Um brisa fresca soprava e o mar azul explodia em uma única onda - que beijava a costa com força e barulho - enquanto eu olhava pela janela quase na borda do trecho de estrada sem saída: assim foi o dia em que eu almocei em um restaurante ridículo de cool em Malibu, Califórnia. Tem foto para ilustrar a cena (e comprovar) e ela está postada logo abaixo (e que, como todas fotos do post, foram tiradas por mim e fazem parte de meu arquivo pessoal).
Vínhamos do norte, pela Highway 1 que volta a ganhar esse nome após alguns afastamentos da costa e uma mistura, pelas tantas, com a US 101 que foi nosso chão desde San Luis Obispo, no centro do estado, após um dia de mais estrada, desde San Francisco.
Antes do monstro - L.A. - uma parada na icônica Malibu (já nas cercanias do condado) para abastecer, comer algo e refletir sobre o que iria acontecer em alguns quilômetros.
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Sempre tive uma opinião que fora quase que literalmente (e me refiro às mesmas palavras basicamente na mesma ordem) exibida no incrível documentário "Los Angeles plays itself": Los Angeles é possivelmente a cidade mais documentada do mundo, embora você talvez não saiba. É possível quase intuir quando um filme é, por exemplo, ambientado em Paris ou em Nova Iorque sem jamais ter estado nessas cidades (ou sem imagens da torre ou da estátua que você sabe quais são), pela carga extrema de símbolos culturais e imagéticos: uma moça tentando graciosamente se comunicar com garçons de bistrôs (e falhando), de boina de tricô, andando de bicicleta por ruas charmosas? Paris. Outra, apressada entre bueiros fumegantes engolindo algo quase sem mastigar e equilibrando o café enquanto fala ao celular e atravessa a rua em meio a centenas de pessoas e carros? Nova Iorque - no máximo das concessões, Chicago.
Los Angeles é tão múltipla e tão alheia ao cenário usual que habita os signos da "Califórnia" metafórica (como palmeiras onipresentes - isso, bem: realmente há, bom dizer - e as praias com garotas andando de patins em biquinis coloridos), e é tão assustadoramente extensa no sentido horizontal, que parece infinita (em todas acepções da palavra). Não à toa o fascínio de tantos geógrafos, urbanistas e estudiosos críticos (como Edward Soja ou Mike Davis, por exemplo), para tomar a cidade como simbologia e como palco para digressões sobre espaço, tempo, lutas sociais, cultura e futuro. Naquele fantástico filme de Jim Jarmusch sobre vampiros (assunto da moda hoje em dia), o personagem de Tom Hiddleston chama os humanos de "zumbis" e agracia Los Angeles com o título de "capital dos zumbis", numa alusão à perdição humano-capitalista-egocêntrica e deprimente de nossa vida mortal. Ver Los Angeles iluminada à noite, de algum ponto alto, como os hills que imprensam Hollywood, é ver ao mesmo tempo o deserto, suas miragens e a esfinge (não o monumento - e seu nariz caído - mas a da mitologia, que lhe impele a ser decifrada ou a você, por ela, ser devorado).
Há muita coisa que você já viu por aí que é Los Angeles: por vezes um centro urbano frio e tecnocrático; por vezes hotéis de caráter tropical entupidos de celebridades bêbadas e cheiradas; por vezes, periferias miseráveis repletas, por vezes, de população negra, por outras, de população hispânica; bairros que emulam comércio e camaradagem de cidades pequenas; bicho grilagem e casas de praia que parecem daquele seu tio tido por esquisito na família, que foi morar na praia e viver das coisas que a natureza, etc.; outras, palacetes herméticos que gritam old money e são habitados sazonalmente por pessoas que ditam rumos de economias e guerras. O melhor cachorro quente que você já comeu, no lugar mais simples (beirando o insalubre). O - poucas quadras ao lado - restaurante mais caro e badalado do momento, servindo aperitivos a preço de banquetes. Lugares, quadras, ruas, bares inteiramente étnicos do tipo que você é malvisto se não for filipino, coreano, guatemalteco, armênio.
A esfinge é mutante e indecifrável. Invariavelmente sempre ganha o jogo e nos devora.
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Los Angeles me influencia desde minha tenra idade. Sou fã de skate (Os Z-Boys de Dogtown, especialmente e, sim, ainda), de surfe (a influência do filme "Caçadores de Emoção" na minha vida é inverbalizável), dos Beach Boys, do glamour hollywoodiano. Filmes antigos que meu pai me incentivava a ver e me amadureceram antecipadamente ("Crepúsculo dos Deuses", por todos). Filmes "novos" (sobre tudo e todos: "Boyz n' the hood").
Depois, na pré-adolescência e na adolescência, em si, veio o punk-hardcore do NOFX ("Punk in Drublic", divisor) e do Bad Religion, quase ao mesmo tempo que o gangsta rap de Dre. (O "Chronic" resume absolutamente tudo), Snoop, Tupac. Os Chili Peppers e Jack Nicholson sempre apareciam nas quadras e/ou usando regatas dos Lakers e parecia ser correto escolher torcer para essa equipe dentre as transmissões iniciais dos jogos da liga de basquete americana que a Bandeirantes começava a exibir às sextas feiras, por mais que só se falasse nos Bulls de Michael Jordan. Havia inclusive um cara que era tratado por "Mágico" e outro de sobrenome muçulmano que usava óculos para jogar e parecia ter três metros - o time era esse, não adianta.
Mais tarde a literatura e John Fante narrando sempre a mesma pessoa, ainda que sempre diferente, vivendo numa Los Angeles que parecia ser a de agora, e cujas agruras pareciam ser as minhas, com muitas décadas e algumas milhares de milhas de diferença. Os policiais e as intrigas daquela cidade que parece sempre guardar algum segredo. O sol que é constante mas parece sempre um intruso. A morte da Dália Negra e John Lennon - a essa altura um símbolo novaiorquino de 'licença' - enlouquecendo na noite do Rainbow, pareciam habitar o mesmo espaço-tempo. Os tumultos quando os assassinos de Rodney King foram absolvidos. A "Estrada Perdida" e "Mulholland Drive", de David Lynch (sempre David Lynch). Tarantino e sua coleção incontável de vagabundos. A efervescência (para quem nem entendia o significado cultural desse termo, mas podia senti-lo nos olhos).
E havia o mar. Não qualquer mar. O Oceano Pacífico, o mar oposto a tudo o que eu conhecia de mar. Quase uma promessa, um mito. E a marra atinente ao espírito litorâneo. Não me imagino idealizando e fantasiando com qualquer lugar longe de algum trecho de mar.
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Conheci Los Angeles com uma devoção até meio ridícula, se vista friamente.
Uma primeira conclusão feliz é que a demora para visitá-la valeu à pena: uma ida (impossível sob vários aspectos) quando era mais novo me apanharia com menos referências - embora eu devore tudo sobre a cidade há mais tempo que você suporia e que seria recomendável, garanto. Não sou refratário aos Estados Unidos, e igualmente não sou um entusiasta. Quase sempre não tinha dinheiro para qualquer tipo de aventura como essa. Quando passei a ter, já na vida adulta, agarrado pela minha própria unha, por vezes não tinha oportunidades. Quando se aliaram algumas vezes dinheiro e oportunidades, priorizei outros lugares. Os "Estados Unidos" são uma coisa na minha afetividade. A Califórnia, e Los Angeles, outra.
Ao contrário e incompatível com o universo de piadas e ironias meio enfadonhas que sugerem acompanhar um tragédia em algum país hegemônico com um ar de satisfação meio estúpido e insolente, vejo com tristeza parte da cidade ser consumida nesse início de janeiro por uma combinação de ventos secos alucinantes com queimadas que promove verdadeiros furacões de fogo. Lógico: quem não ri frouxo e/ou solta o afamado arzinho pelo nariz ao saber que celebridades que primam por reacionarismo burguês e discursos de ódio branco e heteronormativo (além de negacionistas climáticos) se deram mal, está meio morto por dentro. Mas fingir que está tudo bem um negócio desses (por ser nos Estados Unidos) é um tipo de performance de cinismo (e vida consumida pela dinâmica de replies e memes) que está contaminando demais as redes sociais, e uma prática da qual quero total distância.
A sensação é um misto estranho de pena com um certo alívio por ter vivido e visto com os próprios olhos tanta coisa. É o exato misto de saber que o fogo se alastrou por Westwood e Brentwood, comunidades ultra-bilionárias onde, não muito longe, se localiza o The Getty, um museu-cidade-espetáculo cria de uma fundação de outro desses hecta-trilhardários querendo possivelmente purgar a culpa inata ou ser visto pelas letras douradas da história oficial como uma espécie de herói. Whatever: monumento tanto do absurdo da desigualdade social quanto de tudo o que o dinheiro pode fazer em termos de bom gosto, o lugar é apaixonantemente lindo. É lindo no nível que dá dor de cabeça. E enxerga a esfinge de cima de um modo até tranquilizante, quase de igual para igual.
UM DISCO: não é bem disco o que indicarei hoje, mas uma proposta (lá vem). Uma tradução contemporânea incontornável do espírito frenético, perturbado, jovial e meio ensimesmado e egocêntrico da cidade é inegavelmente representada pelos Red Hot Chili Peppers. Mas deixarei de dica, na verdade, uma série de vídeos de Youtube com os trechos de guitarra de John Frusciante isolados e solitários. A qualidade técnica de Frusciante despida do resto da banda se revela como falha - meio tosca, até em vários momentos - e áspera, mas descasca outra camada sublime e linda de suas ideias, que parecem trilhas sonoras perfeitas para o que se pode encontrar sob o sol daquele trecho de mapa. "Scar Tissue" eu jamais conseguirei a partir de agora ouvir se não assim
UM LIVRO: leia "Pergunte ao Pó" de John Fante. É, é só isso. Simples assim. E se puder dizer mais uma mísera coisinha: pelo amor de deus, fuja daquele filme de 2006. Não assista sob nenhuma hipótese.
UM FILME: "Under the Silver Lake" é um filme longo, cansativo, por vezes pedante e, por outras, como medo de se levar até às últimas consequências (e assim debochar de algumas das próprias incongruências). Se após isso sobrou ainda em você alguma vontade de assistir, saiba que ali se encontra um estudo/tentativa de mapear uma Los Angeles ainda não tão escrutinada, que é a do pós-hipsterismo da região de Silver Lake/Echo Park pós-anos 2010. É quase uma crônica sobre a cidade, com muita verdade entre algumas doses de bobagem meio além da conta.