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Futuros

Foto do escritor: GabrielGabriel

Sou tido por um bom contador de histórias, em parte porque as vivo novamente quando conto (tal como quem passeia pelos corredores formados pelos escaninhos de um arquivo físico) e não vejo sentido em recontá-las sem o fator de (alguma) teatralidade, seja porque tenho memória muito boa e perspicaz para detalhes que passam insuspeitos por muita gente - ou, seja pelos floreios que acrescento por vezes porque acho que há histórias que fazem por merecer.


Porém isso traz um componente nada saudável em certo aspecto, com o qual algumas pessoas trabalham mal (e creio que sou um desses, idem).


Enfim: o conceito de 'nostalgia' trabalhado por Mark Fisher me pôs em dúvida se uma das coisas com as quais mais perco tempo não é eu simplesmente olhando para o lado errado da janela quando a verdadeira paisagem estonteante acaba de cruzar, veloz.


***


Eu era uma criança que sofria fisicamente no dia de encerramento de períodos de férias e do retorno da temporada de praia. Era uma troca injusta de um mundo mágico, bicicleta, mar, passeios a pé, picolé e rua até tarde com meus primos por uma quadra sem árvores, asfalto, Avenida Farrapos, Avenida Presidente Roosevelt, assaltos e um silêncio que era mais receio do que tranquilidade.


Parecia algo como a volta ao cárcere de alguém que ganhou um salvo conduto temporário para visitar a família nas festas ('saidinha', hoje, extinta em prol de alguns discursos que não fecham com as estatísticas, mas acertam o alvo aqui e ali quando alguma desgraça é gráfica demais). Liberdade versus pena a cumprir. Futebol descalço versus prova de Matemática.


Na adolescência veio outro componente (embora não tenham necessariamente saído o sorvete e o futebol): o da liberdade experimentada a partir de todo um outro mundo sensorial e de afetos e paixões que se verificava de vários modos (alguns no campo platônico das ideias, outros na materialidade das melhores aventuras) e tinha seu ápice no carnaval.


Poucas pessoas sofreram em quartas-feiras de cinzas como eu: não é a dicotomia folga/trabalho ou a metáfora prisão/liberdade, mas um passe de volta a ser cumprido entre dois mundos distintos com o abandono de uma série de fantasias incrivelmente realizáveis por alguns dias para um cotidiano que, perto disso, parecia inaceitável.


Durante muito tempo isso foi uma soma e o final do carnaval indicava também o final de tudo o que aquela 'praia hipotética' carregava consigo, como um circo que vai embora da cidade deixando tudo gris, na promessa de retorno em algumas estações.


***


Há muito tempo já havia me dado conta, mas esse ano consegui verbalizar de modo sensível que: isso não significa mais muito. Há tempos não vejo os curtos períodos litorâneos (dos quais meus pais não abrem mão) como algo mágico e como algo que mascara ou supera os transtornos igualmente envolvidos. Há tempos já cicatrizei as dores de final de carnaval sem ser invadido por aquele choque quente de realidade posterior. Acabou o período de praia desse ano e eu estava louco para voltar logo para casa, minha casa (tem árvores e caturritas agora, onde eu moro). Acabou o feriado de carnaval, juntei minhas coisinhas e rumei de Porto Alegre para Passo Fundo dado que alguns deveres chamavam.


Nostalgia.


Fui - e sou - em certa medida - um nostálgico incorrigível. Um guardião de histórias e de significados como um personagem de alguma novela fantástica que habita um museu onírico inacessível a olho nu.


Meu problema com isso foi duramente encerrado com a leitura de dois trabalhos (um artigo e um livro) de Mark Fisher, onde ele demonstra uma perspectiva política e filosófica particular para a questão: em "Desejo pós-capitalista" (artigo que li na versão em espanhol da edição argentina de 2018 de "Realismo capitalista" - e que vai integrar uma coletânea de mesmo nome preparada pela Autonomia Literária nas mãos de parte de uma galera que não poderia ser melhor curadora da obra do homem) e em "Fantasmas da Minha vida" (e os prefácios/posfácios das edições por gente como Rodrigo Gonsalves, Victor Marques e Amauri Gonzo são obras à parte) a questão da nostalgia é encarada como uma espécie de veneno paralisante afetivo, político, social e filosófico.


Arquitetura, música, poesia e arte no geral, propostas de mundo e de sociabilidade: houve arrojo e inspiração para tudo isso em um dado momento do passado. A pergunta é: para quais futuros isso tudo apontava? Que possibilidades estavam latentes nisso tudo e - especialmente - por que motivo vivemos em um dos futuros possíveis para aquele pretérito que talvez não seja a melhor das possibilidades? Por que avançamos para um futuro (real) daquele passado (já instituído) que é um, e não outro de todo o leque do que era possível ser?


Para onde foram (além de nos assombrarem - e sussurrarem em baixa frequência, quase imperceptíveis, por vezes, em nossa consciência) as possibilidades de outros mundos, de outros futuros.


Fisher é bastante impiedoso na crítica musical (uma das coisas que ele fazia com maestria) em relação a artistas pelos quais nutro um carinho especial por gostar até demais de coisas 'retrô': o retrô aponta de forma débil, covarde, meio reacionária e cristalizadora (já falei covarde?) para um passado como em um relicário acessível para celebrações litúrgicas. A chave não é a glorificação congelante de um passado idílico, mas um reviver das promessas de futuro com as quais aquele passado dialoga, e a cobrança (também necessariamente impiedosa) sobre o que aconteceu para aquela glória não se perpetuar, mutante, no caminhar das coisas para a energia imaginativa seguir em alta octanagem.


De que futuro aquele passado estava grávido, e porque o que vemos agora não lembra em nada a vivacidade desse pai e dessa mãe?


O quanto se gasta de energia (em vários sentidos) alimentando aquela coisa de resgate saudoso de coisas como elas eram, que acaba tendo pouco de homenagem cândida e muito de acorrentamento daria para alimentar uma usina. Xô.


Ser nostálgico passou a ser um sintoma de uma espécie de doença ruim que descobri (acho que, felizmente, a tempo de tomar alguma providência): guardar histórias em cofres fortes não sei se é algo de que me livro - como uma sequela ou comorbidade que gerou algumas fibroses insolúveis em meu peito. Mas: tenho me policiado muito para - em todos os campos onde empenho algum tipo de reflexão, emprego alguma preocupação ou deixo algum sorriso, não mais procurar o túnel do tempo que me levará a um passado mistificado (e, até mesmo, por isso, desrespeitado - e, mais a mais: já faticamente inexistente) e, sim, em pensar em quais energias eram possíveis de serem mobilizadas a partir daquilo e como e porque foram/não o foram. Não travar a imaginação. Homenagear não aquele pedaço de linha do tempo já bastante inventado e até meio alargado depois de tanto uso, mas o próprio fluxo que a linha traça - e o fato de que ficaremos para trás, invariavelmente (trabalhar com isso e não contra isso: existencialismo neon. Afirmação. Amor fati nietzscheano de óculos escuros). O verdadeiro carnaval.


'Ladies and gentlemen: we are floating in space'.



UM FILME: como já disse para muita gente, levava pouca fé inicial em um filme em que Bob Dylan chegando para o vai ou racha folk na Nova Iorque do início dos 60 é o Timothée Chalamet com cara de cachorrinho que caiu da mudança. Porém o ranço (que já havia se dissipado em algumas críticas seguras que atestavam a qualidade do produto) se encerrou em poucos minutos de exibição de "A complete unknown", uma espécie de biografia do Dylan inicial até a farra pop da 'eletrificação' da banda e sua primeira grande mudança estilística de rumo. Parei de ver Chalamet e comecei genuinamente a ver Dylan (ou um Dylan definitivamente possível) em pouco tempo. E que película não seria adorável ao jogar baixo, oferecendo ao público a todo instante algumas das maiores peças musicais de todos os tempos - cantadas, inclusive, pelos próprios atores/atriz - o que confere uma dignidade inesperada. Programaço.


UM LIVRO: estou há um tempinho com vontade de reler o 'tríptico' "Kairós, Alma Vênus, Multitudo", de Antonio Negri, um ensaio filosófico materialista-marxista (o menos ortodoxo possível) inspiradíssimo (e mais um escrito em um dos vários períodos em que o autor esteve puxando uma etapa em cana). É uma obra (três, na verdade) difícil e que incomoda no trajeto os não versados no autor, mas garanto que faz absoluto sentido se pensada nos termos fisherianos que discorro acima. Pretendo em breve também escrever algo que explique essas coisas e visões de um jeito mais amarrado.


UM DISCO: "Highway 61 revisited" - sim, ele, de novo, um verdadeiro restaurante preferido da estrada onde me recuso a nao parar volta e meia - e não vai haver como ser diferente durante algum tempo.





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