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  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 24 de jan.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 25 de jan.


Essa frase que dá título a esse post está escrita no meu "Livro do Bebê": quando nasci (1979 do nosso senhor) não havia OneDrive, nem pen-drive, nem celular, nem Rolo de câmera (esse havia, mas era físico e não um apelido para uma seção de um app do seu aparelho de comunicações portátil). Era muito comum as famílias terem livros de capa dura a servir como álbum - manual - de fotos e assim como era comum haver esse "Livro do Bebê", que era uma espécie de álbum como esses, porém dedicado aos registros iniciais sobre os mais novos integrantes das famílias.


No "Livro do Bebê" - mistura de caderno de notas, com álbum de fotos, com depósito/banco de dados genético (havia espaço com um compartimento de plástico, tal um envelope embutido em uma das páginas - para guardar uma mechinha de cabelo da criança) e espécie de diário da mãe gestante, haviam notas sobre "Meu primeiro banho", "Com quantos quilos eu nasci" (eu, no caso, 3 e pouquinho, não era muito grande não), espacinhos para registros e fotos dos períodos da gravidez e coisas assim.


Na seção inicial onde deveria ser preenchido "Meu nome é" (Gabriel) e o "Motivos que Papai e Mamãe escolheram esse nomezinho", essa segunda assertiva ganhava essa resposta já mencionada, com a letra do meu pai.


***


Falei muito rapidamente sobre David Lynch - meu diretor favorito, realizador do meu filme favorito ("Blue Velvet") e uma das pessoas mais inspiradoras para minha consciência e formação dentre todas do planeta - no post da semana passada, sobre Los Angeles e meu fascínio respectivo. Não haveria como não, sobretudo a partir do fato de que a Los Angeles (e a própria Hollywood) que ele retratou ser uma das tônicas constantes de alguns dos seus mais ousados trabalhos ("Lost Highway", "Mulholland Drive" e "Inland Empire") e ajudar vividamente a compor essa minha predileção já exposta.


Lynch tem uma filmografia fascinante onde por vezes (explicação mais comumente aceita) histórias têm trechos de sonhos (e/ou delírios) se interpelando entre a realidade ajudando a compor a narrativa.


Dois dados curiosos:


Lynch nunca evidencia de uma forma tão afirmativa que há o componente do sonho se opondo ao da realidade em partes distintas ou definidas dos filmes - embora faça sentido (seria esse o objetivo? meta-pergunta) - pensar o fio da meada do roteiro e da proposta assim (no caso de "Mulholland Drive" é inclusive um tipo de explicação "oficial" tida por canônica). Lynch nem sequer deixa claro que há o fator 'sonho' envolvido;


E: Lynch parece interessado em ver a coisa pela perspectiva do sonho e de quem o sonha, e não pela de quando esse sonhador desperta - ou pela nossa que vemos de fora. Ele está interessado na mensagem e não em sua tradução (o que não significa que é um puro non-sense imagético sem qualquer propósito senão a beleza, o torpor ou o horror visuais, mas, sim de que há uma mensagem passada que não necessariamente tem como ser traduzida ou que pode perder demais no câmbio com a moeda da racionalidade se assim o for).


Um dos fatores críticos (e que me deixa curioso sobre como a obra de Lynch pode ter sido tão sentida por um número de pessoas que extrapola, e muito, a condição do 'cinéfilo' padrão-básico) é o fato de que ele parece avesso a essa era inclusive naquilo que mais catastroficamente e tristemente a definem: o fato de que as pessoas, neutralizadas em termos criativos por um universo de conteúdos e veículos que é estrito, limitado, pobre e mercadologicamente (no eixo emissor e também no receptor) necessariamente rápido e rasteiro, precisam cada vez mais do único item com o qual o diretor pareceu quase nunca negociar: explicações lineares, curtas, de assimilação mal mastigada e que carimbam resumos de um fator para serem apreendidos durante uma espera em uma fila ou um trecho mais longo de elevador.


Pode parecer uma coisa ligada à ânsia de um professor nascido no último ano da década de setenta (faça os cálculos) no que diz para com a velha (porém necessária) reclamação de que o imediatismo vai destruir tudo e todos. Em parte é isso, sim. Mas: é espetacular como nesse quesito se pode ver que apesar dos assentidos acúmulos de sabedoria a partir de ciência, experiência e reflexão, o lógico (que seria evoluirmos com o uso e a predileção desses quesitos) é suplantado pela materialidade canhestra da faticidade: em vários e básicos quesitos, estamos piorando de modo geral. Interpretação de texto e capacidade de abstração são dois desses (cruciais).


A lógica da velocidade dos "vídeos curtos" e explicações cada vez mais resumidas (há vídeos rápidos - tal e qual a regra da onipresença pornografia na web - sobre basicamente tudo o que há), obedecem, ao fim, a uma lógica de consumo e de estética que alimenta, se alimenta e retroalimenta essa própria matriz. Seria fácil usar a cartada de culpar "o mercado" enquanto ente abstrato, mas a verdade é que a engenharia é mais complexa envolvendo nossa própria forma de ser e estar no mundo (sempre enfatizo a questão imaterial e cognitiva do capitalismo como fundamental: a disputa não é pelo nosso papel de consumidores e sim sobre quem somos, o que pensamos - e pensaremos - o que desejamos e de que forma tudo isso pode ser mais e mais previsível ou capturado). Há esse universo todo de conhecimento que ultrapassamos tal um lago apenas pela borda mais rasa, sem qualquer mergulho exploratório, porque, entre outras coisas, já somos assim e é assim que assimilamos uma forma correta de postura (sempre digo aos meus alunos que é verdade que eles conseguem fazer/prestar atenção em três ou quatro coisas ao mesmo tempo, da fato. Claro: mal, em todas, uma vez que se pode distribuir atenção, mas não como um microprocessador ou o Dr. Manhattan como se de fato uma duplicidade ou multiplicidade de consciência fosse possível. Um olho no gato, outro no peixe. Mais olhos não há, então, gato ou peixe, terão para si algum ponto cego de descuido, invariavelmente).


Há alguns anos se popularizou (com razão) a crítica quanto ao fato de que tratamentos/práticas mais lentas e profundas (e doloridas) como as análises psicológicas e/ou psicanalíticas perderam espaço para o imediatismo dos fármacos e de outros milagres instantâneos supostos. Ninguém quer: 'perder tempo' conversando e refletindo - e amadurecendo. O lance é maquiagem e doping. Lifting mental e estímulo. Hoje em dia a coisa se agravou para todo e qualquer campo e em termos de leitura e consumo cultural, a ordem é resumir tudo, adiantar tudo. Streamings com opção de "alterar a velocidade" do filme são vistos como algo que não parece ser a aberração que é. E as explicações. Muitas explicações. Tudo explicado. Tudo minuciosamente descrito.


Ai de se arriscar com uma cumplicidade ou com uma fagulha acesa de referência para quem lê, vê, ouve. Tudo tem de ser dado em forma padrão. Tudo o que você absorve já vem com as orientações típicas. É tudo um contrato de adesão que você alegremente assina, e no qual você se vicia rapidinho.


Vídeos rápidos/curtos não são absorção curta e rápida de conhecimento, na mesma medida em que olhar para quatro telas com uma falsa simultaneidade e dizer estar "acompanhando" quatro programas ou filmes diferentes. Da mesma forma, é de se questionar o quanto se está de fato aprendendo ou - pior - entendendo algo - na medida em que é quase uma exigência atual dos produtos culturais que eles apenas entreguem, apenas direcionem, não permitam qualquer espaço para o receptor. Mais: o próprio receptor exige e não se contenta com absolutamente nada que não seja uma entrega full de absolutamente tudo - sobretudo do 'sentido' das coisas que deva eventualmente ser simbolizado e do que deve ser ativado em termos afetivos. Pobreza.


É desse mundo que um cara como Lynch partiu, sendo, paradoxalmente, ovacionado por muita gente. Coisas que é melhor não tentar explicar.


UM FILME: separe um bom drink (se você for de), se aconchegue no sofá e dê play em "A estrada perdida" ("Lost Highway", 1997). Se nunca o fez - ou mesmo se já o fez, embora há tempos. Deixe o filme chegar até você. Não o interrogue.


UM LIVRO: "Em águas profundas" é o suposto livro de David Lynch sobre meditação onde ele não quer falar sobre filmes, séries, roteiros e intenta fazer uma espécie de propaganda voluntária da prática e suas vantagens, numa espécie de almanaque chinfrim mesclada com lógica de coach motivacional. Mas é claro que: em mais franjas e respiros onde ele mesmo admite claramente, vazam generosas informações, fluxos de consciência e curiosidades sobre seus filmes e sobre a imagética fascinante de seus trabalhos (não há, lógico, muitas explicações no sentido cartesiano, mas são gorjetas deliciosas que ele dá em meio a - sorry - muita papagaiada de branco semi-deslumbrado com papo transcendental).


UM DISCO: a trilha sonora de "Veludo Azul" (Blue Velvet, 1986) é um dos resumos da verve lyncheana. Traz o sombrio instrumental orquestrado pelo seu soul mate Angelo Badalamenti (que ficaria famoso pelo trabalho com Lynch nas peças sonoras marcantes de "Twin Peaks" anos depois), convivendo com pérolas pop como "In dreams" de Roy Orbison, a canção que inspirou o título do filme, por Bobby Vinton - e também pelo pré-dream pop enigmático de Jullee Cruise (que também viria a ser notável em "Twin Peaks")

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 17 de jan.
  • 7 min de leitura





Um brisa fresca soprava e o mar azul explodia em uma única onda - que beijava a costa com força e barulho - enquanto eu olhava pela janela quase na borda do trecho de estrada sem saída: assim foi o dia em que eu almocei em um restaurante ridículo de cool em Malibu, Califórnia. Tem foto para ilustrar a cena (e comprovar) e ela está postada logo abaixo (e que, como todas fotos do post, foram tiradas por mim e fazem parte de meu arquivo pessoal).


Vínhamos do norte, pela Highway 1 que volta a ganhar esse nome após alguns afastamentos da costa e uma mistura, pelas tantas, com a US 101 que foi nosso chão desde San Luis Obispo, no centro do estado, após um dia de mais estrada, desde San Francisco.


Antes do monstro - L.A. - uma parada na icônica Malibu (já nas cercanias do condado) para abastecer, comer algo e refletir sobre o que iria acontecer em alguns quilômetros.


***


Sempre tive uma opinião que fora quase que literalmente (e me refiro às mesmas palavras basicamente na mesma ordem) exibida no incrível documentário "Los Angeles plays itself": Los Angeles é possivelmente a cidade mais documentada do mundo, embora você talvez não saiba. É possível quase intuir quando um filme é, por exemplo, ambientado em Paris ou em Nova Iorque sem jamais ter estado nessas cidades (ou sem imagens da torre ou da estátua que você sabe quais são), pela carga extrema de símbolos culturais e imagéticos: uma moça tentando graciosamente se comunicar com garçons de bistrôs (e falhando), de boina de tricô, andando de bicicleta por ruas charmosas? Paris. Outra, apressada entre bueiros fumegantes engolindo algo quase sem mastigar e equilibrando o café enquanto fala ao celular e atravessa a rua em meio a centenas de pessoas e carros? Nova Iorque - no máximo das concessões, Chicago.





Los Angeles é tão múltipla e tão alheia ao cenário usual que habita os signos da "Califórnia" metafórica (como palmeiras onipresentes - isso, bem: realmente há, bom dizer - e as praias com garotas andando de patins em biquinis coloridos), e é tão assustadoramente extensa no sentido horizontal, que parece infinita (em todas acepções da palavra). Não à toa o fascínio de tantos geógrafos, urbanistas e estudiosos críticos (como Edward Soja ou Mike Davis, por exemplo), para tomar a cidade como simbologia e como palco para digressões sobre espaço, tempo, lutas sociais, cultura e futuro. Naquele fantástico filme de Jim Jarmusch sobre vampiros (assunto da moda hoje em dia), o personagem de Tom Hiddleston chama os humanos de "zumbis" e agracia Los Angeles com o título de "capital dos zumbis", numa alusão à perdição humano-capitalista-egocêntrica e deprimente de nossa vida mortal. Ver Los Angeles iluminada à noite, de algum ponto alto, como os hills que imprensam Hollywood, é ver ao mesmo tempo o deserto, suas miragens e a esfinge (não o monumento - e seu nariz caído - mas a da mitologia, que lhe impele a ser decifrada ou a você, por ela, ser devorado).


Há muita coisa que você já viu por aí que é Los Angeles: por vezes um centro urbano frio e tecnocrático; por vezes hotéis de caráter tropical entupidos de celebridades bêbadas e cheiradas; por vezes, periferias miseráveis repletas, por vezes, de população negra, por outras, de população hispânica; bairros que emulam comércio e camaradagem de cidades pequenas; bicho grilagem e casas de praia que parecem daquele seu tio tido por esquisito na família, que foi morar na praia e viver das coisas que a natureza, etc.; outras, palacetes herméticos que gritam old money e são habitados sazonalmente por pessoas que ditam rumos de economias e guerras. O melhor cachorro quente que você já comeu, no lugar mais simples (beirando o insalubre). O - poucas quadras ao lado - restaurante mais caro e badalado do momento, servindo aperitivos a preço de banquetes. Lugares, quadras, ruas, bares inteiramente étnicos do tipo que você é malvisto se não for filipino, coreano, guatemalteco, armênio.


A esfinge é mutante e indecifrável. Invariavelmente sempre ganha o jogo e nos devora.


***


Los Angeles me influencia desde minha tenra idade. Sou fã de skate (Os Z-Boys de Dogtown, especialmente e, sim, ainda), de surfe (a influência do filme "Caçadores de Emoção" na minha vida é inverbalizável), dos Beach Boys, do glamour hollywoodiano. Filmes antigos que meu pai me incentivava a ver e me amadureceram antecipadamente ("Crepúsculo dos Deuses", por todos). Filmes "novos" (sobre tudo e todos: "Boyz n' the hood").


Depois, na pré-adolescência e na adolescência, em si, veio o punk-hardcore do NOFX ("Punk in Drublic", divisor) e do Bad Religion, quase ao mesmo tempo que o gangsta rap de Dre. (O "Chronic" resume absolutamente tudo), Snoop, Tupac. Os Chili Peppers e Jack Nicholson sempre apareciam nas quadras e/ou usando regatas dos Lakers e parecia ser correto escolher torcer para essa equipe dentre as transmissões iniciais dos jogos da liga de basquete americana que a Bandeirantes começava a exibir às sextas feiras, por mais que só se falasse nos Bulls de Michael Jordan. Havia inclusive um cara que era tratado por "Mágico" e outro de sobrenome muçulmano que usava óculos para jogar e parecia ter três metros - o time era esse, não adianta.


Mais tarde a literatura e John Fante narrando sempre a mesma pessoa, ainda que sempre diferente, vivendo numa Los Angeles que parecia ser a de agora, e cujas agruras pareciam ser as minhas, com muitas décadas e algumas milhares de milhas de diferença. Os policiais e as intrigas daquela cidade que parece sempre guardar algum segredo. O sol que é constante mas parece sempre um intruso. A morte da Dália Negra e John Lennon - a essa altura um símbolo novaiorquino de 'licença' - enlouquecendo na noite do Rainbow, pareciam habitar o mesmo espaço-tempo. Os tumultos quando os assassinos de Rodney King foram absolvidos. A "Estrada Perdida" e "Mulholland Drive", de David Lynch (sempre David Lynch). Tarantino e sua coleção incontável de vagabundos. A efervescência (para quem nem entendia o significado cultural desse termo, mas podia senti-lo nos olhos).


E havia o mar. Não qualquer mar. O Oceano Pacífico, o mar oposto a tudo o que eu conhecia de mar. Quase uma promessa, um mito. E a marra atinente ao espírito litorâneo. Não me imagino idealizando e fantasiando com qualquer lugar longe de algum trecho de mar.


***


Conheci Los Angeles com uma devoção até meio ridícula, se vista friamente.





Uma primeira conclusão feliz é que a demora para visitá-la valeu à pena: uma ida (impossível sob vários aspectos) quando era mais novo me apanharia com menos referências - embora eu devore tudo sobre a cidade há mais tempo que você suporia e que seria recomendável, garanto. Não sou refratário aos Estados Unidos, e igualmente não sou um entusiasta. Quase sempre não tinha dinheiro para qualquer tipo de aventura como essa. Quando passei a ter, já na vida adulta, agarrado pela minha própria unha, por vezes não tinha oportunidades. Quando se aliaram algumas vezes dinheiro e oportunidades, priorizei outros lugares. Os "Estados Unidos" são uma coisa na minha afetividade. A Califórnia, e Los Angeles, outra.






Ao contrário e incompatível com o universo de piadas e ironias meio enfadonhas que sugerem acompanhar um tragédia em algum país hegemônico com um ar de satisfação meio estúpido e insolente, vejo com tristeza parte da cidade ser consumida nesse início de janeiro por uma combinação de ventos secos alucinantes com queimadas que promove verdadeiros furacões de fogo. Lógico: quem não ri frouxo e/ou solta o afamado arzinho pelo nariz ao saber que celebridades que primam por reacionarismo burguês e discursos de ódio branco e heteronormativo (além de negacionistas climáticos) se deram mal, está meio morto por dentro. Mas fingir que está tudo bem um negócio desses (por ser nos Estados Unidos) é um tipo de performance de cinismo (e vida consumida pela dinâmica de replies e memes) que está contaminando demais as redes sociais, e uma prática da qual quero total distância.


A sensação é um misto estranho de pena com um certo alívio por ter vivido e visto com os próprios olhos tanta coisa. É o exato misto de saber que o fogo se alastrou por Westwood e Brentwood, comunidades ultra-bilionárias onde, não muito longe, se localiza o The Getty, um museu-cidade-espetáculo cria de uma fundação de outro desses hecta-trilhardários querendo possivelmente purgar a culpa inata ou ser visto pelas letras douradas da história oficial como uma espécie de herói. Whatever: monumento tanto do absurdo da desigualdade social quanto de tudo o que o dinheiro pode fazer em termos de bom gosto, o lugar é apaixonantemente lindo. É lindo no nível que dá dor de cabeça. E enxerga a esfinge de cima de um modo até tranquilizante, quase de igual para igual.





UM DISCO: não é bem disco o que indicarei hoje, mas uma proposta (lá vem). Uma tradução contemporânea incontornável do espírito frenético, perturbado, jovial e meio ensimesmado e egocêntrico da cidade é inegavelmente representada pelos Red Hot Chili Peppers. Mas deixarei de dica, na verdade, uma série de vídeos de Youtube com os trechos de guitarra de John Frusciante isolados e solitários. A qualidade técnica de Frusciante despida do resto da banda se revela como falha - meio tosca, até em vários momentos - e áspera, mas descasca outra camada sublime e linda de suas ideias, que parecem trilhas sonoras perfeitas para o que se pode encontrar sob o sol daquele trecho de mapa. "Scar Tissue" eu jamais conseguirei a partir de agora ouvir se não assim


UM LIVRO: leia "Pergunte ao Pó" de John Fante. É, é só isso. Simples assim. E se puder dizer mais uma mísera coisinha: pelo amor de deus, fuja daquele filme de 2006. Não assista sob nenhuma hipótese.


UM FILME: "Under the Silver Lake" é um filme longo, cansativo, por vezes pedante e, por outras, como medo de se levar até às últimas consequências (e assim debochar de algumas das próprias incongruências). Se após isso sobrou ainda em você alguma vontade de assistir, saiba que ali se encontra um estudo/tentativa de mapear uma Los Angeles ainda não tão escrutinada, que é a do pós-hipsterismo da região de Silver Lake/Echo Park pós-anos 2010. É quase uma crônica sobre a cidade, com muita verdade entre algumas doses de bobagem meio além da conta.

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    Gabriel
  • 10 de jan.
  • 7 min de leitura



Dia desses o perfil Dr. Bluesky (ex-, convenientemente, Dr. Twitter) fez a seguinte postagem:



Concordei de imediato e repostei na mesma rede, comentando que esse filme foi uma das maiores fontes de bobo-alegrismo cientifico jamais visto, dado que propagava com suposto teor "científico" e "pós-moderno" baboseiras tilelê como aquelas que enganaram boa parte das dondocas desocupadas que se pretendiam antenadas e uma multidão de cabeças-fraca esperando para caírem em golpes variados, tal coisas como "O Segredo" e outras supostas auto-ajudas de bolso que na verdade eram soluções mágicas pocket que ofereciam a pior versão da ideia de reencantamento do mundo.


Me surpreendeu o fato de que muita gente não tinha (sequer) escutado falar da obra e pude perceber um choque geracional interessante nessa era em que a suscetibilidade - quando não a vontade, expressa, literal - para ser enganado por baboseiras acomete grande parte da população viva do ocidente.


O período era 2005/2006 e eu tinha acabado uma pós-graduação e estava no primeiro ano do meu Mestrado.


Ainda sob a influência de uma vertente que se erigiu com força nos anos 70 e tomou corpo definitivo na academia nos anos 80 e 90, a interdisciplinaridade era a bola da vez e, em um programa fundamentado no Direito, éramos influenciados a pensar as ciências criminais sob óticas distintas (o que é ótimo), como a história, a antropologia, a filosofia a (sedutora) psicanálise entre outras vertentes. Li poucos textos jurídicos nesse período inicial, me abrindo muito mais para a filosofia e a psicologia analítica - chegando às raias de comprar não um, mas dois livros sobre o pensamento de Ilya Prigogine a respeito de caos e termodinâmica (eu sei, eu sei).


Tudo que se conectasse com áreas do conhecimento que pareciam estranhas (e eram) ao pensamento e à ordem jurídicas nos era atraente e divertido e foi um grande período incubador e de testes de 'foguetes' para muitos ali.


(Claro: não tínhamos tanto cacife, moral, bagagem e talvez vontade de contradizer nossos mestres em relação a algumas curvas epistemológicas bastante esquisitas de gurus como Fritjof Capra, nem de desdizer algumas tolices evidentemente charlatônicas que já se exibiam frondosas nos textos do, então ainda incensado, Boaventura de Souza Santos - figura felizmente em vários sentidos obscurecida, hoje).


Foi no contexto dessa recepção máxima de abertura da mente e da alma no contexto da pós (em 2005) que um filme/documentário do ano anterior, 2004, começou a ser comentado pela comunidade acadêmica: "What the bleep * do we know?" (assim, com um 'bleep' para não escrever 'fuck' - e que em português ganhou um título ainda mais apelativo, mas talvez não menos bizarro: "Quem somos nós?"). Dirigido por William Arntz, Mark Vicente e Betsy Chasse, "Quem somos nós" era um compilado paupérrimo, mas muito sagaz no que diz para com uma série de touchets supostamente científicos em crenças e estamentos comuns de nossa sabedoria usual, tentando provar coisas absurdas como uma ingerência quase mística/direta/super-heroística do "pensamento positivo" em nossa vida (a partir de um experimento meio ridículo e total questionável com palavras escritas em papel e moléculas de água), além de demonstrar que átomos e eletricidade não fazem a gente verdadeiramente "encostar" em nada, e outras simplificações mixurucas quetais. Mas a grande tônica do filme era a de que absolutamente tudo está conectado e pode (em tese - capenga) ser explicado através daquela que desde os anos 90 se popularizara como a grande não-explicação de absolutamente tudo e nada do mundo: a física quântica.


Olhando com um pouco de distância (e era visível a baboseira disso tudo, embora não possa negar que muito do que vi no DVD-R do filme que rodava emprestado por e para todo mundo fez algum tipo de "sentido" para mim, um tanto deslumbrado, à época) se percebe claramente que não há basicamente nenhuma diferença entre as tolices ali propagadas e essa obra fílmica, escrita e ponte de teses/cultos/palestras chamada "O Segredo" que também fez um sucesso estrondoso e puxou toda uma linha de uma nova auto ajuda com pitadas de misticismo patético, fora esse suposto ar mais cientificista que, na realidade torcia total os conceitos científicos para que coubesse dentro da gaveta energético-espiritual bobinha que vendia (a explicação que pessoas se apaixonam umas pelas outras pelo poder da atração "quântica" é uma das coisas mais deprimentemente ruins que já foram em algum momento levadas a sério, no século).


Passado um pouco de tempo, eu e alguns colegas começamos a fazer alguns desvios ligeiros de rota de algumas das pataquadas pós-modernas paga-vale (embora na própria dissertação, ano seguinte, eu segui ancorado a algumas delas), primeiro de forma um tanto como quem foge de um sujeito chatonildo no corredor, e depois, já como algum estofo, declarando guerra aberta, como quem se liberta dos grilhões ou algo que o valha. Era muito estranho seguir referenciando um grupo de autores e textos que parecia repetir como papagaios que a ciência moderna empatou, basicamente, em termos de conquistas porque nos rendeu coisas como a penicilina e também coisas, veja você, como a bomba atômica. Quites. Zero a zero. "Bom mesmo é esse xamã aqui e suas ervas medicinais": e seguia-se uma apropriação totalmente desrespeitosa e simplista da sabedoria xamânica somada a uma leitura completamente desonesta de algum parâmetro científico, conseguindo a proeza de desrespeitar dois saberes importantes na tentativa de homenageá-los (nada mais branco, ocidental - e hétero - do que purgar a culpa procurando não recepcionar uma outra linguagem, mas absorvê-la, capitalisticamente, de forma disfarçadamente alegre ou altruísta).


Pensei nisso porque não se passa uma semana, quiçá um dia, sem aludir a alguma consequência tenebrosa de algum tipo de picaretagem frente a quem está plenamente compatível ou pouco prevenido (se não com vontade expressa de contato) para ser enganado: bets miraculosas, tigrinho, limão curando câncer, conspirações secretas sobre "o que jamais lhe contaram". Não parece ser simplesmente resolúvel, o problema, em uma questão de orientação política reacionária, visão de mundo tacanha e idade geracional. Pessoas sedentas por aberturas de realidade que coloram de alguma forma sua realidade, ofereçam algum tipo de porta para qualquer outra coisa e inundem um mundo sem graça de corantes, mesmo que tóxicos (tal e qual um glitter mental) existem em todos os meios e camadas de instrução.


Longe de dizer que um filme esquecido e esquecível desses condicionou o fazer científico no planeta, é possível dizer que um atraso, mesmo que ínfimo no progresso do pensamento causado por um hype momentâneo de um engodo um pouco mais bem entalado do que os engodos usuais é perigoso: basta ver a indiferença total desse tipo de ideia e filme para coisas que eram absolutamente ridicularizadas oferecendo o mesmo núcleo e recheio.


Não faz muito tempo que se discutia e escrevia a sério no Brasil as pataquadas do Boaventura - que errava epicamente quando errava, e quando acertava, propagava em realidade óbvios ululantes (lembrando que é um Europeu nos ensinando sobre 'favelas', um português nos ensinando sobre decolonialidade e saberes ancestrais, um europeu nos ensinando sobre valorizar a cultura latina e um homem de conduta machista abjeta nos ensinando sobre a feminilidade dos saberes 'marginais' e a feminização de uma ciência da nova era).


Se você separar apenas a última fatia do parágrafo acima vai encontrar em muitas áreas, em especial àquelas afeitas às humanidades, hoje, um sem número de gente assim. Seguem firme, enganando.


Nosso mundo fora prometido como uma expansão sem limites, fronteiras e amarras: fomos cair, de fato, em um mundo tão careta e pobre que a propensão a qualquer venda de terreno na lua do ponto de vista epistemológico e afetivo é um risco tremendo.


Dia desses escrevi um posfácio para o vindouro livro de uma ex-orientanda (já escrevi o prefácio do livro anterior dela, aqui é acompanhamento/serviço completo!): lembrei de Robert Pirsig e seu "Zen and the Art of Motorcycle Maintenance": o rigor metodológico estrito não deveria ser coisa de cientistas antiquados, alienados e reacionários. É, sim, coisa de apaixonados: o verdadeiro cientista é rigoroso e sóbrio, não porque quer construir verdades absolutas, mas porque quer evoluir, construir pontes sólidas e permitir aos próximos que refaçam - e quiçá desmintam - seus passos. O resto é papagaiada e achismo (fontes de outra ordem).


Como a breguice suprema da new age nunca vai embora, por deus?



UM LIVRO: já que fora citado acima, 'Zen e a arte de consertar motocicletas' é um livro recomendável, porém dúbio e, por vezes, maçante até. Relata em tons biográficos um tanto quanto "soltos" a própria busca do autor, Robert M. Pirsig por um meta diálogo científico-acadêmico, narrando uma jornada que parece ela própria uma imensa palestra (ou conversa) sobre os limites e propósitos do estudo e da dedicação técnica e estudiosa. Fala tanto de isolamento, esquizofrenia e problemas de relacionamento quanto discursa imponentemente de forma interessante sobre epistemologia e sobre o que pensar e esperar das ciências (e de seus protagonistas).


UM DISCO: por mais que faça quase 30 anos da morte do genial Chico Science, há pessoas que associam exclusivamente a ele e aos (lamentavelmente apenas) dois trabalhos à frente da Nação Zumbi a trajetória da banda, que por todo esse tempo se manteve ativa e dona de algumas das melhores apresentações musicais que é possível ver em nosso país. Voltando a escutar o disco de 2014, intitulado apenas "Nação Zumbi", é possível ter um testemunho da distância de duas décadas para o primeiro trabalho em um álbum absolutamente ímpar que briga de foice com os discos na presença de Chico como os melhores trabalhos deles. É desse disco que saem petardos como "Foi de amor", "Bala perdida", a adocicada "A melhor hora da praia" e a obviamente reverenciada "Um sonho" (fazer o que, se é uma das canções mais incríveis já lançadas e um dos momentos mais sublimes do gênio da guitarra, Lúcio Maia?)


UM FILME: já havia escutado falar, mas foi a partir de uma dica - do Caio Maximino - no Viracasacas que eu anotei a ideia de assistir "Possessão" (1981, Andrzej Żuławski). Um filme de "terror" (você vai entender as aspas) absolutamente inusual e incrível, onde Isabelle Adani e Sam Neil estão em uma espécie de laboratório de atuação a céu aberto, vivenciando as agruras de um casal com um comportamento errático e absurdo da esposa após ela suscitar o divórcio que parece (e só parece) ser ocasionado por um romance vivido por ela com outro homem. Um paralelo incrível e escancarado com o cenário da trama, que é a Alemanha e a Berlim divididas cogentemente, (coisas que são difíceis de acreditar até hoje). Esquisitíssimo, do tipo que não é um prato que você pensa em encarar o trânsito até o recinto do outro lado da cidade para degustar. Talvez você nunca o peça de novo. Mas: sensações.

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