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Recomendação do dia: não 'produza'

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 18 de abr.
  • 8 min de leitura

A Páscoa sempre foi um feriado extremamente simpático no meu ponto de vista. No Rio Grande do Sul significa - se tudo correr bem - dias de sol, porém com um friozinho convidativo que encoraja atividades ao ar livre em meio a uma quebra do que vinha sendo a normalidade rotineira do ano.


(Na minha família sempre se optou por um segmento light em termos das tradições cristãs, então não se costumava comer carne vermelha muito ostensivamente na sexta - havendo, porém, enquanto opção sidekick, estilo 'de ontem', junto à macarronada e algum prato de peixe branco: certa vez belisquei um salame italiano enquanto a massa não ficava pronta e, alertado pela minha avó, fiquei pensando se ia para o inferno. Acabou o sentimento ruim na primeira dentada em um 'Diamante Negro' pós almoço).


Estudante de escola e universidade de orientações católicas, a sexta-feira santa sempre se alarga para uma quinta-feira igualmente santa, o que torna a terça-feira anterior à quarta pré-quinta um dia já energizado dado que, como diriam Otávio Augusto e Cecil Thiré na cena do filme "Muito Prazer" de 1979 que retornou nessa quadra histórica como meme, ali pelas 16h da quarta a "(...) semana está praticamente encerrada", ao natural.


Agora calcule a questão da terça-feira transformada de engate inicial da marcha de uma semana que ainda parece longa em véspera de uma quarta (não santa, mas em vias de canonização: beata, já, digamos) que por sua vez ganha ares de sexta de uma forma que nem os personagens do filme imaginariam.


Somem-se fatores como os da época em que eu trabalhava na Justiça Federal e - sabe-se lá por qual motivo exato e já perdido no tempo - havia uma recomendação de o feriado iniciar na quarta mesmo, o que faz da terça-feira um ponto interessante de anestesia (convenhamos: quem vai iniciar algo que envolva muita mão de obra em uma semana fadada ao break) e consegue a proeza de até mesmo eliminar a depressão natural de domingo (o verdadeiro dia 'santo' conforme a liturgia bíblica) precedendo a segunda-feira como símbolo de uma trilha de desafios.


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Os feriados na Justiça Federal sempre me intrigaram tal e qual aquela historieta do Eduardo Galeano sobre a necessidade de um guarda em um quartel de Sevilha marcar posição ao lado de um banco no pátio, que, descoberta, era uma reminiscência da vez em que havia a necessidade de alguém ficar ali avisando os passantes que o banco estava recém pintado. Quando não havia ainda oficializado o recesso dos trâmites processuais - para dar um mini respiro para a classe advocatícia, a Justiça Federal fazia por conta uma parada em meados de dezembro até o início do ano que não era reprisada por Tribunais e Fórum de classe estadual. Certa vez perguntei para minha chefe da Secretaria no TRF o porquê disso (sem parecer que estava desconfortável ou reclamando) e a explicação dela foi tão surreal que jamais fui atrás de tentar averiguar, porque simplesmente não quero ter outra hipótese: a estrutura interna de funcionamento/organograma do TRF havia sido tirada do modelo de uma corte inglesa que previa uma parada a essa época do ano dada a possível intensidade de neve na região e a inviabilidade dos trabalhos. Teriam copiado a estrutura - e a parada. Realmente acho difícil de ser sustentável essa explicação, mas admitamos: eu - e você - queremos que essa pitoresca resposta seja a verdade. Deixemos assim.


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Já fui uma pessoa que - metódico para algumas coisas - se incomodava com o chamado 'feriado em meio de semana', visualizando-o como uma espécie de quebra de ritmo tal e qual o corredor que avança como uma gazela após o disparo do tiro mas que é obrigado a voltar dado que um dos adversários fora eliminado por queimar a linha de largada. A potência concentrada daquele arranque talvez não volte e não será exatamente reprisada na nova largada.


Parecia, inegável, que a pessoa terminava por se desconjuntar - e ficar ainda mais cansada - após uma parada ocasional em uma terça feira (até porque a folga não é aproveitada na maioria dos casos em uma inércia como uma máquina que resfria ou um carro desligado), para o que a galhofa (mas, é preciso dizer, alguma lógica) sugere que o feriado precisa de uma emenda como um complemento óbvio e seria melhor, pois 'transferir' para segunda algo que recairia na terça, ou para a sexta algo que originalmente era na quinta.


Não me parece má ideia, mas o ponto é: o cansaço da vida laboral e da nossa própria realidade circundante faz com que basicamente o trabalhador veja qualquer motivo de pequena folga ou pausa como uma dádiva semelhante ao do caminhante no deserto que vê a miragem de um bebedouro de água gelada e brilhante.


Dia desses, no podcast aquele onde sou um dos criadores e apresentadores - aquele, sabe? - teve esse episódio onde eu conversei com um querido amigo sobre sua função na chefia de um gabinete parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo. Uma das coisas que levantei é uma tese recente que desenvolvi a respeito do revival avassalador que a série "The Office" (na versão americana, no ar entre 2005 e 2013 - com muito mais desenvolvimento e sucesso que sua versão original, inglesa) ganhou durante os anos da pandemia. Para além das gags famosas em redes sociais, ilustrativas enquanto 'figurinhas' (mesmo descontextualizadas e não necessariamente referindo diretamente questões do enredo - o que também é um tipo de fenômeno), a série (que tem alguns dos grandes momentos do humor sarcástico televisivo em todos os tempos) gira basicamente em torno de pessoas que tem seu ápice de socialização durante as tardes de trabalho, mas que, igualmente, possuem em comum uma espécie de aversão ao trabalho, e passam o tempo todo gastando uma energia descomunal em torno de problemas comezinhos e diversionismos de atenção que sempre que possível paralisam o fluxo do escritório (as duas pessoas maníacas por organização e produtividade - de um jeito muito mais doentio do que competente, propriamente - não escapam dos non-senses tresloucados e da engambelagem reinante no ambiente, idem, mas são justamente um casal secreto e desajustado, formado por pessoas estranhamente reacionárias e portadores de personalidades altamente contraditórias e confusas).


A adorável narrativa de um escritório onde todos estão o tempo todo resolvendo outros problemas que não os da firma, em si, empenhando um emoção e vivacidade absurdas em coisas como a disputa sobre de qual confeitaria vai se pedir o lanche, ou que cor devem ser as bandeirolas para enfeitar a sala de reuniões para o aniversário de alguém, e onde os superiores reais (a matriz, em Nova Iorque) são vistos como inimigos, intrusos ou exageradamente desumanos por cobrarem questões básicas de diligência e efetividade e, especialmente, a forma como o re-sucesso repentino da série triplicou a quantidade de referências a ela para uma geração que só a conheceu na disponibilidade dos streamings diz muito: estamos todos engatilhados com o excesso de trabalho.


Dentre os personagens que angariam e redobraram a simpatia, pelo público, um casal que usa o tempo entre as batidas do ponto para viver uma espécie de romance evidente (porém, durante algum tempo velado), enquanto prega peças infantilóides em um membro específico da equipe ao longo de toda tarde de expediente, um sujeito que evidencia estar sempre prestes a se demitir, como objeto de barganha salarial, e faz questão de não demonstrar engajamento algum com proatividades típicas da função (usualmente dorme durante reuniões), e, ainda, um tipo curioso, cuja piada reside justamente em estar lá sem ninguém exatamente saber nada sobre sua vida privada, seu passado e sequer sua real função na empresa.


Espécies de 'heróis' contemporâneos disfuncionais.


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Há quem diga que existem feriados demais no Brasil.


Por mais que seja verdade sob um certo aspecto, e por mais que o tom sempre festivo (no mau sentido que possa ter isso) resvale para uma gandaia inconsequente porém não autoafirmada enquanto tal, no quesito (que ocasiona um incômodo antagonismo entre o repouso - e a farra - enquanto projeto, ou enquanto leniência/letargia displicente), é preciso dizer que o estado geral de culpa que nos atormenta quando estamos fruindo de espaços de não-trabalho literal (é triste chamar assim) é algo a ser diagnosticado e combatido.


Não é preciso reprisar toda uma cantilena contemporânea sobre a forma como nos foi incutido (a golpes de simbologias mitológicas e romantização enquanto 'batalha', 'luta', motivos 'épicos' ou remetentes à natureza selvagem das criaturas no ciclo vital) a superação física e psicológica dos desafios nos impele a não optar pela fraqueza da desistência ou a imoralidade do desfrute enquanto temos à nossa frente: trabalho. Produtividade. Possibilidade de render.


Não é preciso eu reprisar o meu mantra costumeiro de que - carregando na garupa uma multidão de autores e autoras que tenho estudado bastante nos últimos anos - o grande e atual esconderijo (nem tão escondido assim) do capitalismo está na nossa subjetividade forjada e em nossa forma de viver e ver as coisas em um ritmo de produtividade(s) que opera na (mesmíssima) lógica do trabalho e/ou que estende o momento do trabalho para muito antes, muito depois e muito além da 'firma'.


O descanso e/ou o feriado são sempre vistos sobre essas perspectivas fanfarronas ou decadentemente deprimentes, onde algum funcionário (mormente "público") oferece uma espécie de catimba perene para procurar trabalhar o menos possível (se The Office fosse ambientada numa repartição brasileira, a crítica seria seis mil vezes mais manjada, óbvia e sem graça: é, sim, surpreendentemente uma visão de mundo corporativo - mesmo que arcaico - estadunidense).


Portanto, ao ler essas mirradas linhas, aproveite para fazer o que deve sim, ser feito, sem culpa e na medida do sempre-que-possível: descanse. Mais do que isso: faça coisas, se quiser, mas não produza. Mesmo colocar em dia leituras, fazer exercícios, fazer sexo e cozinhar são atividades que podem ser realizadas enquanto fruição, prazer, passatempo ou mote de alegria/hobby, mas são facilmente porta camuflada de entrada para o cavalo de Tróia da 'produtividade'. Números. Metas a serem batidas. Postagem na rede. "Tá pago". Espécie de "anúncios" não para sua pessoa, mas para os outros, "seguidores", como quem bate o botão no xadrez competitivo anunciando que é a "vez" do adversário. Disputa surreal. Embate, corrida virtual. Unilateral, porém de todos contra todos.


Trabalhe, se pá (e aquela pilha de roupas ali?), mas não 'produza', faça-me o favor. Só hoje.


UM LIVRO: o nome sugere algo mais literal e raso em relação ao tema do texto de hoje do que sinceramente o é. Não que não seja, também e muito, mas "O Apocalipse dos trabalhadores" é mais uma das pequenas obras primas que Valter Hugo Mãe nos deixa de brinde, como se fosse fácil escrever com tamanha maestria. Exploração e suor é uma das coisas que você vai encontrar nesse livro. A única nota negativa é que ele é da fase em que (acho muito ruim) Mãe escrevia tudo com letras minúsculas, por algum tipo de manifesto estilístico em relação aos substantivos que ele mesmo abandonou, felizmente.


UM DISCO: escutando essa semana "Lucro Sucio; Los Ojos del Vacío" - do Mars Volta. Gosto demais da banda, mas admito que a pira sonora dos parças Bixer-Zavala e Rodriguez-Lopez que se afastou de algo como uma psicodelia com mais peso e se voltou para uma coisa meio música latina indie/jazz contemporâneo bizarro/experimentalismo aqui e tentativas mais comerciais ali está meio estranha para meu paladar.


UM FILME: assisti ao simpático "North Hollywood" de Mike Alfred, 2021. Filminho da galera do Illegal Civ., coletivo de vídeos e produção criativa ligada ao skate e à moda juvenil de rua da última década. Um pessoal meio Jackass sobre rodinhas, mas aqui gravando e filmando mais comportados, como profissionais. Um retrato doce de uma juventude meio vazia, a partir de um bando adorável de desajustados que poderia descambar para dramas maiores como perdição de vida desde o consumo de drogas, mas tem um clima de amigos tomando refrigerante em uma mesa redonda de lanchonete.

 
 
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