É o fim
- Gabriel
- há 2 minutos
- 7 min de leitura

Cansado.
Estou cansado.
Afirmação válida para qualquer dia em que você estiver lendo isso, eis que, embora o 'futuro a deus pertença', estimativamente é o que se pode dizer, dado que estou sempre cansado.
Eu estava altivo, divertido e falante quando nos encontramos? Enganei você (opcional: inserir um "Rá'" antes da frase). Eu estava cansado.
Isso não vai virar uma ladainha a respeito de uma suposta inversão de valores onde eu ser alguém que experiencia o pleno emprego e que tem saúde nas pernas, em pleno 2025, pareceria algo supostamente ruim ao invés de bom, mas: por deus. Corro demais, viajo demais, trabalho demais e durmo de menos.
É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim disso? A frase já é famosa, mas vou agudizar ela: no que até uma hipótese de ter que se virar em pleno apocalipse soaria mais lógica, justa e (sob certo aspecto) faria mais sentido, do que a vida 'normal'?
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Escrevi algumas linhas similares às abaixo redigidas pouco mais de um ano atrás, quando ainda usava o Twitter. O direcionamento explícito da plataforma e seu dono me fez abandoná-la ano passado depois de 14 anos de uso ininterrupto, e mesmo de vistas grossas quanto a direcionamentos não assumidos, mas bem evidentes, e cada vez maiores problemas que o veículo em si estava demonstrando.
Como estamos às voltas com a 2a temporada da série "The Last of Us" (objeto da reflexão, à época), e como mencionei isso esses dias de relance no Viracasacas e, ainda, como acho isso pertinente demais para ficar apenas numa timeline perdida de um site bizarro, aparo algumas arestas dos posts, agora em um formato deluxe, (ou reboot) na forma de texto. Eis:
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Não sei vocês mas quando vejo/leio ficção sobre essas hipóteses (frequentemente parecidas em termos de clichês e aspectos) de "fim do mundo"/zumbis/gente vagando a esmo/prédios cobertos de folhagens e carros enferrujados silenciosos pelas ruas, me permito sentir uma coisa que alguns vão achar meio bizarra, mas ok, lá vai.
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(...) Doutor, esses pensamentos se manifestaram, por exemplo, quando, há muito tempo, li "A estrada", de Cormac MacCarthy, 2006, e quando vi o filme baseado no livro, de 2009 - que podem ser descritos como parecidos com o mote central de "The Last of Us", embora mas bem mais sombrio e pessimista. Os autores do jogo e colaboradores-desenvolvedores da série televisiva usaram "A estrada" como uma das referências sobre o tipo de mundo pós apocalíptico que queriam exprimir, segundo consta, inclusive (...)
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Embora tenha sido marcado demais quando criança pela adaptação para filme dos quadrinhos do "Akira" e pelo visual de uma ideia de século XXI tal como em "Blade Runner", e de ser alguém que cresceu entre a possibilidade latente de uma guerra fria virar quente - ao nível de derreter a todos (outro filme maldito do período é o vaticínio "The Day After", 1983, que sugeria como seria um cotidiano de um conflito nuclear onde os famosos "botões" automáticos foram apertados pelas grandes potências. Traumático) e as profecias de Nostradamus interpretadas no Fantástico, domingo (aquilo dava medo, e não raro eram especulações que sempre giravam em torno do tema do "fim dos tempos"), eu sempre vivenciei uma espécie de simpatia - quando não um tipo meio mórbido de atração, por aquela hipótese de sobreviventes-fazendinha. Um armagedon meio kolkohze, um tipo de chacrinha comunitária imposta pelas condições, digamos. Ou mesmo a pura e simples ausência de compromissos que não relativos ao que interessa estritamente a necessidades e interesses tácteis que são genuínos, naturais, fisiológicos. Evidentes. Cut the crap.
Inclusive é um dos motes-ideias que permeou minha tese de doutorado (dá pra baixar o livro que se originou dela aqui mesmo, nesse site): a versão do conceito individualista-contratualista e mesquinho do que muitos entendem por 'liberdade' hoje em dia (espécie de pista livre para que corram direitos que não correspondem, jamais, a deveres) prevaleceu tanto sobre outras faces e vivificações da palavra que, para visualizarmos laços de irmandade/comunidade seria necessário as pessoas experienciarem coisas da magnitude de uma catástrofe extrema (algo que a pandemia tristemente desmontou em larga medida, eis que, alguns, nem no câncer - como diria o Otto Lara Resende metafórico da cabeça de Nelson Rodrigues - nem na maior catástrofe - estilo vilão milionário fugindo do Titanic com um chumaço de dólares no bolso e foda-se. "Foda-se a vida").
O fato-hipótese é: você não sente (em alguma, ainda que mínima porcentagem) uma certa inveja de personagens que possuem como única e exclusiva tarefa diária trabalhar pela própria sobrevivência, ajudar de forma direta seu grupo, e proteger/ser protegido pelos seus amados(as)? Fazer algum tipo de trabalho que corresponde a uma obrigação útil e visível pela continuidade da comunidade onde você se percebe, assim, inserido de forma real, carnal? Ter alguma responsabilidade que se reverte em algo palpável e decididamente crucial? Mesmo quebrar as costas cortando lenha (desde que ela sirva para fortalecer um muro que vai ajudar a todos, ao invés de ser vendida de forma a te retornar uns míseros trocados que servem para pagar o aluguel), ou mesmo acordar cedo no frio (para pastorear animais ou cuidar da horta que vai prover comida imediata), aliás, como todo mundo ali, idem, sem divisão classista, puramente?
A quantidade de broncas, empenhos, tarefas e obrigações que temos, por dia, por hora, por minuto, que são atenção às questões de outras pessoas e que não revertem em nosso prazer, bem-estar, e melhoria (em algum aspecto), é bastante deprimente (e injusta, até).
Nas visões marxianas - e marxistas - da alienação do trabalho cotidiano que se tornou corriqueira em várias matizes em nossa vida (para além da noção formal de trabalho enquanto 'emprego', chegando a outros aspectos de uma cadeia 'produtiva' onde 'trabalhamos', incessantemente) e na abstração máxima representada pelo dinheiro (que deixa de ser uma representação de qualquer coisa para se tornar o valor e sua medida, em si, e vira objeto fundamental sobrepujando o que quer que seja que ele visava significar, enquanto troca), um buraco basicamente incontornável: a desconexão com a razão de tanto labor e o ausência de visibilidade de um 'resultado' (cada vez mais rarefeito e afastado da hipótese básica) nos mantém na roda por um critério que termina sendo, ironicamente, um tipo fake de 'sobrevivência' (enquanto sinônimo de salário) e só.
Fim do mundo/Fim do capitalismo intensifies.
Vendo a nova temporada de "The Last of Us", esses pensamentos voltaram: não há trabalho alienado e não há dinheiro na cidadela no meio do Wyoming onde parte dos sobreviventes se encastelaram numa comunidade digna em que há divisões de patrulhas, tarefas, funções de gerência e a corporificação de ideias como as de trabalhar todos, na medida do possível, produzir em conjunto, distribuir o que tiver que ser e oferecer/cobrar empenho num esquema que é pautado, na menor hipótese, pelo binômio necessidades/capacidades e, na maior, em um elemento muito direto: tentar evitar que todos morram.
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Talvez haja um furo aqui no instante em que isso poderia significar algum tipo de organicidade compelida pelas circunstâncias (bem, é isso ou, enfim: zumbis contaminados por fungos) e nada mais. Porém: uma sociabilidade - e um trabalho - mediados por um critério orgânico de sobrevivência literal e por uma estrutura funcional que dê conta disso já parece melhor sob vários aspectos do que uma verdadeira selva de cinismo egoísta onde nem isso, por vezes, impõe a alguns a realidade de que integram o mesmo time em algum grau. Fora que: o trabalho cansativo, exaustivo, como um saco sem fundo para depósito de energia, cujo resultado (fora o dinheiro do salário) você não vê e não sente qual o grau de sua real utilidade e contribuição, não é, ele, mola propulsora de nada mesmo.
Do mesmo modo, dizer que em uma realidade dessas vai haver apenas um regime de colmeia automatizado militaresco, e que relações de afeto e solidariedade in natura não podem ser facilitadas e desenvolvidas a partir de coisas como reconhecimento, pertencimento e trabalho frutífero, conectado diante disso, ser a tônica da permanência de todos ali, é também um tanto quanto irreal - em hipótese (deixem a possibilidade de fungos e zumbis longe, por hora).
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Há uma cena em que a única psicóloga local, que oferece o único e melhor serviço que pode oferecer diante de sua potencialidade laboral - e o faz em troca de maconha - assiste um arremedo de jogo de baseball entre as crianças locais. Penso muito nisso porque (1) é uma cidadela no meio do apocalipse, como assim, baseball? e (2) é uma cidadela no meio do apocalipse, então, em momentos de folga, baseball, sim (embora jamais tenha conseguido compreender esse jogo).
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(No Twitter, à época, apareceu um hater ou algum desses reply guy infelicíssimo que sugeriu que eu estava querendo meter o atestado naquela semana e por isso mandei o papo de que um 'apocalipsezinho seria uma boa', e, ora, onde já se viu)
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O fato é que o que no mundo de "The Last of Us" soa como 'outro planeta' não é tão mais a presença possível de monstros do que a inexistência de medida-dinheiro e de trabalho nos moldes alienados que tristemente normalizamos. Chega a ser irônico como zumbis e outros perigos 'exteriores' são fáceis de imaginar com uma certa dose de realismo. O resto, chega a parecer que não.
Enfim.
Cansado, sabe? (já falei?)
UM LIVRO: fique com o do McCarthy referido ali em cima. Assim: não é exatamente alto astral, já aviso (mas lembro que, em um pique parecido com o que aqui expus, lembro de ler um cara comentando na internet que tinha inveja do personagem por ter tanto tempo livre para ficar com o filho. Mais um que hipoteticamente precisaria de um fim do mundo para realizar um desejo que devia ser simples).
UM DISCO: o Pink Floyd lançou uma versão nova e remasterizada - e agora como disco, em áudio, nas plataformas - do seu show em vídeo famoso "Live at Pompeii". Quem poderia ter a ideia de gravar um show para 'ninguém' em um picadeiro em meio aos escombros romanos da Pompeia devastada? A banda que nos anos 70 estava às vésperas de lançar o "Dark Side of the moon", claro. Que grande momento viviam (não me alongo pois pretendo falar sobre isso outra hora).
UM FILME: poucas coisas são mais assustadoras e grandiosas que o fim inevitável que (literalmente) se aproxima em "Melancolia". E poucas mensagens são mais sutis sobre quem é mais capaz de assimilar isso com uma calma comovente. E poucos filmes são tão bonitos de um jeito que flerta com o perturbador.