"Meu nome é Enéas"
- Gabriel
- 23 de mai.
- 9 min de leitura

Algumas pessoas já me perguntaram porque não são habilitados comentários aqui (de forma subjacente à pergunta de porque eu não aderi inicialmente ao substack para escrever nesse formato). Acho que isso é uma resposta inicial. Aqui vai.
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Dia desses, o Pink Floyd divulgou no Spotify uma versão nova e remasterizada e sonora do seu famoso filme/exibição "Live At Pompeii", um show que guardo com muito carinho na retina (via TV, feliz ou infelizmente) eis que ganhei o DVD de aniversário de uns camaradas certa vez, e, se pode dizer, é uma das experiências mais catárticas que é possível ter em termos de um concerto de rock.
Mesmo com todos os fatores relativos à qualidade sonora (a banda estava em seu auge técnico, e fundamental para a consolidação do seu estilo definitivo, e estava - aparecem imagens disso - em meio às gravações do seu mais icônico trabalho, "Dark Side of The Moon", ainda que para o meu gosto nada se compare ao "Wish you were here"), às performances (todos integrantes vivem momentos de destaque individual esplendoroso em algum momento da película) e ao próprio visual da banda (setentismo em seu ápice maior) e ainda à fotografia (a montagem e o enquadramento são igualmente de se aplaudir de joelhos - misture os brocados), não há como negar que o charme maior da apresentação se dá por um inusitado e insólito direcionamento criativo: ela é 'para ninguém'.
É basicamente um show do Pink Floyd filmado em sua carcaça, com fios, aparelhagem e técnicos de som à mostra, enquanto os integrantes no centro de um anfiteatro etrusco nas ruínas da Pompéia antiga se exibem para um total de zero espectadores. Os entrecortes de imagem com peças arqueológicas do local onde o Vesúvio e suas lava fizeram dar ruim para a população local em 79 d.C. são presentes freak e espontâneos em meio aos solos e às longas tomadas de digressões que músicas que parecem pastosas e intermináveis ao estilo que consagrou o quarteto.
É tanto travessura estilística quanto prova dos nove: uma banda tocando em um cenário aterrorizante (sob vários aspectos), tétrico (há pessoas endurecidas em rocha na posição em que estavam na época que as cinzas varreram tudo, por deus) e inebriante, sem qualquer interferência ou arroubo de plateia, e sem necessariamente compromissos típicos de festivais e logística atinente. Parece um ensaio esquisito - embora o ensaio mais intenso da história da banda. É um show para todos, e para nenhum. É para eles mesmos em um dado momento. A tomada de "Echoes" que vai descendo lentamente sobre o local como se estivéssemos na garupa de deus que flutua para ver que diabo está acontecendo naquele pedacinho estranho da pálida esfera azul é arrepiante.
É como naquele filme menor e menos incensado (eu, a contrário senso, acho magnífico) dos irmãos Cohen, "Queime depois de ler", onde um pequeno trecho de vida compartilhada por acasos bizarros entre um bando de pessoas comuns e um tanto medíocres é visto (em uma piscadela ao espectador) se encerrando com uma tomada aérea que parece sugerir que alguma divindade majestosa dedicou algum tempo de sobra para observar meia dúzia de pessoas tal e qual uma fazendinha de formigas em um recipiente de vidro. A ausência de espectadores em Pompéia naquele dia (ou a presença macabra dos espíritos do local a partir de estátuas sisudas filmadas com constância) sugere algum tipo de vigília ou espionagem, em um modelo diferente de se sorver um espetáculo de música - ainda que, despido de apoteose típica de fã, se pode dizer que é uma bela sacada de um vídeo promocional de orçamento paquidérmico, e só.
Dizer que o Pink Floyd fez seu maior show "para ninguém" é igualmente um cinismo e um maniqueísmo típicos de quem quer favorecer a banda. É uma peça artística altamente perfeccionista, editada, e dirigida - o contrário da verve atraente de um show, onde as pequenas diferenças e fatores inesperados compõe a unicidade. Foi um show "para ninguém", mas pensado em ser um produto para todos.
Essa é uma imagem interessante: em seu show mais ousado e elogiado comercialmente como um produto, o Pink Floyd não estava 'conversando' com ninguém, senão que promovendo um exercício de exibicionismo unilateral que é um tanto narcisista, mas inegavelmente uma puta de uma ideia que permitiu, inclusive, sua execução brilhante.
Algo que guarda uma estranha similitude com o fato de que Lady Gaga fez um espetáculo para algo como um milhão e seiscentas mil pessoas, superando (supostamente) o público de um milhão estimado que Madonna ano passado e Rolling Stones (há algo como vinte anos atrás) tinham colocado na mesma faixa de areia que engloba a orla toda de um bairro e um tantinho de outro na Cidade Maravilhosa. Sem querer quebrar qualquer clima e maltratar a excitação dos presentes que viram um tremendo statement visual (pude assistir pela TV e foi grandioso, de fato), alguma coisa se conecta no instante em que - descontado o momento sublime em que Gaga foi dançar junto à grade e interagiu diretamente com o público - o fato de ser o maior show em termos de público de sua carreira (da história?) não muda muita coisa no sentido de alguns elementos pensados em detalhes que não fariam a menor diferença para a pessoa que esperou 14 horas na distância da altura do Morro do Leme. A vibração responsiva de tanta gente certamente impacta a artista (vídeos do público fazendo coro e da impressionante trovoada dos leques são lindos), mas mesmo diante de quase quatro milhões de olhos in loco, vê-se que o show foi pensado para ser o mesmo produto que ela vai apresentar em um estádio ou casa de concertos com uma proporção de 20 vezes menos público. É o show que ela apresentará na temporada, cronometrado de mesmo modo, inclusive. Foi "para ninguém" também, de certa forma. Alguns gritos de "Brasil" e acenos visando os telões espalhados na praia (Gaga é conhecida por ser simpática) não mudam isso.
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DIGRESSÃO
Eu estava no show dos Rolling Stones em questão (e sempre conto que cogitei não ir - embora estivesse hospedado a uma distância agradável para andar a pé até o evento - dado que fui num ensaio da bateria da Mangueira na noite anterior e bebi com uns camaradas algo como umas 45 latinhas de cerveja e o resultado desastroso na manhã seguinte só não me demoveu porque pensei comigo "Keith Richards acorda desse jeito há uns 42 anos e não posso eu fazer feio justamente hoje"). Não havia o know how técnico de agora (visível deslumbre - e não li nem escutei nada sobre problemas de aparelhagem), o que configurou uma coisa meio tenebrosa de que houve partes e momentos das músicas em que o vento e a baixa propagação causavam a impressão que alguém deu 'mute' nos telões (os únicos lugares de onde um sujeito como eu enxergava os rebolados frenéticos de Mick Jagger, e isso que estava relativamente perto do Copa, da passarela transparente de onde eles desfilaram do hotel para o equipamento monumental instalado na praia e do palco, na faixa mais vantajosa possível para alguém que não era Vip).
Em dado momento decidi que a noção protocolar de que eu estava no Rio enquanto os Rolling Stones faziam, o, à época, maior concerto de rock de sua (e de toda ) história, e de que efetivamente compareci ao show, estava satisfeita, e diante do fato de que não conseguia, tristemente, ver nem escutar quase nada, fui embora. Um amigo que viu de alguma zona de privilegiados com contatos que o permitiu ficar junto ao palco relatou uma experiência divina. Quem viu na TV idem. Tragédias da carne, ossos do ofício da empiria.
/FIM DA DIGRESSÃO
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Uma viagem de ônibus na BR-386, como sói - e já me lamuriei tanto sobre isso que nem vale reprise, mas aqui há um bom starter pack sobre a minha maldição, para quem tiver interesse - uma leitura recém terminada na mochila, um fone de ouvido ressoando o play que acabara de dar no celular, via bluetooth, em um dos meus podcasts prediletos, o Pouco Pixel.
Nele, Adriano e Danilo, pelas tantas, na seção do programa conhecida como "Debate de Bolso" (que virará podcast independente ainda nesse semestre), trazem temas cotidianos para uma espécie de brainstorm em formato miniatura sobre assuntos variados, e o desgosto com as redes sociais era o mote da conversa de então.
Um interessante insight se deu no instante em que ambos comentaram que uma visita ao scroll do Instagram revela, hoje em dia, pouquíssima vontade de interação efetiva entre as pessoas, mas - e aí vem o que instigou minha reflexão - uma ânsia perene por tentar hackear a própria interação possível na plataforma.
Pensemos nisso: com quem estamos realmente falando em termos de postagens nas redes? A quem estamos de fato lendo/escutando?
O festival de pessoas que replicam espécies estranhas de meta-comentários que são na verdade propagandas (ostensivas e/ou mesmo veladas) para suas próprias produções ou interesses é impressionante. As tentativas cada vez mais apelativas e desesperadas de capturar atenção em poucos segundos como se a profecia de Warhol sobre todo mundo ter algo como um inevitável direito a "15 minutos de fama" se inverteu em uma espécie de corrida desenfreada onde todos aproveitam 15 segundos de oportunidade para tentar fazer você engajado por mais nove ou seis.
Quando criança, achava engraçadíssima a sucessão de freaks do horário eleitoral da campanha presidencial de 1989: entre pesos pesados da história política brasileira medindo forças (como Lula, Brizola e Ulysses Guimarães), havia o infame "Zamir" (que pedias votos "do Acre à Santa Catarina" - pelo visto o dos meus pais em Porto Alegre ele dispensava), o surreal "Marronzinho" (que volta e meia aparecia sem áudio, em uma alusão a estar sendo perseguido e calado), Fernando Gabeira (à época maconheiro e militante do Partido Verde, com peças publicitárias, digamos, exóticas), Ronaldo Caiado (ele mesmo, posando em um cavalo branco como um herói de conto de fadas), entre tantos. Mas o que notoriamente mais marcou o momento, da campanha, ao menos, foi o bizarro cidadão de matriz ultra conservadora e tom apocalíptico na fala que parecia ser saído de algum programa militarista iraniano durante a Guerra Fria, que, pelo tamanho minúsculo da agremiação partidária, ficava apenas com o tempo televisivo default e, assim, sem qualquer estrutura ou margem para desenvolver absolutamente nada em termos de proposta ou apresentação, cuspia palavras em velocidade alucinante no período de quinze segundos para encerrar, enfático, com o bordão "meu nome é Enéas!". Em termos, funcionou.
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O fato é que a experiência de uma 'rede' no sentido que todos imaginamos desde que a proposta foi uma captura gulosa de nossa atenção e de nossas práticas, deu errado. A fagocitose típica que é visível que a entrada desse fator em nosso cotidiano iria provocar (embora talvez não imaginássemos o quão baixo chegaríamos para fugir de confronto com nossas opiniões e crenças passíveis de contradita) chegou em seu cume. É uma brincadeira de ovo e galinha (embora todos saibamos que, a respeito da metáfora original, primeiro veio o ovo): estamos absolutamente talhados para querer "sucesso", "aplausos" e vieses de confirmação, na mesma medida em que os algoritmos estão cada vez mais craques em nos franquear possibilidades disso mesmo. E vai e vem, como a elipse que de forma certeira costuma simbolizar o infinito.
As tentativas de ownar ou de hackear a rede têm lugar especial aqui: somos menos empreendedores de nós mesmos do que anunciantes desesperados de panelas que não grudam, facas que coram cabos de cobre e estimuladores abdominais para ganhar tanquinho sem fazer esforço. Somos vendedores de enciclopédias de porta em porta, missionários pedindo doações, malabaristas de sinal. As pessoas estão aflitas por abocanhar um mínimo de atenção. Poucos se comunicam genuinamente, e muitos se manifestam como quem deposita fichas em um cassino para poder entrar à mesa de jogatina. Não há, muitas vezes, troca, diálogo ou mesmo reconhecimento de pertencimento à mesma discussão: oportunidade de falar, de aparecer, de arrebanhar "público" ou seja lá o que pode significar.
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Acompanho alguns poucos substacks de pessoas que gosto, mas fico um tanto triste quando chegam aqueles emails de 'notes': no começo do uso da plataforma, percebi que ela permite o uso como uma espécie de twitter-interno simulado e que a lógica de curtir/comentar o comentário que por sua vez divulga/publica o texto novo (e não necessariamente o texto) me deixou farto e deprimido. Já faço uso de uma rede social desse tipo, gosto do modelo. Mas uma já está de bom tamanho.
Já há para mim um lugar (para outras pessoas, muitos, inclusive) onde faço improvisação, clamo por atenção, busco diálogos, bato em campainhas, apareço sem avisar (trago bolo ou algumas long necks, sempre) e atendo pedidos do público (embora algumas canções peçam um pouco de ensaio e uma afinação diferente do cavaco).
A ideia não é redesocializar tudo. É ao contrário. Experimente. Dá. Até porque Deu, por mais tempo que o outro modelo, inclusive.
Então sigo aqui no meu show cronometrado, com um estilo bem diferente, para todo mundo e para ninguém que está assistindo na arquibancada.
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Fora que já tive blogs no início do milênio por tempo demais. Sei bem lidar com o comentarista franco atirador avô do reply guy, mas não sei se tenho saco para em mais de uma frente.
UM FILME: (pensei no disco antes) "As virgens suicidas", estreia da Sofia Coppola na direção de longas segue sendo seu melhor filme em minha opinião. Claro, o fenômeno pop de "Encontros e Desencontros" é muito mais marcante e digno de rodapé na história do cinema, mas eu gosto tanto desse, do tom da tragicidade do que vai acontecer, mas a todo tempo parece evitável - e não é. Amo. (E tem o disco!)
UM LIVRO: (estou com dois de literatura na agulha para começar em breve, mas no momento tenho estudado bastante. Vale dizer aqui fichamentos de Marcuse?)
UM DISCO: "The Virgin Suicides" é um disco da dupla francesa Air composto direta e exclusivamente para o filme de Coppola. Um amigo mandou um link dia desses sobre estar escutando Air e me deu vontade de escutar de novo esse. Fazia tempo que não ouvia. São temas curtos em geral, quase todos instrumentais, que são boa trilha para o ambiente