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NA ESTRADA, ANTES DO AMANHECER

Foto do escritor: GabrielGabriel



A estrada - o asfalto, material (não uma metáfora ou canção idílica) - me matou.


Tempo é igual a: distância sobre velocidade ("desprezando-se o atrito", dizia o a questão no livro de física básica. Risos).


Falei em um podcast certa vez (e da última vez onde eu escrevia coisas a esmo em espaços assim como esse, podcasts não eram essa força popular, eu não era alguém cuja opinião – pensada ou improvisada à moda tiroteio – era escutada semanalmente no país todo), que gosto de andar por aí de mochila. Uso mochila por, basicamente, dois motivos:


Um: me desagrada ter mãos ocupadas enquanto caminho (e a vetusta ‘pasta’ de couro da época onde o ganha pão, perde o sono, dia e noite, era advocacia, e somente advocacia – durou 4 anos – se fazia, como a gravata, uma convenção a que se aderir);


Dois, e aí vem talvez o motivo caricaturalmente principal: desde pequeno tenho ganas de vagar around tal um personagem de RPG, um peregrino sem lenço e sem documento que encontra inimigos e interesses pelo caminho nas florestas, vales e vilarejos.


Real, oficial: a mochila é prática, acompanha seu corpo com adequação, livra suas mãos, e permite ‘itens’. Ando, bem verdade, com papéis, eletrônicos e garrafinhas d’água mais do que com mapas, chaves mágicas ou unguentos de cura – se bem que tenho uma mini-faca tática – afiadíssima - que comprei em uma loja de armas na Guatemala que – salvaje – me acompanha idem. Se, como na canção do Belchior, algum “punhal de amor traído” quiser me encontrar em alguma encruzilhada para dar fim às minhas andanças, vai haver ao menos uma peleia.


A fantasia pré-adolescente de explorar o mundo tal como um mapa de adventure e os exemplos correntes que me fascinaram à época (menções honrosas para “Phantasy Star” do Master System, os primeiros “Zelda” do NES e SNES e para os livros-jogo de Ian Livingstone, em especial, de coração, ao “Cidade dos Ladrões” - bem como ao filme Robin Hood de 1991 com o Kevin Costner) foram, na juventude tenra e adultez verde, substituídos por clichês de garoto branco de classe média como o livro inescapável do Kerouac (você sabe qual), imagens e canções (tive uma rápida fase de blues – adoro, mas definitivamente não é o terreno onde compro meu lote), e por ideias falsárias advindas de outros filmes. Só obedecemos à lei, da infinita highway.


(“Antes do amanhecer”: um sujeito de cavanhaque encontra do nada uma gata charmosíssima – Julie Delpy parece um pêssego, não vou elaborar - disposta a qualquer coisa com um estranho num vagão de trem, e rola simplesmente o maior e mais fofo dia não planejado de um giro europeu de todos os tempos. Pelo amor de deus, em que planeta isso não termina em desilusão, golpe ou sequestro?).


A questão do vagar por aí grinding o mapa desse mundo aberto onde meu personagem habita vai um pouco satisfeita com um hábito que quem me conhece tem por inseparável da minha personalidade: caminho mais por filosofia e exploração do que por 'exercício'. Caminho para pensar e falar sozinho, para ver coisas. Caminho drástica, compulsivamente por ruas, bairros e rotas ilógicas (não precisar fazer o mesmo trajeto de um automóvel é um presente que nem todos sabem aproveitar - tal uma bebida de sabor exótico).


Seguiram-se outros alimentos para o padrão ao longo dos anos: viagens de família em carro passaram a ser viagens entre amigos amontoados: surfe, pouco dinheiro, muita bebida barata, histórias publicáveis, outras não, sacolas, gorro de lã, improviso, caronas, perrengues memoráveis.


"A estrada" enquanto metáfora traz esse ar cult, inquieto, uma verdadeira ideia-força que resiste à prova dos séculos.


Ocorre que a estrada (enquanto quilometragem asfáltica - e por vezes terrosa) passou a ser minha vida desde 2008:


Família, um apartamento próprio a duras penas conquistado e uma vida toda em Porto Alegre, de um lado, trabalho (docência universitária) em Passo Fundo (289km) de outro. Para agravar: a Universidade tem campi espalhados em um raio de cidades vizinhas onde algumas parecem apenas bairros um pouco afastados e outras viagens sem volta e sem hora para chegar ao estilo dos vikings desbravadores.


Ando pouco de carro – um pouco por opção (habitante de centros urbanos: você se surpreenderia em como é fácil adequar sua rotina ao uso de transporte público, ao menos em parte, independentemente de onde você mora), outro tanto por retenção de gastos incômodos, então os ônibus e suas poltronas são meus companheiros simbióticos.


A firma me desloca de microbus ou van (às vezes de carro, até) entre compromissos docentes. Uma das piores e mais inconstantes empresas de ônibus operantes no Brasil me desloca (a preço salgado) entre Passo Fundo e Porto Alegre, uma estrada onde os anos que passam veem se tornar irritante e inexplicavelmente mais árduo o trajeto. Em 2008 era como um reloginho: quatro horas, cravado. Dava para sair às 08h da manhã de Passo Fundo e marcar um almoço ao meio-dia na capital.


Obras, acidentes (em nível assustador), afunilamentos (há um trecho de serra a ver vencido) e a erosão (nesse preciso trecho) advinda, especialmente esse ano, das chuvas que causaram no Rio Grande do Sul aquilo tudo que vocês têm ciência, tornaram o percurso um pandemônio: seis horas. Sete horas. Oito horas. Houve um dia em que um acidente monstruoso e a necessidade de optar por um desvio maluco e insólito fizeram o trecho durar onze horas. Dava para ir para o Japão em situação de menos desconforto.


Dezesseis anos. São dezesseis anos desde que fui aprovado em um processo seletivo e decidi que ia encarar essa estrada, semanalmente, para ver como seria a experiência de ser professor em uma grande instituição e “qualquer coisa peço desligamento semestre que vem e vejo o que faço”.


Tarde, manhã, chuva. Sol, frio inclemente. Paradas para almoço, paradas de madrugada. Lanches ruins. Suco. Cerveja de garrafa. Pessoas perdidas, indígenas vendendo artesanato. Troca de pneu em ranchos insalubres. Árvores que dobram com o vendo. Calor úmido.


Não vejo mais graça em nada isso. Estou ‘curado’. Ver o mundão de uma janela que corre não tem mais qualquer sentido, ao ponto de (somadas as semanas em que há algum compromisso profissional extra que implique em avião ou em outras rotas) costumo dizer mais do que gostaria que meu sonho é dormir quatro dias seguidos na mesma cama.


O soco na cara dado pelo capitalismo é impressionante.


Desculpe Ian Livingstone, personagens erráticos de standards de blues, parceiros fictícios com quem descobriria uma onda perfeita e vazia em algum lugar da Baja California, foi mal: fiquei pelo caminho. Vou pedir um rango no Ifood e ver um episódio repetido de alguma série que já assisti. Julie, meu pêssego: não vou poder hoje, mas a gente vai se falando. Não é você, sou eu.


Quero dormir.


UM FILME: “Tipos de Gentileza” é um exercício ousadíssimo de Yorgos Lanthimos, mesmo para quem está acostumado com seu terror (sim, batizo assim) moldado a base de situações inimaginavelmente descontroladas. Após o sucesso pop merecido com o adorável “Pobres criaturas”, o cineasta de coisas cruéis e grotescas como "O sacrifício do cervo sagrado” (assistam, por favor) meio que pode fazer o que quiser – ainda mais se contar com a magnética Emma Stone, e se dedica aqui a um trio de histórias bizarríssimas que contam todas com o mesmo (e poderoso) elenco, embora não tenham link direto de roteiro entre si. Arrastado, demorado, mas vale à pena inclusive assistir um seguimento por vez. Sou fã.


UM LIVRO: “Páradais” de Fernanda Melchor. É uma novela curta e ligeira, mas com um impacto sensorial até perverso. A descrição naturalística que a mexicana faz do ambiente, dos personagens, dos detalhes como as dobrinhas suarentas e os farelos de salgadinho ao redor da boca do gordinho escroto (com “voz de apito”) que é o parceiro de não-fazer-nada-juvenil do protagonista são absolutamente impressionantes. A autora nos tortura. É pesado. Cruel. Real. Jogado na cara. No condomínio de luxo “Paradise” vai acontecer uma merda gigantesca motivada o mais imbecilmente possível. Até lá, ela nos brinda com amarguras dos muito pobres, deboche do cotidiano dos muito ricos e nenhuma sutileza.


UM DISCO: “Gnx” de Kendrick Lamar é rap. Rapzão. Daqueles. Parece estar alheio à influência do trap jovem, dos padrões do TikTok, dos trending topics (embora as letras mostrem K Dot rimando sobre coisas, fatos e pessoas bem atuais). Rap. Rapzera. Rapzudo. Veio de algum outro momento no tempo e no espaço, mas não é datado, nem saudosista. Kendrick é quem faz o estilo ainda existir bem, obrigado. Seus mestres viraram algo meio comédia. Ele não vai por essa linha. Graças a deus. É rap para você se sentir do mal. Para querer acertar as contas com alguém. Para malhar como se estivesse se preparando para a guerra. Do tipo que te leva ladeira acima na força da raiva. É o que tem que ser.

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