A Viagem
- Gabriel
- 25 de jul.
- 9 min de leitura

Michel Maffesoli tem em seu livro "O instante eterno" todo um diálogo sobre como é desejável aceitarmos a morte como parte essencial da vida - dado que ela, em primeiro lugar, é, ironicamente, a única certeza do percurso.
A cada minuto nossa respiração encurta e marca uma maior e maior proximidade com o evento, como diz uma famosa canção.
Mas a cantilena de Maffesoli vai além desse grau de inevitabilidade que torna tudo meio agridoce e sarcástico, e dialoga, sim, mais com uma propositura nietzscheana de aceitarmos o destino para justamente nos apoderarmos de seu curso: jamais vítimas incapazes ou resignados marchando. Que tomemos isso com alegria, fome de vida, desejo, impulso, celebração. Marcar presença na passagem, como compromisso ético, filosófico, político e de fruição.
Claro: Maffesoli traz consigo toda a verve (para o bem e para o mal) da carga do que muitos consideram uma faceirice 'pós-moderna' que celebra ou reafirma no século XXI o "tribal", a "comunhão", muito do que seria hoje jocosamente lido como um branco europeu com tendências tilelê fascinado por pirar em raves na Amazônia pintado de urucum. Não é de todo mentira, por mais que seja injusto com esse autor e com essa obra que li há 20 anos atrás (sendo que nessa parte, específica, recordo de estar lendo e sublinhando apertado em um banco de um avião rumo ao Rio de Janeiro que fazia paradas em Curitiba e Campinas - da, essa sim, finada, companhia 'low cost', WebJet). Ajudou um pouco com meu medo de voar (não foi eliminado, mas hoje anda bem melhor), dado que comprei a proposta e flanei pelas nuvens na garupa do francês pensando em como sou medroso quando do assunto 'morte' - e como em algum momento se impõe que eu deixe de ser. Entre turbulências e solavancos, em uma lata metálica a dez mil pés de altura, parece um bom lugar para refletir sobre isso.
****
Na semana que passou se foram Preta Gil, Ozzy Ozbourne e Luiz Alberto, meu tio. Muita gente no Brasil se comoveu com a partida da primeira, muitíssima gente no Brasil e no mundo todo lamentou a passagem do segundo e um número - digamos - menor sentiu a perda do terceiro (que, acreditem, se vocês conhecessem, tal como conhecemos as ideias e a personalidade de celebridades, certamente angariaria um bom número de fãs e simpatizantes).
Não gostaria de entrar em qualquer detalhe a respeito do falecimento do meu tio, mas apenas salientar que foi algo muito difícil para a rede familiar mais próxima. Complicações advindas de um tumor intestinal (mormente em pessoas com mais de 80 anos) geram um quadro que médica/cirurgicamente é de alto risco para qualquer medida a ser planejada, bem como causam um sem número de desconfortos e situações hospitalares que são do tipo que fazem pensar se vale à pena tentar. Ele tentou, o núcleo familiar mais próximo encampou a tentativa, a ideia era fazer frente. Bem: não deu. Isso inclusive abre margem para a próxima discussão, tal uma ala intermediária que antecede o próximo carro da Escola de Samba: como é perversa (ainda que com ares emblemáticos) essa mania de falarmos em "luta" contra alguma doença (mormente em se tratando de um câncer agressivo e em estágio perigoso), dado que não obstante tudo, a pessoa ainda carrega uma espécie de pecha de quem, em seu último ato, foi 'vencida' (em um 'combate' que por vezes se vale da própria inevitabilidade acima mencionada, o que faz dessa uma 'batalha' altamente falsária, em muitos casos).
Causou polêmica uma certa declaração de Gilberto Gil (aqui, pai de Preta e nada mais), sobre ela, talvez, ter como opção um se deixar partir. Na volúpia da metralhadora das redes e notícias mal redigidas, mal apuradas - e sobretudo mal lidas - de hoje em dia, parecia que Gil (sabidamente um homem carinhoso e conectado a seus familiares - em especial filhos/as e netos/as) estava como que aconselhando Preta a 'desistir' (ou, pior: querendo que ela de antemão 'fracassasse', fazendo com que o câncer vencesse a 'partida' por "W.O."). Leitura errada, mensagem errada para um exemplo (a 'batalha') infeliz - e errado.
Logicamente, como pai, Gil certamente sabia da condição de Preta, e certamente também ponderou algum tipo de desengano ou anúncio sobre a irreversibilidade do quadro que lhe fora dado. Bem como (creio eu) deve ter ponderado sobre os eventuais sofrimentos físicos e psíquicos causados pelo tratamento recomendado e sua (na questão) baixa eficácia em termos gerais. Gil foi grande, para equiparar a própria grandeza de Preta na travessia pela situação da doença: tirou dela o peso de uma 'vitória' a ser 'conquistada' e, assim, neutralizou justamente que sua passagem fosse vista como 'derrota'. Uma mulher que passou parte da vida sendo ridicularizada por sua forma física e por sua espontaneidade (muito mais do que por eventuais defeitos artísticos e más escolhas, ou pelas vantagens naturais de ser filha de um dos maiores brasileiros de todos os tempos) não precisaria, enfrentando uma doença severa, estar jogada em um clima de 'confronto' (onde, é possível mentir que não, mas sempre se espera algum tipo de vitória ou redenção heroica como o final "correto").
É um assunto bastante tenso para mim, medroso - onde anda o Maffesoli, aqui na estante? - mas, racionalmente falando, não há nada que me impeça de defender não apenas o direito de pessoas quererem abreviar o período a partir da eutanásia como o de talvez não desejarem persistir com algum tipo de tratamento como uma imposição cogente. Preta escolheu tentar. Não deu. Mas de forma alguma 'perdeu' a 'batalha'. Uma 'batalha' que não tem como ser combatida de igual para igual e que sequer pode assim ser chamada.
Muita gente aposta que Ozzy Osbourne optou pelo caminho da abreviação voluntária. Em se tratando de alguém tão cercado de lendas, não seria de admirar que sua alma tenha esperado na última parcela de entrega/pagamento de algum pacto com algum diabrete qualquer em troca de algum punhado chinfrim de drogas em alguma noite de bad vibe, e subido (ou descido) apenas após o concerto em Birmingham, quando baluartes do rock pesado do mundo todo se ofertaram em aperitivo para que se reverenciasse Ozzy e, por fim, a mais magnânima de todas bandas de metal, o Black Sabbath, juntos, em sua formação original, pela literal e apoteótica última vez.
Ozzy cantou seus números - da carreira solo e do Sabbath - sentado em um trono. Sua dificuldade de fala, voz fraquejante, por muitas vezes, e a tremedeira visível do seu corpo indicavam que, de fato, não dava mais. O trono parece uma reverência, mas ali era também a única forma de apoio para alguém que já não tinha uma simples incorreção de postura e uma dificuldade qualquer de se manter em pé.
Sou de uma geração que - sem exagero - 'esperava' pela morte de Ozzy desde o colégio (e aí você conta dez anos a mais do que os vinte atrás onde eu estava em um avião da WebJet lendo Maffesoli). Tal e qual lendas que se configuram em matusaléns sagrados da música (Keith Richards é o exemplo mais lembrado, sempre), Ozzy era sempre a bola da vez dadas histórias e causos de consumo pantagruélico de drogas nos anos 1970 e 80 e sua pose, muito mais de maluco do que de literal 'rebelde'. Sempre conto que a minha (e de minha galera) descoberta do Sabbath foi posterior à descoberta do próprio Ozzy. Especialmente o disco "No more tears" de 1991 e a música homônima - grande sucesso comercial - nos fez admirar aquele cara sem saber, de início, que era basicamente o (ou melhor: um dos) 'retorno' de um ser mitológico. Foi um cunhado mais velho de um colega que nos explicou sobre o Black Sabbath e sobre o fato de que aquele sujeito ali já não cozinhava na primeira fervura. A partir daí vivenciamos uma espécie de culto/surto que durou um bom tempo, e que se alimentava de qualquer disco, fita, CD ou informação que pudéssemos ter sobre o Sabbath. E foi, mais ainda, inflamado anos depois com o lançamento da coletânea "Nativity in black", onde artistas do calibre de Megadeth, Bruce Dickinson, Biohazard e Sepultura davam o tom da importância da banda ao oferecerem versões "modernas" dos clássicos que há não muito tempo tínhamos adotados como nossos hinos (havia um momento/tensão todo especial ao fazermos silêncio para ouvir a passagem de "N.I.B." onde Ozzy canta "(...) Look into my eyes, you'll see who I am / My name is Lucifer, please, take my hand". Era ousado e era como se desvendássemos um segredo proibido).
Os anos 2000 trouxeram Ozzy (e sua família) como personagens fofos, bufões, simpáticos e 'normais' para as telas de um público não necessariamente acostumado com sinos lúgubres, selos diabólicos, cruzes góticas e morcegos: sucesso na MTV, o reality show que ilustrava o (suposto) dia-a-dia na mansão dos Osbournes exibia Ozzy como um vovô divertido, desbocado, desajeitado, aparentando ter mais idade e dores nas costas do que efetivamente tinha e que já andava curvado de um modo sofrido, porém hilário.
O que fica de interessante é que Ozzy entra em um panteão muito raro (e, para mim, especial) de artistas, que contém David Bowie e Leonard Cohen (falei dele no texto passado) - o de pessoas que decididamente 'venceram' a morte porque cometeram a peripécia suprema que deixaria Maffesoli comprando artesanato descalço em Itacaré orgulhoso: usaram ela como peça artística. Nada lúgubre, nada lamuriosa, nada de um pedido de socorro triste ante o inevitável. Fruíram-na. Bowie lançou um disco elogiadíssimo ("Dark Star") e pouco antes de morrer um clipe sugestivo que evocava morte e ressurreição, do single de nome irônico, "Lazarus". Cohen gravou seu último álbum lançado em vida, "You want it darker" como uma espécie de testamento poético - e o verso arrepiante da música homônima - "(...) I'm ready / my lord" - dá calafrios na mesma medida em que comove.
Ozzy lotou o estádio do Aston Villa, em Birmingham, e reuniu, enfim, os outros três membros seminais do Sabbath (o show que vi em 2013, bem como o disco, "13" lançado para aquela turnê contava com outros bateristas - respectivamente Tommy Cufletos e Brad Wilk, já que Bill Ward não topou participar da 'reunião' anterior por uma série de imbróglios). Não é inédito esse feito, os quatro já haviam muito esporadicamente dividido o palco algumas vezes desde o primeiro rompimento, em 1978. Mas é absolutamente marcante. Astros do rock do mundo todo vieram para algo que, depois se notou, participar da cerimônia, como quem pede uma benção (macabra - e bem humorada) ao "príncipe das trevas", não exclusivamente para dar um conserto da programação do evento.
O que se viu, foi possível notar só depois, foram pessoas sorrindo, se abraçando, beijando, exaltando-se mutuamente em uma espécie rara de funeral antecipatório que não teve baixo astral (na mesma linha, Preta Gil teria solicitado que houvesse celebração, alegria e um 'trio elétrico' em seu velório, o que torço com toda força para que aconteça - está com muito homem essa lista, quero que ela entre a golpes de tamborim e batidão).
É preciso ser muito grande para 'jogar' de igual para igual com a morte. Ou para considerar ela nada mais do que a última onda a ser surfada. Quem consegue fazer limonada com esse limão galego aí tem meu respeito e admiração mais profundos.
UM FILME: "Mountainhead" é um tanto pueril na literalidade com que transpõe para a tela os pavores e neuroses do tipo de super rico tech bro que literalmente causa e se aproveita da desgraça mundana diária e da destruição da vida na terra. Mas diferentemente do horrível e enfadonho "Não olhe para cima", o filme de Jesse Armstrong consegue pautar o debate sem qualquer nível de superlatividade anedótica. Aquilo ali está, com toda a certeza, acontecendo, em alguma casa luxuosa, nesse exato momento.
UM LIVRO: "Black Sabbath. Uma biografia" de Martin Popoff é delicioso para fãs da banda em um sentido óbvio. Mas periga ser para não fãs idem, dado que documenta um dos ajuntamentos de roqueiros mais atribulados e erráticos de todos os tempos: as confusões em torno das brigas e das mudanças de formação da banda (melhor anotar com um caderninho, paralelo), vão do cômico, passam pelo trágico, chegam ao triste e atingem redenções inesperadas. Pelas tantas você se pergunta porque passar pelo constrangimento e pela marcação a ferro e fogo, por tanto tempo, para manter algo que por vezes era um nome vazio e mais nada, vivo. A resposta sopra com o vento.
UM DISCO: "Black Sabbath", o homônimo disco de estreia da banda, em 1970, não é meu preferido, que fique claro (oscilo entre o "óbvio" Paranoid e o nada óbvio Sabotage). Mas é o álbum onde se vê que o jogo muda para o rock e um novo cenário, com novas cartas, é introduzido de vez. Hoje quase plain perto do que se vê de coisa escabrosa por aí, as canções que evocam por vezes misticismos obscuros não precisam de grafias feitas com imagens digitalizadas e clipes gore para mostrar um tom soturno, misterioso e assustador. Fora que é desse disco a, na minha opinião, insuperável melhor canção da história da banda: "The Wizard" e seu balanço indefectível.