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BLEEP

Foto do escritor: GabrielGabriel



Dia desses o perfil Dr. Bluesky (ex-, convenientemente, Dr. Twitter) fez a seguinte postagem:



Concordei de imediato e repostei na mesma rede, comentando que esse filme foi uma das maiores fontes de bobo-alegrismo cientifico jamais visto, dado que propagava com suposto teor "científico" e "pós-moderno" baboseiras tilelê como aquelas que enganaram boa parte das dondocas desocupadas que se pretendiam antenadas e uma multidão de cabeças-fraca esperando para caírem em golpes variados, tal coisas como "O Segredo" e outras supostas auto-ajudas de bolso que na verdade eram soluções mágicas pocket que ofereciam a pior versão da ideia de reencantamento do mundo.


Me surpreendeu o fato de que muita gente não tinha (sequer) escutado falar da obra e pude perceber um choque geracional interessante nessa era em que a suscetibilidade - quando não a vontade, expressa, literal - para ser enganado por baboseiras acomete grande parte da população viva do ocidente.


O período era 2005/2006 e eu tinha acabado uma pós-graduação e estava no primeiro ano do meu Mestrado.


Ainda sob a influência de uma vertente que se erigiu com força nos anos 70 e tomou corpo definitivo na academia nos anos 80 e 90, a interdisciplinaridade era a bola da vez e, em um programa fundamentado no Direito, éramos influenciados a pensar as ciências criminais sob óticas distintas (o que é ótimo), como a história, a antropologia, a filosofia a (sedutora) psicanálise entre outras vertentes. Li poucos textos jurídicos nesse período inicial, me abrindo muito mais para a filosofia e a psicologia analítica - chegando às raias de comprar não um, mas dois livros sobre o pensamento de Ilya Prigogine a respeito de caos e termodinâmica (eu sei, eu sei).


Tudo que se conectasse com áreas do conhecimento que pareciam estranhas (e eram) ao pensamento e à ordem jurídicas nos era atraente e divertido e foi um grande período incubador e de testes de 'foguetes' para muitos ali.


(Claro: não tínhamos tanto cacife, moral, bagagem e talvez vontade de contradizer nossos mestres em relação a algumas curvas epistemológicas bastante esquisitas de gurus como Fritjof Capra, nem de desdizer algumas tolices evidentemente charlatônicas que já se exibiam frondosas nos textos do, então ainda incensado, Boaventura de Souza Santos - figura felizmente em vários sentidos obscurecida, hoje).


Foi no contexto dessa recepção máxima de abertura da mente e da alma no contexto da pós (em 2005) que um filme/documentário do ano anterior, 2004, começou a ser comentado pela comunidade acadêmica: "What the bleep * do we know?" (assim, com um 'bleep' para não escrever 'fuck' - e que em português ganhou um título ainda mais apelativo, mas talvez não menos bizarro: "Quem somos nós?"). Dirigido por William Arntz, Mark Vicente e Betsy Chasse, "Quem somos nós" era um compilado paupérrimo, mas muito sagaz no que diz para com uma série de touchets supostamente científicos em crenças e estamentos comuns de nossa sabedoria usual, tentando provar coisas absurdas como uma ingerência quase mística/direta/super-heroística do "pensamento positivo" em nossa vida (a partir de um experimento meio ridículo e total questionável com palavras escritas em papel e moléculas de água), além de demonstrar que átomos e eletricidade não fazem a gente verdadeiramente "encostar" em nada, e outras simplificações mixurucas quetais. Mas a grande tônica do filme era a de que absolutamente tudo está conectado e pode (em tese - capenga) ser explicado através daquela que desde os anos 90 se popularizara como a grande não-explicação de absolutamente tudo e nada do mundo: a física quântica.


Olhando com um pouco de distância (e era visível a baboseira disso tudo, embora não possa negar que muito do que vi no DVD-R do filme que rodava emprestado por e para todo mundo fez algum tipo de "sentido" para mim, um tanto deslumbrado, à época) se percebe claramente que não há basicamente nenhuma diferença entre as tolices ali propagadas e essa obra fílmica, escrita e ponte de teses/cultos/palestras chamada "O Segredo" que também fez um sucesso estrondoso e puxou toda uma linha de uma nova auto ajuda com pitadas de misticismo patético, fora esse suposto ar mais cientificista que, na realidade torcia total os conceitos científicos para que coubesse dentro da gaveta energético-espiritual bobinha que vendia (a explicação que pessoas se apaixonam umas pelas outras pelo poder da atração "quântica" é uma das coisas mais deprimentemente ruins que já foram em algum momento levadas a sério, no século).


Passado um pouco de tempo, eu e alguns colegas começamos a fazer alguns desvios ligeiros de rota de algumas das pataquadas pós-modernas paga-vale (embora na própria dissertação, ano seguinte, eu segui ancorado a algumas delas), primeiro de forma um tanto como quem foge de um sujeito chatonildo no corredor, e depois, já como algum estofo, declarando guerra aberta, como quem se liberta dos grilhões ou algo que o valha. Era muito estranho seguir referenciando um grupo de autores e textos que parecia repetir como papagaios que a ciência moderna empatou, basicamente, em termos de conquistas porque nos rendeu coisas como a penicilina e também coisas, veja você, como a bomba atômica. Quites. Zero a zero. "Bom mesmo é esse xamã aqui e suas ervas medicinais": e seguia-se uma apropriação totalmente desrespeitosa e simplista da sabedoria xamânica somada a uma leitura completamente desonesta de algum parâmetro científico, conseguindo a proeza de desrespeitar dois saberes importantes na tentativa de homenageá-los (nada mais branco, ocidental - e hétero - do que purgar a culpa procurando não recepcionar uma outra linguagem, mas absorvê-la, capitalisticamente, de forma disfarçadamente alegre ou altruísta).


Pensei nisso porque não se passa uma semana, quiçá um dia, sem aludir a alguma consequência tenebrosa de algum tipo de picaretagem frente a quem está plenamente compatível ou pouco prevenido (se não com vontade expressa de contato) para ser enganado: bets miraculosas, tigrinho, limão curando câncer, conspirações secretas sobre "o que jamais lhe contaram". Não parece ser simplesmente resolúvel, o problema, em uma questão de orientação política reacionária, visão de mundo tacanha e idade geracional. Pessoas sedentas por aberturas de realidade que coloram de alguma forma sua realidade, ofereçam algum tipo de porta para qualquer outra coisa e inundem um mundo sem graça de corantes, mesmo que tóxicos (tal e qual um glitter mental) existem em todos os meios e camadas de instrução.


Longe de dizer que um filme esquecido e esquecível desses condicionou o fazer científico no planeta, é possível dizer que um atraso, mesmo que ínfimo no progresso do pensamento causado por um hype momentâneo de um engodo um pouco mais bem entalado do que os engodos usuais é perigoso: basta ver a indiferença total desse tipo de ideia e filme para coisas que eram absolutamente ridicularizadas oferecendo o mesmo núcleo e recheio.


Não faz muito tempo que se discutia e escrevia a sério no Brasil as pataquadas do Boaventura - que errava epicamente quando errava, e quando acertava, propagava em realidade óbvios ululantes (lembrando que é um Europeu nos ensinando sobre 'favelas', um português nos ensinando sobre decolonialidade e saberes ancestrais, um europeu nos ensinando sobre valorizar a cultura latina e um homem de conduta machista abjeta nos ensinando sobre a feminilidade dos saberes 'marginais' e a feminização de uma ciência da nova era).


Se você separar apenas a última fatia do parágrafo acima vai encontrar em muitas áreas, em especial àquelas afeitas às humanidades, hoje, um sem número de gente assim. Seguem firme, enganando.


Nosso mundo fora prometido como uma expansão sem limites, fronteiras e amarras: fomos cair, de fato, em um mundo tão careta e pobre que a propensão a qualquer venda de terreno na lua do ponto de vista epistemológico e afetivo é um risco tremendo.


Dia desses escrevi um posfácio para o vindouro livro de uma ex-orientanda (já escrevi o prefácio do livro anterior dela, aqui é acompanhamento/serviço completo!): lembrei de Robert Pirsig e seu "Zen and the Art of Motorcycle Maintenance": o rigor metodológico estrito não deveria ser coisa de cientistas antiquados, alienados e reacionários. É, sim, coisa de apaixonados: o verdadeiro cientista é rigoroso e sóbrio, não porque quer construir verdades absolutas, mas porque quer evoluir, construir pontes sólidas e permitir aos próximos que refaçam - e quiçá desmintam - seus passos. O resto é papagaiada e achismo (fontes de outra ordem).


Como a breguice suprema da new age nunca vai embora, por deus?



UM LIVRO: já que fora citado acima, 'Zen e a arte de consertar motocicletas' é um livro recomendável, porém dúbio e, por vezes, maçante até. Relata em tons biográficos um tanto quanto "soltos" a própria busca do autor, Robert M. Pirsig por um meta diálogo científico-acadêmico, narrando uma jornada que parece ela própria uma imensa palestra (ou conversa) sobre os limites e propósitos do estudo e da dedicação técnica e estudiosa. Fala tanto de isolamento, esquizofrenia e problemas de relacionamento quanto discursa imponentemente de forma interessante sobre epistemologia e sobre o que pensar e esperar das ciências (e de seus protagonistas).


UM DISCO: por mais que faça quase 30 anos da morte do genial Chico Science, há pessoas que associam exclusivamente a ele e aos (lamentavelmente apenas) dois trabalhos à frente da Nação Zumbi a trajetória da banda, que por todo esse tempo se manteve ativa e dona de algumas das melhores apresentações musicais que é possível ver em nosso país. Voltando a escutar o disco de 2014, intitulado apenas "Nação Zumbi", é possível ter um testemunho da distância de duas décadas para o primeiro trabalho em um álbum absolutamente ímpar que briga de foice com os discos na presença de Chico como os melhores trabalhos deles. É desse disco que saem petardos como "Foi de amor", "Bala perdida", a adocicada "A melhor hora da praia" e a obviamente reverenciada "Um sonho" (fazer o que, se é uma das canções mais incríveis já lançadas e um dos momentos mais sublimes do gênio da guitarra, Lúcio Maia?)


UM FILME: já havia escutado falar, mas foi a partir de uma dica - do Caio Maximino - no Viracasacas que eu anotei a ideia de assistir "Possessão" (1981, Andrzej Żuławski). Um filme de "terror" (você vai entender as aspas) absolutamente inusual e incrível, onde Isabelle Adani e Sam Neil estão em uma espécie de laboratório de atuação a céu aberto, vivenciando as agruras de um casal com um comportamento errático e absurdo da esposa após ela suscitar o divórcio que parece (e só parece) ser ocasionado por um romance vivido por ela com outro homem. Um paralelo incrível e escancarado com o cenário da trama, que é a Alemanha e a Berlim divididas cogentemente, (coisas que são difíceis de acreditar até hoje). Esquisitíssimo, do tipo que não é um prato que você pensa em encarar o trânsito até o recinto do outro lado da cidade para degustar. Talvez você nunca o peça de novo. Mas: sensações.

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