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Friedrich à beira mar

Foto do escritor: GabrielGabriel



Quando Deus desenhou faixa litorânea do Rio Grande do Sul, ele tava namorando.


Sim, dado que é a única explicação para algo ser tão terrivelmente filler sem nenhuma peculiaridade, a não ser que o responsável estava fazendo algo mais importante e deixou a tarefa naqueles instantes com o estagiário menos experiente que meteu um copia e cola ali porque era quase 18h e o setor já estava quase vazio.


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Lá estava eu sentado na minha funboard (7,0ft) meio à deriva sacolejado por vento, em um flanco, e princípios de elevações vindos de todos os lados, por outro, que, paradoxalmente, não pareciam ter permissão para se erigir e quebrar. Ondulações inconstantes de um modo triste que parecem adquirir força apenas quando próximas de um banco de areia muito raso, porém o suficiente para formarem uma espécie de gancho oco que não permite nada além de uma fuga - se você for sensato - ou uma viagem ao fundo do mar (nesse caso bem raso), temperado por uma areia que é áspera o suficiente para assar e arranhar sua pele, e desagradavelmente sneaky para entrar nos recônditos mais profundos do seu calção e nas dobras mais desconhecidas do seu corpo. Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, Brasil, em um dia típico.


Uma merda, se quisermos usar a concisão propiciada pela língua de Hugo Mãe.


Por vezes eu penso como uma vastidão dessas consegue promover um espetáculo tão tristonho quando o mar típico de Capão da Canoa do ponto de vista de alguém que quer pegar onda. Por outras, pondero que é essa mesma vastidão que permite justamente isso: quilômetros e quilômetros de design natural de baixa qualidade, como final/limite de cenário de jogo de video game (onde em algum momento a repetição contínua do mesmo padrão anuncia - educadamente - a você, que não, não há nada ali, por favor volte e não nos constranja a ter que bloqueá-lo com uma parede invisível). Ou seja, nenhum acidente geográfico, nenhuma enseada, nenhum morro e/ou falésia, nenhum recorte digno de nota no solo. Apenas uma vastidão em linha reta de areia e uma vastidão equivalente de mar que acompanha a linha reta a perder-se de vista para os lados e igualmente para fora.


Um abandono apavorante, especialmente em dias de mar mais revolto e céu escuro. Um sem fim que -em algum momento- dá com a testa na África se você for em pretensa linha reta.


Fiquei em um brainstorm rabugento por alguns instantes, e logo me veio um tipo de pensamento ou piada de consumo interno que sempre é acionada, como uma secreção ou hormônio de uma glândula, nessa hora: "sabe onde está pior de onda? no Rio Guaíba" - e ato contínuo uma mensagem default no meu cérebro me mandando aproveitar, apesar de tudo.


Porém nesse dia me ocorreu algo meio incomum e vergonhoso, ainda, de tão piegas: se um dia alguma condição física inesperada - ou mesmo a idade - me impedir de surfar, eu olharia com saudade e ternura mesmo para os dias de caixotes fechados e ondas funcionando na meia bomba no mar mexido de Capão? "O que eu não daria para", como quem sente falta de alguém, traduzida em vontade mesmo de comer um prato preparado com falta de talento e esmero pela pessoa. "Bons tempos aqueles".


Lembrei, como quem toma uma vacina, do conceito nietzscheano do eterno retorno e do fato de que é um elemento de debate poderoso nessas horas. Nietzsche podia ter (em realidade tinha, é sabido) vários defeitos (a lista é grande). Um deles definitivamente não é a associação "nazista" que fazem a partir de compilações apócrifas e de encaixes pouco eruditos de algumas de suas críticas ao establishment judaico-cristão (como se fossem um antissemitismo vulgar) e de sua exaltação da força e do padrão germânicos como um respiro de imposição vitoriosa helênica de outrora. Há, de fato, em sua obra, uma possível construção de ambiente para que a insolência seja veículo de um individualismo que se pretende amoral (mas geralmente atinge apenas um padrão cínico e deturpado, e só), mas dificilmente cruel do modo sistemático e consciente pura e simplesmente de um fluxo de campos de extermínio ou algo que o valha.


Os personagens daquele que para mim é o melhor filme de Hitchcock, "Festim Diabólico" ("Rope", 1948) recitam uma fala assumidamente "nietzscheana" ao final para justificar seu escabroso plano - numa apropriação deprimente de uma ideia em uma obra cinematográfica tão incrível (embora não se possa, novamente, dizer que não é um dos rumos possíveis que a aplicação dos preceitos do filósofo pode atingir).


Mas: o eterno retorno.


A passagem que sempre me captura e fascina. Uma apropriação completamente inversa da pieguice do "você um dia vai sentir saudades de" ou "você ainda vai sentir falta do". Uma apropriação da mesma figura hipotética, mas sem um jugo moralista-franciscano com um tom nada leve de ameaça em prol do contentar-se. Um convite diferente.


Esse destino, que se descortina à sua frente (e igualmente às suas costas - eis que cada momento vivido carrega todos os anteriores e está grávido de todos que virão): você o afirma? Você toma as rédeas dele e o pratica, como quem o vivencia? Nietzsche nunca falou de resignação. Pode até ter dado aquele que é - paradoxalmente - o primeiro grande conselho de auto-ajuda como a conhecemos hoje, de fato (viver de forma a fazer coisas que, se se repetissem, eternamente, você as afirmaria, de novo e de novo - o 'eterno retorno' como esse compromisso ético é a interpretação que vários estudiosos da obra nietzscheana, inclusive um dos maiores, Roberto Machado - R.I.P. - propõem). Mas há uma inversão interessante de leitura: não viver como se acorrentado tristemente a um roteiro. Vivenciar o roteiro, que não acontece sem o protagonista. Afirmar o que se vive. Ir em direção a esse destino como Édipo alertado por Tirésias, na tragédia famosa, uma vez que ele se coloca diante.


Não há que se paralisar, no presente, por uma promessa de nostalgia (futura) em razão de coisas ruins (ou menos piores do que poderiam ser), no passado. Não há que se 'contentar'. Há que se domar o agora. Vivê-lo. Pratica-lo. Ele é seu futuro e seu passado. Não simplesmente o 'aceite'. O assuma.


Praticar o agora. Afirmar o que se é, para tornar-se exatamente isso.


Ergueu uma ali - milagre. Começo a remar. Fui.



UM LIVRO: dia desses minha prima ganhou de presente do marido o livro "Cozinha Confidencial", a, digamos, biografia do Anthony Bourdain. Fui informado por ela disso e sorri. Estou escrevendo isso olhando para a mesma sacada onde li boa parte dele e onde o finalizei, depois de tristemente ignorar muitas recomendações durante muito tempo para mergulhar na obra - que é rápida, mas repleta de emoção e histórias. Acho que você também deveria se dar esse presente (é clichê usar essa frase, mas é real. Ela vai te dar vontades). O mais legal é que Bourdain era o tipo de cara que permite que todas aquelas histórias sejam tidas por verdadeiras, em que pese ao fim do livro, deliciosamente, ele mesmo desminta algumas coisas - e/ou é desmentido após conversas com as mesmas pessoas, porém sóbrio.



UM FILME: não é bem um filme. É uma série. E já que estamos pervertendo a dica, vamos perverter de vez. É uma série. De animação. "La Frecuencia Kirlian" é uma pequena maravilha em duas temporadas onde o argentino Cristian Ponce nos oferece uma das melhores peças de ficção científica já criadas, e sem a limitação de filmagens, atores e efeitos práticos. O desenho (propositalmente estático, meio tosco e mal acabado como um rascunho em vários momentos) é um charme só. Na estação de rádio da "frequência Kirlian", um locutor misterioso recebe telefonemas e conta causos a respeito de um vilarejo perdido no interior argentino, mas que, aparentemente, é o centro do universo e seus mistérios.



UM DISCO: andei reescutando o disco "Jesus ñ voltará", de 2023, do artista cearense Mateus Fazeno Rock. Considero esse rapaz um dos maiores talentos surgidos no país em muito tempo. Seu som não é "eclético", naquele adjetivo meio aborrecido de quem não se decide e quer agradar gregos e troianos. Seu som é verdadeiramente misturado e consegue a proeza de meter uma crítica social 'foda' à moda rap-canto falado enquanto a banda toca algo digno de Black Sabbath ("Jesus ñ voltará"), um incrível pop-MPB que gruda, forte ("Pode ser easy" e "Indigno love") e um dos funks-batidão mais bonitos do mundo ("Da noite" - que é batidão, mas sem batidão, e, sim, acompanhado por palmas). Sério, vai nessa.

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