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Nós, da 'esquerda punitiva', sim.

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 25 de abr.
  • 7 min de leitura

Nessa madrugada, imediatamente anterior a esse texto estar indo para o ar, o ex-presidente da República Fernando Collor de Mello foi preso após os últimos recursos frente à condenação que ele havia sofrido no STF em 2023 serem definitivamente rejeitados, percorrido um caminho de quase dez anos entre sua denúncia no próprio Supremo (era 2015 e ele exercia o cargo de Senador da República), sua efetivação como réu (2017), as condenações iniciais (2023) e imbróglios a respeito da estipulação de sua pena, que duraram até coisa de dois dias atrás e sua detenção no aeroporto de Maceió, às quatro da matina. Em meio às principais acusações, a recepção de cerca de R$ 20 milhões em propinas entre 2010 e 2014 a partir da BR Distribuidora - uma subsidiária da Petrobrás - ainda como resultado de desdobramento da (cruzes, século passado) "Operação Lava Jato".


Entre uma vida de trambiques obscuros, muitos deles chinfrins (como o caso da Fiat Elba - jovens, pesquisem), abuso de poder, 'coronelismos' e apoio aos ideais e pessoas mais equivocados e tenebrosos da história brasileira recente, uma marca indelével: o confisco, em 1990, das poupanças dos brasileiros e o bloqueio de valores de outras aplicações de renda fixa (também chamado ironicamente de "empréstimo compulsório") como medida de liquidez do caixa da Fazenda e tentativa de "conter a inflação".


Eram anos estranhos onde a jovialidade, a beleza, a afeição por extravagâncias e práticas esportivas do presidente, seu caráter (supostamente) renovador que fugia do perfil dos ditadores e proto-estadistas de araque dos anos antes do retorno da democracia representativa, parecia fazer o Brasil estar ingressando em uma legítima nova era. A imprensa comprou forte Collor, esse símbolo de um Brasil se arrojando à era neoliberal, seus cavalos de pau de jet-ski no lago Paranoá, suas voltinhas em motos potentes, seu jogging nos arredores de mansão breguíssima onde ele vivia ao invés dos aposentos oficiais e mesmo seu jeitinho de figurante a ser assassinado logo no primeiro capítulo em novela do Bret Easton Ellis - o que inclusive combina com outro suposto hábito frequente que ele possuía, e o fazia fungar excessivamente entre pronunciamentos energéticos com olhos arregalados e uma mandíbula que parecia ter vida própria, por vezes.


Sim, as contas (conta, corrente, aquela que era para ser a tranquilinha, manja?) de boa parte da população brasileira foi bloqueada e tomada da noite para o dia (literalmente - e aqui uma piscadela de ironia que, da noite para o dia tenha, idem, não só se decretado a prisão compulsória quanto a própria dura, no aeroporto, tenha ocorrido) com a promessa de ser 'devolvida' gradualmente aos cofres das pessoas, na coisa que mais tinha cara de 'fundo perdido' de todos os tempos.


E, sim, novamente, caso pareça tão surreal a ponto de que você pense que não entendeu bem: boa parte dos brasileiros acordou quebrada, sem acesso a seu próprio dinheiro, que sumiu, numa manhã de abril (outra coincidência?).


Minha família sofre até hoje com os efeitos daquilo. Não é força de linguagem ou considerações mediatas ou especulativas. Não é que nem o papo das "netas das bruxas" que "não conseguiram queimar", porque as 'netas' no caso, é um estado político e metafórico de identificação - muito embora eu desconfio que os 'netos' dos que queimavam as bruxas são netos mesmo - descendentes não só morais diretos como consanguíneos em muitos casos, a ver. Refiro algo absolutamente direto e literal: a espiral de dívidas, empréstimos e rebolations variados em que meus pais se enfiaram desde aquela época ressoa até hoje em uma desconjuntura financeira estilo não uma bola de neve, mas uma multidão de bolas de neve descendo a ladeira, unidas a outras bolas que não conseguem ser empurradas acima, tipo a pedra de Sísifo.


Éramos da suposta, chamada - e, finada - 'classe média' que foi definitivamente aniquilada pela medida.


Eu teria todos os motivos do mundo para celebrar a prisão desse crápula (a condenação, inicialmente, é de 8 anos e alguns meses de xadrez - e, claro: já veio o laudo médico de ocasião, praxe nesses casos, atestando uma série de doenças dignas de almanaque que vai tentar fazer ele comer em casa, com café com leite, boa fatia desse bolo). Não nego que um patife como Collor, preso, ainda que momentaneamente, é muito mais justiça sendo feita do que ele full time solto e impune.


Mas uma prisão oriunda de um montante de propina que totaliza algo como 5 milhões ano (convenhamos, parece pouco ante os salários que alguns técnicos ruins do futebol ganham mensalmente e num mundo em que nos acostumamos cada vez mais com os bilhões ao invés dos milhões - quem quer ser um "milionário"?) e que nada tem a ver com o maior e mais canalha de seus atos, não me impressionou nem excitou tanto.


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Há muito tempo, já, quando iniciaram os procedimentos de investigação que culminaram com aquilo que historicamente ficou conhecido nos anos do Governo Dilma como "Comissão da Verdade", e fora suscitada a possível volta à tona de processos e medidas referentes aos responsáveis pelo período nefasto do Golpe Militar brasileiro, tivemos que escutar, de forma muito insistente (tanto quanto errônea) a questão de que eventualmente "prender antigos generais de pijama" não valeria à pena.


Havia, no caso, um misto de descrédito, despotencialização, suposto sentimento de 'página virada' e também uma coisa muito esquisita (mais afeita à área dos juristas, mas não só), que era a de rechaço, como algo desatualizado e despropositado, do que se passou a chamar de "esquerda punitiva". A ideia de que um discurso verdadeiramente progressista não deveria se pautar em absolutamente nenhum aspecto a partir de uma espécie de (a) uso 'vingativo' dos aparelhos jurídico-penais-estatais e (b) de que não se poderia manifestar uma espécie de crença ingênua na possibilidade de haver uma espécie de redenção do sistema penal quando ele fosse falsariamente usado "para o bem".


Sobre um desses aspectos, em tempos de Oscar e de neo-golpe tentado, parece que a (tal) ingenuidade e o progressismo viraram o fio, e não há quem em sã consciência que não apregoe que 1) anistia é o caralho, 2) crimes dessa monta não podem simplesmente prescrever e 3) a desresponsabilização deliberada dessas pessoas é causa de uma espécie de não-cicatrização que justamente impede que páginas sejam viradas de fato. Mas, sob certo aspecto, falar de militares é fácil. A questão é o discurso cotidiano.


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Fui forjado acadêmica e profissionalmente (e, quando não, ideologicamente, em alguns aspectos) em um ambiente onde a "esquerda punitiva" era vista como um mal tão grande quanto o próprio punitivismo reacionário convicto, em si - afinal, eram punitivismos, ambos: essa odiosa crença, esse abjeto fervor de impor sofrimento a partir de um orgulho meio fascista, meio bobo, de ver os estamentos penais funcionando para impor dor e privações.


Havia, segundo alguns, até um que de psicanalítico (e jamais a psicanálise foi aplicada tão despotencializada do que quando se pensava que ela podia ser um alicerce jurídico-garantista para um anti-punitivismo de forma simples) na tendência sádica em 'gozar' com a punição (sentido amplo).


Principalmente: se denunciava a tolice que seria colaborar para "manter vivo" /ou "engordar" a lógica punitiva inteira, ao se querer que contra a parcela mais rica, poderosa e perversa ela fosse aplicada com intensidade.


Por muitas vezes já me manifestei e escrevi sobre o fato de que, em relação a essa assunto, a coisa 'não é bem assim': sobretudo nesse texto aqui onde discuto (com bastante reverência, embora com críticas) um texto clássico de autoria de Maria Lúcia Karam que basicamente cristalizou o termo e suas circunstâncias, em nosso meio político-acadêmico e também no Capítulo 9 de meu terceiro livro - dá pra fazer donwload aqui, no próprio site (tem o botão 'downloads' ali em cima - que batizo, justamente, de um "Acerto de contas" por mais uma vez com a "Esquerda Punitiva".


O fato é: uma tentativa desenfreada de seguir querendo dizer que o panorama político e o discurso progressista devem ficar engessados nos anos 90 e no início dos anos 2000, somada a uma sinalização virtuosa de que você não vai defender esquemas punitivos para não se rebaixar moral e politicamente ao nível dos reacionários e a uma espécie de medo absolutamente infantil de que defender a prisão de salafrários das altas rodas faz automaticamente crescer também a repressão aos 'descamisados' (como se o sistema penal fosse organicamente um banco onde qualquer depósito de fé, em qualquer contexto, o fizesse necessariamente ganhar peso direto em termos de poder para ele terminar de agir para apenas um lado e isso fosse uma operação aritmética fácil).


Desculpem o excesso de franqueza, mas o punitivismo (diário, regular, assassino e orquestrado) dos miseráveis e precarizados não tem como "outro lado da moeda" o discurso - supostamente ingênuo - de se querer regozijar com os poucos exemplos de punição dos 'grandes' (tal e qual a plebe vibra e debocha com escândalos palacianos - para depois apanhar dos guardas).


O "avesso" da (mesma) moeda do morticínio dos pobres é a impunidade inata dos poderosos.


E isso nada tem a ver - e não legitima - visões draconianas, medievais, estúpidas e grotescas de anti-garantismo: não quero que haja descalabros contra Collor, Bolsonaro e tantos quetais. Mas recuso terminantemente a ideia de que apenas o fato de querer vê-los punidos já me faz ideológica, moral e filosoficamente igual a alguém que respira punitividade hidrófoba por todos os poros. Como se essa gente fosse tão blindada que é blindada até contra hipóteses.


Aqui não, truta.


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Então: estrou triste com a prisão de Collor. Queria muito ela. Mas queria que fosse por outra coisa, e por muito mais tempo. E, sim: está tudo bem. É sobre isso, sim. E não é preciso disfarçar nada.


UM FILME: essa é fácil, né? Não à toa que fora mencionado de relance, "Psicopata Americano", de Mary Heron, EUA, 2000, é baseado na novela de Bret Easton Ellis, um verdadeiro fanático por retratar o histrionismo ridículo e cruel que era o zeitgeist dos anos 80 e se foca na escrotice e no padrão neurótico dos yuppies de Wall-Street (uma padrão que Collor representava, ou queria representar, mesmo que de um jeito absolutamente jeca e ridículo) em uma fábula que é mais (acredite) uma crítica psico-social do que um filme sobre assassinatos. Magnífico. Há uma continuação meio apócrifa de 2002 (não vi) e um previsto remake para breve (possivelmente não verei).


UM LIVRO: ele volta e meia aparece por aqui, e não poderia ser diferente. Mark Fisher chega ao Brasil de novo, agora com "Desejo Pós Capitalista", transcrição de suas últimas aula em um curso sensacional que ele vinha ministrando (eram previstos 15 encontros, ele faleceu antes da metade), onde boa parte do material mais quente em termos de filosofia contemporânea e discursos idem era mobilizado para fazer o que ele sabia de melhor: se apoiar no presente para olhar para o passado recente para, daí, pensar o futuro.


UM DISCO: influência fisheriana? Talvez. Ele, que teorizada muito sobre jungle e drum n' bass: deu vontade esses dias enquanto corria de escutar "Timeless" de Goldie. Ainda que o cara represente um drum n' bass mais comercial, na contramão do que o professor MArk curtia, sempre foi um estilo que me chamou muita atenção, e parece nos conduzir para algum tipo de outro lugar, um outro cenário, onde dançamos e suamos - apesar de nossos braços prateados cyborgues.

 
 
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