Zonas de Conforto
- Gabriel
- há 7 horas
- 11 min de leitura

A gente não é mais o mesmo que se banhou no rio, o rio já correu além do que era quando a gente botou o pezinho, aquela coisa, você sabe.
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Certamente já lhe ocorreu: pensar com um certo cagaço, uma certa paúra, um tremelico que gela só de imaginar, a respeito de algum acontecimento da vida que poderia tomar um rumo completamente diferente não fosse uma pequena lasquinha de tijolo de como a realidade se construiu. Uma frase dita de outro jeito, um tomar de trajeto diferenciado, um encontro no parque ou no bar que você foi/não foi. "Cinco Minutos" de José de Alencar (odeio José de Alencar). Uma mensagem que foi respondida - outra que não. Uma oferta aceita, uma oferta que sequer se fez. O apego afetivo por algumas coisas específicas - e traços de personalidade - deixam algumas pessoas sensíveis e medrosas quanto à possessividade meio maluca em relação ao que elas já possuem, e não basta lamentar perdas, é preciso sofrer por mundos alternativos onde a felicidade que chegou, na prática, teria escapado. É como não se achar merecedor em tal grau que você não apenas especula, mas chega a trabalhar, literalmente, com uma espécie de chamada extra onde o tempo vai se quebrar e algo será como que revogado.
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O Ministério da Saúde Adverte:
(não há que se reclamar de 'spoilers' nesse texto, dado que é um conceito meio esvaziado frente a uma série de 1990, um de 1984 - e uma temporada que foi ao ar na década passada. Além de um outro que ninguém viu nem quererá ver)
(em outro texto, quando da morte de Lynch nesse verão, comentei sobre o triste mundo onde a arte - e porque não, a ideologia - estão formatadas para a obtenção de respostas simples e 'finais' tranquilizantes. Esse aqui pode ser um adendo, um bônus ou um complemento. Quase um conteúdo extra para assinantes - ou pacote de expansão para clientes registrados. Talvez aquele te interesse também).
Se persistirem os sintomas um médico deverá ser consultado
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Certa vez tive uma discussão inútil com meu primo (do tipo de discussão que, quanto mais 'inútil', mais acalorada e mais ares de debate nas manifestações orais na Tribuna do Júri acarreta). Ele basicamente não compreendia o famoso 'paradoxo do tempo' instaurado a partir de "O Exterminador do Futuro" (1984) que com alguma certeza é algo do que você já ouviu falar.
Vejamos: no futuro, um líder rebelde comanda a resistência humana contra as máquinas que dominaram o mundo ao adquirir graus perigosos de auto ingerência e inteligência própria (calma, por hora elas inventam datas de lançamentos de discos, parágrafos com dados biográficos que não fazem sentido e verbetes legais incorretos. Mas daí para inventar princípios ativos de remédios e protocolo de lançamento de mísseis, é um pulo, fato). Munidos de uma tecnologia que em nosso tempo ainda não existe, os habitantes do futuro (no caso as máquinas) enviam um robô-exterminador (Schwarznegger em uma atuação sublime) para matar Sarah Connor (Linda Hamilton), a mãe do herói John Connor, antes de seu nascimento. Maior conceito de mal pela raiz, nunca houve. A resistência humana também envia ao passado um agente (Kyle Reese, vivido por Michael Biehn) que, se espera, proteja Sarah e garanta que seja possível o nascimento de John em algum momento desse século, imaginando assim 'garantir' a linha do tempo.
As coisas se desenrolam de modo que Sarah e Kyle em meio à loucura da fuga do androide assassino imparável que dá nome ao filme, têm um momento de envolvimento romântico e, bem: Sarah, ali, engravida de um bebê que será, ora vejam, John, em um futuro próximo.
Há uma desnecessária e acalorada diatribe a partir daí, onde, para alguns, "não seria possível" pensar em uma hipótese tal dado que (em linhas gerais) haveria de ter algum momento onde um John Connor "nasceu", cresceu e foi um líder revolucionário que carecia de ser protegido por um agente viajante no tempo, o que não poderia ter sido ocasionado por uma relação sexual que esse próprio agente praticou na ocasião, com sua mãe.
Um detalhe bem simples perturba a racionalidade linear de quem usa esse argumento: uma vez que alguém foi para o passado em viagem e alterou fatos lá, não pode mais haver não só futuro idêntico, como não importa mais qualquer linha temporal eventual. A partir do momento em que Kyle e Sarah transaram e Sarah engravidou, não existe mais o futuro em que isso não aconteceu, não há mais passado inerte que redundou (de alguma outra maneira) no nascimento de John e tudo, para frente e para trás está alterado em um binômio necessário. A partir do momento em que Kyle foi ao passado e causou consequências, não há mais a linha 'original' do tempo. Ou melhor: ela não há que ser considerada.
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Uma boa exemplificação (e um tanto pueril) para isso está em uma película que definitivamente ninguém assistiu fora uns 34 coitados (eu fui o coitado número 28), que é o infeliz filme solo do Flash - um dos últimos respiros de uma tentativa de universo da DC Comics nas telas, cujo mote de apelo eram também viagens no tempo e a possibilidade de, em uma realidade alternativa, vermos novamente o adorado Batman vivido por Michael Keaton em sua versão do filme respectivo de 1989 (foi por isso que assisti o filme, não sei quanto aos outros 33 coitados).
Em uma conversa após um encontro inusitado com um Bruce Wayne já aposentado (e uma versão divertida de Michael Keaton para o que é um herói em retiro e um bilionário excêntrico) esse explica a Barry (o Flash) com um punhado de espaguetes secos jogados sobre uma mesa, como varetas, que mudar a direção do que seria a ponta do 'futuro' de uma das 'linhas' faz alterar a direção da linha reta do passado, da mesma maneira. A linha inteira, torta para o lado, muda (e a luta do Flash, na história, é para 'consertar' uma realidade onde sua mãe foi morta por um assassino criminoso e seu pai termina acusado injustamente por não ter prova de seu álibi). O filme (largamente baseado em um interessante arco dos quadrinhos chamado Flashpoint) faz o herói pelas tantas se encontrar com um antagonista misterioso, que em realidade é uma própria versão sua perdido entre as linhas temporais sem aceitar que não consegue rearranjar com perfeição todas as arestas da intervenção temporal a fim de que tudo termine bem.
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O lançar mão de trunfos místicos ou metafísicos tal viagens temporais geralmente é usado em histórias de fantasia como uma espécie de alívio ou forma apelativa de reorganizar coisas e mesmo de tranquilizar o público quanto a suposta reversibilidade de tragédias (o primeiro Superman, em 1978, Christopher Reeve, voando ao redor da terra em contra-rotação para fazê-la girar ao contrário e assim voltar ao dia seguinte - ? - para evitar a morte da amada Lois Lane). Deveria, ele também, sempre passar por uma filtragem agridoce que atenta para o fato de que essa possibilidade deveria ser tudo, menos uma espécie de formatação tranquila do estado de coisas que se arranjará de modo equânime.
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Nunca havia reassistido a 3a temporada - "The Return" - de Twin Peaks depois de quando ela foi exibida (no Brasil, semanalmente pela Netflix em 2017). Ao contrário de absolutamente todo e qualquer material relativo a Twin Peaks (mormente duas temporadas oficiais, um filme/prequel e um outro filme, com uma montagem das cenas excluídas do primeiro, que surpreendentemente - ou não... - comporta quase o mesmo tempo de duração), que eu já vi e revi de forma gloriosa, obsessiva e analítica, muito mais do que duas vezes, a 3a temporada havia sido sorvida por mim com avidez apenas ao vivo e in loco quando foi exibida.
Como homenagem à passagem de David Lynch - meu cineasta favorito, como já expus diversas vezes e quem me conhece tem por dado óbvio - decidi que iria dar chances esparsas ao longo do ano para reassistir obras dele que não comumente revisito (talvez esteja na hora de encarar novamente a paranoia interminável de "Inland Empire" - aquele blue ray está ali, me olhando) e um trajeto nada simples (18 episódios de uma hora cada) poderia ser iniciar justamente pela única de suas realizações que eu só havia visto uma vez.
Recordava de várias incongruências (como alguns efeitos visuais de soluções digitais bastante cafonas) e de uma expansão da já confusa mitologia de Twin Peaks ao nível do enervante (realmente, é), mas mesmo dentre as genialidades também evidentes, não lembrava de o quão pertinentemente corajosa foi a opção de Lynch (e Mark Frost) em - na bola mais fácil de todos os tempos, no maior mamão com açúcar da cultura pop - poder entregar um punhado inebriante de nostalgias fáceis para um público sedento por complementos-cult, vinte e cinto anos depois do encerramento abrupto da série original, e: nada feito.
O que nos ofereceram foi basicamente outra série. Um desenvolvimento absolutamente errático que foge, inclusive, do tom mais adoravelmente bizarro que fez Twin Peaks ser esse objeto avassalador de carinho por gente do mundo inteiro: sai a Twin Peaks provinciana que parece uma cidade de brinquedo à luz do dia (mas que esconde intrigas, crimes, traições, mentiras, portais sobrenaturais e experimentos secretos do governo, na penumbra) e entram plots sinistros que envolvem Las Vegas, Nova Iorque, um sem número de cidades outras (além de espaços confinados entre planos reais e paranormais que tem entradas e saídas múltiplas, ampliando - e embaralhando - noções que já não eram fáceis).
Apreciei novamente cada cadência de ritmo ao nível do quase constrangedor que ele dá a algumas cenas, num contraste impactante com a aceleração e o frenesi que passou a fazer parte não apenas de nossa cultura nos produtos consumidos, mas de nossa própria perdição em um mar de desatenção e perda de prumo, dada a oferta incontável e ininterrupta de estímulos por veículos e aparelhos de todos os lados. Se havia uma ironia na série original, quanto a isso (a inesquecível cena de um atendente do hotel vagando com lentidão para tomar alguma providência quando um hóspede está baleado em sua frente), agora a aposta é dobrada visivelmente de propósito, como quem nos obriga a ficar de castigo (como nos muitos silêncios entre as conversas desconfortáveis do trio de agentes do FBI - onde o próprio Lynch retoma seu personagem criado como se quisesse não só agir nos bastidores, mas participar da festa - ou na já famosa sequência de vários minutos onde um empregado varre o chão de uma boate, e só).
Não tenho pretensão nenhuma de discorrer sobre a forma que Twin Peaks fora fechada, antes, supostamente, e, agora, mais do que nunca definitivamente (pela ausência da mente criadora maior). Mas cabe dizer que por justamente amar o diretor e do universo da série, uma conclusão absolutamente impensável, linda, até certo ponto, e com um cheirinho de pavor por vir, a partir de outro, no penúltimo episódio da série, para nos jogar num prenúncio de suposto (novo) mistério e um (novo) pesadelo, no último, é bem menos cruel do que parecia à primeira vista com uma base de fãs tão devota e com um cânone televisivo tão forte.
Foi quase como um recado sobre o inexorável movimento das coisas.
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Twin Peaks, que anestesia tanta gente em sua nostalgia cool e carrega um punhado nada desprezível de maluquices e perguntas não bem respondidas comparece no século XXI para uma espécie de anti revival e anti final que ajuda a reconfigurar o próprio termo 'anticlímax': a verdade é que a maioria das coisas é de fato respondida, ainda que em um sentido oposto a uma ideia pueril de uma série ressurgir como uma espécie de glossário de si mesma. É incrível a responsabilidade dos realizadores com o próprio tamanho do que Twin Peaks significa (não só para a base de fãs, mas para a televisão como um todo e o próprio formato de expressão audiovisual, sem qualquer exagero): não haveria outro caminho se não explicar os 'mistérios' em sua linguagem própria, em seu léxico ele mesmo misterioso, onde imagens e representações que não cabem em definições simplistas são elas os próprios sinais e significantes para outras como quem manda às favas a comunicação telegráfica e usa o mundo, os símbolos, e ilustrações que bem entende (ainda que quase tudo seja físico e representado à moda dura - a 'loja de conveniência acima do posto', os 'lenhadores', o personagem de David Bowie que virou uma espécie de 'chaleira que fala', o 'black lodge' e os outros planos astrais tal lugares com textura e até mobília e cores específicas - e pouco, incrivelmente sobre para luzinhas, coisas exclusivamente explicadas por diálogos em off e vibes).
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Pela segunda vez na vida em mais uma noite fria num espaço de 8 anos (e '8' é um número significativo no final da série e sua grafia que, apresentada de outra forma simboliza a elipse do infinito, tal e qual nos disse o David Bowie chaleira), eu fiquei novamente extasiado, palpitante, choroso e comovido com o fato de que, enfim, o Agente Dale Cooper dá às costas para o punhado de pessoas mais importante da sua vida para conscientemente transitar na linha do tempo (e talvez abrir mão, assim, de todas elas) e retroagir ao momento-chave que acabou o levando, certa vez, o àquela cidadezinha de fronteira com o Canadá e ocasionar o que nem o mais infantilmente nostálgico fã pensaria possível: impedir a morte de Laura Palmer e fazer, talvez, a série e todo o seu enredo, engolir a si mesmo em um vórtice de desnecessidade. E, mais uma vez, nas mesmas condições fui recordado por David Lynch da maneira mais agressiva de que estamos dentro da mente dele. Ok, Cooper. Você venceu essa. Mas temos outro level. Thank you Mario, but our princes is in another castle.
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Do mesmo modo, também, eu (e basicamente todos os fãs da série que naquela noite de 2017 demos neuroticamente play no último episódio logo em sequência) ficamos desesperados pois depois de tudo aquilo, o que sobraria para o grand finale? O que aconteceu? Já não é suficiente ele basicamente anular a série toda e todos os eventos de sua vida que nos cativaram tanto e abrir mão de tudo para impedir que Laura chegasse ao fatídico chalé secreto e se envolvesse na orgia que culminaria em sua morte? O que mais está reservado para esse desgraçado?
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O grand finale, mais do que da série, da carreira de Lynch, voltando à grande história que marcou toda sua vida (em uma ironia suprema com retornos, igualmente para vários atores e atrizes envolvidos) e contribuição de um cineasta que sempre trabalhou o sombrio, o incômodo e o aterrador de forma peculiar, foi uma agulha fincada justamente em um dos maiores medos de todos nós: o passado foi mexido. E se perdeu. Em um outro universo uma pessoa chamada "Richard" procura e encontra uma Laura Palmer que não tem qualquer ligação com Twin Peaks, WA, que sequer se chama Laura e que em nada reconhece conscientemente sua antiga casa (ainda que haja uma piscadela final de que algo está errado, para ambos lados, como um cubo mágico quase ajustado). Uma pessoa que sequer sabe em que ano vive. Uma pessoa que pouco a pouco toma consciência de que está em um outro mundo, em uma outra realidade, em que absolutamente nada do que conhecia e mais estima tem sentido ou sequer existe. Uma escolha foi feita, as consequências vieram. Queria o que?
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No dia seguinte àquela noite que foi consequentemente mal dormida - sou esse nível de fã - um amigo via comentário no Facebook tentou me tranquilizar sugerindo que a série indicava que mais ou menos sempre haveria um Agente Cooper com a missão de sempre salvar uma Laura. Mas o verdadeiro recado - para além desse tom de fábula caramelizada - é mais real. Mais cruel, mais frio, mas mais real.
UM DISCO: esse final de semana a turnê de despedida (após 40 anos) do Sepultura passa por Porto Alegre e eu orgulhosamente vou prestigiar. Impossível escapar à nostalgia e não indicar "Arise" (1991), meu disco preferido deles onde algo entre o punk mais elaborado e o heavy metal mais tosco formam uma mistura explosiva e insuperável no gênero.
UM FILME: demorei para ver "A garota da agulha" dados relatos de que seria uma experiência grotesca e de baixíssimo astral. Na verdade, o enredo é sim uma pancada na pleura e fede total a bad vibes, mas: que filmaço. Eu esperava 'gore' e recebi outro tipo de prova de um mundo horrível.
UM LIVRO: eu já disse que odeio José de Alencar e aquela geração de romancistas brasileiros, não? Bem, Mia Couto está no Brasil e, assim como o Sepultura, em Porto Alegre esse final de semana. Vá de "Venenos de Deus, Remédios do Diabo". Vá de qualquer coisa dele, aliás. É uma aposta que paga baixíssimo, eis que é batata.