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Versões

Foto do escritor: GabrielGabriel

Escrevo esse texto mais à moda antiga do que se pode suspeitar apenas por lê-lo. Moda antiga tipo blogs raiz: o relógio avança já no dia seguinte, tudo está silencioso e tenho que fazer muita coisa que não condiz com os minutos gastos para essa pequena reflexão, mas whatever. Amanhã tenho que acordar cedo para pegar um voo, inclusive. Lembro de uma vez que precisava fazer uma contestação de nível "esqueça, nunca que o juiz vai___" e pelas tantas eram muitos detalhes e teses a serem enfrentadas/expostas. Madrugada e eu fiz um texto para o blog. Era algo como 2003 ou 2004. Foi como respirar. Tipo se exercitar fisicamente como uma estranha forma de neutralizar outros cansaços. Serviu. Funcionou.


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Estou lendo o livro "Ainda estou aqui", de Marcelo Rubens Paiva. Creio ser um bom complemento para o momento de hype glorioso do filme e a aclamação de Fernanda Torres em tempos de premiações globais. O que chama a atenção é justamente que a obra é um apanhado de memórias sob a forma de crônicas freestyle que foram linda e gentilmente transformadas em uma narrativa posta sobre a história de uma família. O livro igualmente conta uma história, mas longe de ser algo sequer próximo de um roteiro de filme.


Na cena (do filme) cuja força já ganhou o mundo e os comentários, uma reportagem sobre a situação que envolve a família se encerra com um pedido de uma fotografia e uma curiosa solicitação para gerar um quadro dramático mais preparadamente intenso: solicitam a Eunice e aos filhos/as que se mantenham sóbrios, quando não ensaiadamente tristonhos para compor o tom da matéria. A matriarca se recusa e incita todos a sorrirem.


No livro, a questão não é narrada primeiramente de forma específica por Marcelo, e sim como um conjunto de ideias. Está em um dos primeiros capítulos da Parte I do livro: ele discorre sobre o fato de que sua mãe jamais aceitou a posição de uma vítima que dá aos algozes o gosto de mais essa vitória. "A família não foi mais vítima da ditadura que o próprio país". Não apareceriam jamais fracos e chorosos. Um compromisso. Algo de se notar tal uma estratégia de relações públicas dessas pessoas que foram jogadas para o debate público - mais, cívico/democrático - sem quererem. Após, o próprio livro se encarrega de descrever o dia da foto, e os semblantes e a ironia meio cruel da coosa toda, mas complementado pela ânsia e ímpeto já descritos. Sob as lentes, é uma única composição, pois assim deve ser.


Há um esporte sobre o qual pouco entendo - beisebol - e há um filme do qual gosto muito - "Moneyball" - que explora um enredo envolvido com esse esporte. Nele, Brad Pitt interpreta um ex-atleta e promessa (não cumprida) da modalidade, que, como manager de uma equipe (Oakland A's), encontra uma notoriedade marcante, ao desenvolver um peculiar e revolucionário método de contratação, dispensa e aproveitamento de jogadores baseado em uma leitura e combinação de estatísticas como nunca antes fora feita. Um dia por curiosidade tive a chance de ler o livro: que surpresa positiva. O livro só torna o filme mais divertido porque é uma espécie de biografia, não do protagonista, encarnado por Pitt, mas da própria metodologia por ele desenvolvida, e da própria mania (agora recorrente) de uso aprofundado de estatísticas para as finalidades esportivas no geral. A história da faísca do manager que decidiu ir contra a maré (e literalmente 'mudar o jogo') é um pano de fundo para algo contado muito mais como uma matéria expositiva do que uma romantização do protagonista. Elegeram um viés de "Moneyball" - o livro - para ser recortado e montado de outra forma quando apresentado como "Moneyball" (o filme). À imagem e semelhança, poderia ser um bom documentário. Com liberdade de adaptação, virou um filme-pipoca boa praça.


"Ainda estou aqui" (o livro) é uma coleção de recortes de memórias de um membro de uma família. Alguém decidiu contar a história dessa família, e tem no livro um quebra cabeças que não será montado até o fim, ou um brinquedo de Lego com uma proposta original, que, após concluído tal uma tarefa mecânica e linear, quase que invariavelmente convida as crianças (e os adultos) a montarem - com as mesmas peças - algo mais original, interessante, instigante ou simplesmente diferente, por recombinação.


Walter Salles, diretor de "Ainda estou aqui" - enquanto filme - teve coragem suficiente para mexer com um clássico incomensurável de toda uma geração (de muitas, em realidade) e trouxe para as telas, certa vez, uma versão de "On the road". Choveram críticas de vários lados (eu considero uma adaptação honesta, possível e que dimensiona bem a história em um outro formato alheio ao para o qual ela fora pensada). Se levado o purismo ao limite, nenhum livro deveria virar filme, jamais. Porém, se visto aquele não como uma tentativa de reprise de "On the road" e sim como um "On the road", não vejo como não ser palatável. As pessoas não costumam ter problemas com adaptações afetadas, ensandecidas e exageradas de absolutamente todo produto cultural possível para o tipo de teatro estadunidense que ganha o epíteto do trecho de avenida onde costumam ser encenadas: na Broadway (assim como em "Las Vegas" - mais um estado de espírito que uma cidade), há uma tolerância intrínseca da opinião dos ferrenhos críticos, por (parece ser) um automatismo em suspender a descrença (ou em relaxar) em relação ao fato de que ali se encena, expõe, propõe algo que decididamente não é o seu filme, livro ou mesmo outra peça favorita (mesmo disco: soube de um espetáculo da Broadway que encena - veja bem - "American Idiot" do Green Day, por deus). Há por lá atualmente rolando uma versão de muito sucesso de "O beijo da mulher aranha", cujo olhar na versão filme, de Hector Babenco, supera e muito (como leitura "oficial") o próprio livro original de Miguel Puig. Ninguém parece preocupado em defender, frente às Broadways da vida, a dignidade ontológica dessas obras. Relax.


O fato é que o perspectivismo é uma coisa bonita e útil para o amadurecimento. Aceitar a ideia de que um ponto de vista e uma situação em si podem mudar o panorama de diretrizes, vieses e prioridades a partir do qual uma coisa pode ser contada - sem abalar seu tom de 'verdade' - é impressionante. Há verdade (ou pode haver) quando se resume algo, quando se enfatiza algo, quando se negligencia ou minimiza algo. Não há que se ter uma sanha reprodutiva amorfa. Não existimos reproduzindo coisas como o pequeno robô de Star Wars que guarda dentro de si uma mensagem na forma hologramática. Nossa versão, para tudo, é única. Assentir isso enquanto recurso artístico e enquanto - insisto no termo - proposta, é uma ferramenta estupenda.


Em 1998, sabe-se lá porque (a falta da velha pessoa que faz a função de colocar uma mão no ombro e dizer "amigo, não"?) Gus Van Sant decidiu (e alguém mais criminoso ainda o bancou para isso) refilmar "Psicose", de Hitchcock, de um modo literal, absolutamente bizarro. Talvez uma crítica ou exercício sobre a questão do consumo/reprodutibilidade da arte? O resultado é catastrófico. Não traz nem diz nada. Da mesma forma que o livro que entusiasmadamente recomendei a vocês lerem, alguns posts atrás, junto com minha advertência severa para que ninguém perca tempo vendo o filme: "Pergunte ao pó", de John Fante - e de Robert Towne na tenebrosa aventura fílmica. É uma sucessão de cenas, apenas. É uma tentativa de condensação de uma história inteira num filme tratado apenas como espaço para tanto. São partes de um livro explicadas em um tutorial visual em ordem cronológica. Péssimo. Ofensivo.


"Duna", de 1985 passa por esse problema: uma ideia de montagem de algo como quatro horas foi ordenada por um canetaço de estúdio a parecer mais razoável e qualquer coisa que você queira com aquele festival de baixo orçamento (ainda com uma que outra opção estética interessante - adoro o visual das Bene Gesserit ali conferido) depende de uma prévia leitura do livro (ao menos do tomo inicial, que é onde o filme todo se desenrola em velocidade recorde despido de qualquer nuance). É uma salada de frutas absolutamente mal resolvida e meio constrangedora. Villeneuve adaptou com sucesso o mesmo tomo em dois filmes de quase três horas cada, e apesar da lindeza visual e da emoção que atinge picos, foi obrigado a dar cavalos de pau e construir novos tuneis por conta própria. Nem dinheiro infinito e a fina flor do primor técnico resolve 100% de certas coisas.


É claro que no caso do livro de Fante, no de Kerouac, e mesmo no de Herbert, há uma sanha incontrolável de buscar a obra tal e qual um bloco de anotações do fiscal de trânsito e exibir os pontos de equívoco, um por um. Mas que tal se soubermos diferenciar outra coisa: quem está propondo contar uma história com personalidade e sem negar ou esconder no edredom o seu olhar, e quem está simplesmente enfileirando cenas? É a mesma diferença entre cantar no tom e apenas recitar as palavras da letra de uma canção na métrica exigida pelo ritmo. Ou de decididamente mudar o tom e a métrica. Propor. Brincar com.


Mais uma vitória para o desde logo já maior triunfo do cinema nacional em muito tempo (quiçá todos os): é baseado em um livro? Sim. E não. Até porque ele gira (e representa, segundo Selton Mello que vive o personagem) uma pessoa que tecnicamente não está mais aqui e que ganha um corpo a partir de um olhar, de um jeito de ser retratado, de algumas ênfases e de muitos silêncios. Mas a versão como é contada nas telas o faz estar, de várias formas, para todos os presentes (no enredo, dentro da tela, e em frente a ela). O livro é a visão de um Marcelo criança, depois adolescente, depois jovem adulto e depois tutor da própria mãe. O filme sai dos poros disso. Um enriquece o outro, não reproduz.


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UM DISCO: e "O Mundo dá voltas", novo e finíssimo disco do Baiana System, hein? Repleto de batuque, brasilidade, latinidade e participações especiais que somam demais. Tem inclusive um lindo "álbum visual" para complementar a audição.


UM FILME: assisti "Conclave" e para além das questões de enfrentamento óbvio e quase caricato entre os cardeais progressistas/liberais e conservadores no seio de um Vaticano em polvorosa para a escolha de um novo Papa - e para além também de algumas surpresas que o filme reserva optando pelo recurso até meio covarde do "plot twist" ou surpresinha na manga, ao final, as atuações de Ralph Fiennes e Stanley Tucci dão um tom seguro e de classe à coisa. Funciona.


UM LIVRO: estou no meio dele. Quando terminar, haverá sinais.

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