e da ausência de água e provisões.


Casas, estabelecimentos comerciais, restaurantes, prédios abandonados: tudo em certas partes da cidade (no São Geraldo, lugar em que querem construir o novo mais alto prédio do estado, com discurso de arrojo e sustentabilidade estilo 'fazenda vertical' - seja lá o que diabo - e onde há - ou havia - uma espécie de polo trending de inovação empresarial, por exemplo, é muito evidente) lembra a tragédia que ainda não se amainou. Ruas ainda cheias de areia, marcas de barro como linhas retas que insistem em não sair da parede, mau cheiro.


Quero falar, sim, dessa estranha conexão com meu avô, com quem sou tão parecido fisicamente (se você me conhece saberá com alguma facilidade dizer quem é ele na imagem que encabeça esse escrito), que nunca conheci em vida, de quem só escutei histórias e de quem colecionei relatos. Passei a me sentir mais próximo dele por uma bizarra e estranha conexão a partir do fato de que, mesmo eu não tendo dado 'ponta' alguma para o meio de rua qualquer (embora, modéstia à parte, seja bom nadador), vivenciei um pouco da loucura que foram aqueles dias onde ele, entre outras coisas, tinha à sua disposição nada mais do que a imperiosidade de aproveitar o viço da juventude para ajudar de alguma forma aquela desgraça absolutamente impensável, alguns amigos igualmente galhofeiros, corajosos e viris e alguém maluco(a) ou vivaz o suficiente para tirar uma foto que é absolutamente histórica, pela precisão de registro do mesmíssimo local há um ano igualmente inundado, tanto quanto pela questão de que agora não sei se a lenda ganha carimbo de realidade ou se é a realidade que se curva a toda e qualquer narrativa lendária sobre aquela época que automaticamente ganha crédito.


Carreguei e descarreguei caminhões, empilhei montanhas de roupas em pallets, separei itens, fui elo de corrente de garrafões d'água passando de mão em mão, tudo estranhamente com meu avô ao meu lado. Não quero usar a palavra conforto para uma desgraça tão gigante, mas alguma coisa que ele viveu permanece, alguma coisa tristemente periga permanecer e foi como sentir a flecha do tempo passando por dentro da carne, rumo a sua direção sempre incerta. A enchente de 24 nos costurou, todos juntos. Passou pelo meu avô. Senti no instante em que passou por mim.


UM FILME: filmado em larga escala nos arredores da casa dos meus pais, quando eu ainda morava ali, "O Homem que Copiava" de Jorge Furtado é uma cândida, por vezes deprimida, por outras safada e divertida homenagem à decadência do bairro São Geraldo e das pessoas que compõem sua paisagem diária. Sempre digo que a janela do quarto da Leandra Leal pode ser vista da sacada que era do meu, o que faz com que eu pudesse rivalizar na espionagem com o Lázaro Ramos. Inclusive o apto do Lázaro, no filme fica na esquina da mesma rua onde a foto do meu avô, e a que eu tirei, acima: o prédio segue na frente da antiga sede dos Gondoleiros, e é a mesma esquina. Entre muitas locações nas quadras adjacentes, há um encontro entre eles na praça do Cais Mauá, aquela, que referi, que não se pode nem chegar perto hoje em dia. Ficou para o lado errado do muro.


UM LIVRO: muito do que sei sobre a cidade foi contada pela experiência de micro-história (ou algo que o valha) mais divertida de todos os tempos, tal um catecismo bizarro e tresloucado que define uma época toda muito mais do que uma análise fria e apurada: "O anedotário da Rua da Praia" de Renato Maciel de Sá Júnior é uma coleção de historietas, verídicas em larga escala, mas com talvez algum toque de fantasia ou liberdades poéticas aqui e ali. É um verdadeiro almanaque de como Porto Alegre funcionava na primeira metade do século passado e há coisas que fazem o sujeito ter um tipo de colapso de tanto rir e há pessoas que você vai lamentar muito por jamais ter conhecido.


UM DISCO: "Alívio imediato", Engenheiros do Hawaii (muito embora o épico meio cafona "Anoiteceu em Porto Alegre" citado pelas tantas no texto esteja no álbum "O papa é pop" - sintomático nesse momento de Conclave, inclusive)

 
 
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