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  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 7 de mar.
  • 6 min de leitura

Sou tido por um bom contador de histórias, em parte porque as vivo novamente quando conto (tal como quem passeia pelos corredores formados pelos escaninhos de um arquivo físico) e não vejo sentido em recontá-las sem o fator de (alguma) teatralidade, seja porque tenho memória muito boa e perspicaz para detalhes que passam insuspeitos por muita gente - ou, seja pelos floreios que acrescento por vezes porque acho que há histórias que fazem por merecer.


Porém isso traz um componente nada saudável em certo aspecto, com o qual algumas pessoas trabalham mal (e creio que sou um desses, idem).


Enfim: o conceito de 'nostalgia' trabalhado por Mark Fisher me pôs em dúvida se uma das coisas com as quais mais perco tempo não é eu simplesmente olhando para o lado errado da janela quando a verdadeira paisagem estonteante acaba de cruzar, veloz.


***


Eu era uma criança que sofria fisicamente no dia de encerramento de períodos de férias e do retorno da temporada de praia. Era uma troca injusta de um mundo mágico, bicicleta, mar, passeios a pé, picolé e rua até tarde com meus primos por uma quadra sem árvores, asfalto, Avenida Farrapos, Avenida Presidente Roosevelt, assaltos e um silêncio que era mais receio do que tranquilidade.


Parecia algo como a volta ao cárcere de alguém que ganhou um salvo conduto temporário para visitar a família nas festas ('saidinha', hoje, extinta em prol de alguns discursos que não fecham com as estatísticas, mas acertam o alvo aqui e ali quando alguma desgraça é gráfica demais). Liberdade versus pena a cumprir. Futebol descalço versus prova de Matemática.


Na adolescência veio outro componente (embora não tenham necessariamente saído o sorvete e o futebol): o da liberdade experimentada a partir de todo um outro mundo sensorial e de afetos e paixões que se verificava de vários modos (alguns no campo platônico das ideias, outros na materialidade das melhores aventuras) e tinha seu ápice no carnaval.


Poucas pessoas sofreram em quartas-feiras de cinzas como eu: não é a dicotomia folga/trabalho ou a metáfora prisão/liberdade, mas um passe de volta a ser cumprido entre dois mundos distintos com o abandono de uma série de fantasias incrivelmente realizáveis por alguns dias para um cotidiano que, perto disso, parecia inaceitável.


Durante muito tempo isso foi uma soma e o final do carnaval indicava também o final de tudo o que aquela 'praia hipotética' carregava consigo, como um circo que vai embora da cidade deixando tudo gris, na promessa de retorno em algumas estações.


***


Há muito tempo já havia me dado conta, mas esse ano consegui verbalizar de modo sensível que: isso não significa mais muito. Há tempos não vejo os curtos períodos litorâneos (dos quais meus pais não abrem mão) como algo mágico e como algo que mascara ou supera os transtornos igualmente envolvidos. Há tempos já cicatrizei as dores de final de carnaval sem ser invadido por aquele choque quente de realidade posterior. Acabou o período de praia desse ano e eu estava louco para voltar logo para casa, minha casa (tem árvores e caturritas agora, onde eu moro). Acabou o feriado de carnaval, juntei minhas coisinhas e rumei de Porto Alegre para Passo Fundo dado que alguns deveres chamavam.


Nostalgia.


Fui - e sou - em certa medida - um nostálgico incorrigível. Um guardião de histórias e de significados como um personagem de alguma novela fantástica que habita um museu onírico inacessível a olho nu.


Meu problema com isso foi duramente encerrado com a leitura de dois trabalhos (um artigo e um livro) de Mark Fisher, onde ele demonstra uma perspectiva política e filosófica particular para a questão: em "Desejo pós-capitalista" (artigo que li na versão em espanhol da edição argentina de 2018 de "Realismo capitalista" - e que vai integrar uma coletânea de mesmo nome preparada pela Autonomia Literária nas mãos de parte de uma galera que não poderia ser melhor curadora da obra do homem) e em "Fantasmas da Minha vida" (e os prefácios/posfácios das edições por gente como Rodrigo Gonsalves, Victor Marques e Amauri Gonzo são obras à parte) a questão da nostalgia é encarada como uma espécie de veneno paralisante afetivo, político, social e filosófico.


Arquitetura, música, poesia e arte no geral, propostas de mundo e de sociabilidade: houve arrojo e inspiração para tudo isso em um dado momento do passado. A pergunta é: para quais futuros isso tudo apontava? Que possibilidades estavam latentes nisso tudo e - especialmente - por que motivo vivemos em um dos futuros possíveis para aquele pretérito que talvez não seja a melhor das possibilidades? Por que avançamos para um futuro (real) daquele passado (já instituído) que é um, e não outro de todo o leque do que era possível ser?


Para onde foram (além de nos assombrarem - e sussurrarem em baixa frequência, quase imperceptíveis, por vezes, em nossa consciência) as possibilidades de outros mundos, de outros futuros.


Fisher é bastante impiedoso na crítica musical (uma das coisas que ele fazia com maestria) em relação a artistas pelos quais nutro um carinho especial por gostar até demais de coisas 'retrô': o retrô aponta de forma débil, covarde, meio reacionária e cristalizadora (já falei covarde?) para um passado como em um relicário acessível para celebrações litúrgicas. A chave não é a glorificação congelante de um passado idílico, mas um reviver das promessas de futuro com as quais aquele passado dialoga, e a cobrança (também necessariamente impiedosa) sobre o que aconteceu para aquela glória não se perpetuar, mutante, no caminhar das coisas para a energia imaginativa seguir em alta octanagem.


De que futuro aquele passado estava grávido, e porque o que vemos agora não lembra em nada a vivacidade desse pai e dessa mãe?


O quanto se gasta de energia (em vários sentidos) alimentando aquela coisa de resgate saudoso de coisas como elas eram, que acaba tendo pouco de homenagem cândida e muito de acorrentamento daria para alimentar uma usina. Xô.


Ser nostálgico passou a ser um sintoma de uma espécie de doença ruim que descobri (acho que, felizmente, a tempo de tomar alguma providência): guardar histórias em cofres fortes não sei se é algo de que me livro - como uma sequela ou comorbidade que gerou algumas fibroses insolúveis em meu peito. Mas: tenho me policiado muito para - em todos os campos onde empenho algum tipo de reflexão, emprego alguma preocupação ou deixo algum sorriso, não mais procurar o túnel do tempo que me levará a um passado mistificado (e, até mesmo, por isso, desrespeitado - e, mais a mais: já faticamente inexistente) e, sim, em pensar em quais energias eram possíveis de serem mobilizadas a partir daquilo e como e porque foram/não o foram. Não travar a imaginação. Homenagear não aquele pedaço de linha do tempo já bastante inventado e até meio alargado depois de tanto uso, mas o próprio fluxo que a linha traça - e o fato de que ficaremos para trás, invariavelmente (trabalhar com isso e não contra isso: existencialismo neon. Afirmação. Amor fati nietzscheano de óculos escuros). O verdadeiro carnaval.


'Ladies and gentlemen: we are floating in space'.



UM FILME: como já disse para muita gente, levava pouca fé inicial em um filme em que Bob Dylan chegando para o vai ou racha folk na Nova Iorque do início dos 60 é o Timothée Chalamet com cara de cachorrinho que caiu da mudança. Porém o ranço (que já havia se dissipado em algumas críticas seguras que atestavam a qualidade do produto) se encerrou em poucos minutos de exibição de "A complete unknown", uma espécie de biografia do Dylan inicial até a farra pop da 'eletrificação' da banda e sua primeira grande mudança estilística de rumo. Parei de ver Chalamet e comecei genuinamente a ver Dylan (ou um Dylan definitivamente possível) em pouco tempo. E que película não seria adorável ao jogar baixo, oferecendo ao público a todo instante algumas das maiores peças musicais de todos os tempos - cantadas, inclusive, pelos próprios atores/atriz - o que confere uma dignidade inesperada. Programaço.


UM LIVRO: estou há um tempinho com vontade de reler o 'tríptico' "Kairós, Alma Vênus, Multitudo", de Antonio Negri, um ensaio filosófico materialista-marxista (o menos ortodoxo possível) inspiradíssimo (e mais um escrito em um dos vários períodos em que o autor esteve puxando uma etapa em cana). É uma obra (três, na verdade) difícil e que incomoda no trajeto os não versados no autor, mas garanto que faz absoluto sentido se pensada nos termos fisherianos que discorro acima. Pretendo em breve também escrever algo que explique essas coisas e visões de um jeito mais amarrado.


UM DISCO: "Highway 61 revisited" - sim, ele, de novo, um verdadeiro restaurante preferido da estrada onde me recuso a nao parar volta e meia - e não vai haver como ser diferente durante algum tempo.





  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 28 de fev.
  • 5 min de leitura

Há algo como uma maldição, de fato, ou o nível das combinações aleatórias cósmicas materialmente possíveis gerou o maior fenômeno da probabilidade estatística em todos os tempos e sempre (sempre, sempre; sempre) que eu preciso entrar em uma fila ocorre alguma peculiaridade que a torna mais demorada (dada alguma exceção particular de difícil solução)? Sou como o sujeito ideal para estar à sua frente em um caixa de supermercado, ilha de atendimento em recepções ou baia de esclarecimento de dúvidas quaisquer: chegada minha vez, efetuo a compra, peço a informação, aciono o serviço e assim que tudo resolvido, tomo meu rumo. Historicamente (não sei precisar o momento do advento, mas eu era novo) as pessoas à minha frente portam particularidades, casos de vida ou morte, pai na forca, questões que parecem ter derrapado para a calha lateral do sistema usual de funcionamento de qualquer coisa imaginável e precisam que se tome tempo, se chamem outras pessoas, se verifique ou investigue algo inusitado ou testam a pessoa que as atende no limite de algo (pela primeira vez na vida do trabalhador) que está altamente fora de qualquer protocolo de rotina que se resolveria entre bocejos e rádio ligado. Sempre.


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Porém não descarto a questão de comprar banana caturra no supermercado e ou de eu mesmo escolher o mamão capixaba maduro - mas com alguma nuance de verde (para durar mais) sob os próprios olhos. Sou a prova viva de uma resiliência que mescla tons pueris com algum tipo de beleza de ideal, no instante em que jamais poderia me adaptar a um modelo de vida-consumo inteiramente pautado por aplicativos e entregas domiciliares.


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Claro, a maldição - ou o incrível funil de improbabilidades cósmicas repetitivas - que me assola não desiste fácil. Precisava trocar uma passagem de ônibus que adquiri pensando ser para terça-feira, mas, dado o automatismo do costume, comprei para segunda (como usualmente o faço quando a segunda em questão não precede a terça 'de carnaval' que é feriado e me fará trabalhar em frangalhos apenas na quarta feira 'de cinzas'). Pensava ser uma troca simples agora que a compra é feita por pagamento em pix em sistema eletrônico com login no site da própria empresa. O site estava demonstrando instabilidade. Havia dois whatsapps disponíveis - curioso - sendo que um indicava "atendimento robótico" e outro "atendimento humanizado". Não preciso dizer em qual fui reto visando agilidade e efetiva resolução do problema. O humano estava dando um cochilo e quem estava cobrindo a vaga era o robô, mesmo. Ele me deu 8 opções e em nenhuma delas resolvia um problema (simples, em se tratando de passagens rodoviárias). Havia um telefone 0800 disponível. Liguei e abandonei o robô lá. Ele me deu três vezes bom dia das 09h da manhã até perto das 11h55min e depois perguntou em qual nota eu avaliaria seu atendimento.


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A moça que me atendeu disse que poderia resolver o problema ali mesmo com meu CPF (o CPF usado para a compra da passagem) a menos que o sistema estivesse____: estava (não sei o que ainda). Obviamente meu caso se enquadrava na exceção da exceção da vírgula da coisinha que infelizmente 'não estarei conseguindo' e. Sob um bafo de 38º, fui até a Rodoviária (na data em que cheguei de viagem faltavam 3 minutos para a meia noite e os guichês de atendimento que ficam abertos até a meia noite arredondaram seu horário de fechamento e eu não pude resolver o problema ali mesmo na hora).


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A pessoa antes de mim na fila queria estudar, ao vivo, qual passagem e horário compraria para uma determinada localidade para que então pudesse pedir ao motorista que a deixasse em algum trevo de acesso que não configurava uma parada oficial da linha em questão. E o fazia pedindo ajuda de um incrédulo, depois solícito, pelas tantas aflito e, ao final, totalmente puto, atendente, em uma milonga que durou algo como 15 minutos (obviamente era o único guichê com apenas uma pessoa em atendimento em contraste com todos os outros abarrotados em filas suarentas - e obviamente meu descuido - e a maldição - me guiaram de forma magnética para esse).


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Na volta passei em um supermercado e a fila (novamente, a armadilha: curta) fora completamente anarquizada pelo vai e vem de dois sujeitos cobertos de purpurina e com louros dourados de papel - estilo imperadores romanos - que estavam excitados e risonhos demais para um carnaval meio xoxo nessa Porto Alegre que boicota sistematicamente a festa, nos últimos anos, e pareciam abusar da boa vontade da moça do caixa ao ir e voltar com produtos e pesagens que foram esquecidas de serem feitas. Ocorreu algo como três vezes.


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Peço arrego ao universo - ou à matemática impiedosa - e atesto que por hoje já estourei minha cota.


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Beba água entre as doses de alcoólicos. Idem: uma água de coco gelada para o antes de dormir e o pré-escovar os dentes é algo que adquiriu uma intensidade quase religiosa para mim.


UM LIVRO: com todos os problemas e visões que outrora já me empolgaram em frenesi - e hoje vejo muito pelo lado crítico e meio realista/pessimista (como se fossem uma espécie de bobo-alegrismo que encobre a podridão), mas com uma (em maioria, certamente) percentagem que gosto, quero, assino em baixo, a biografia da cidade do Rio de Janeiro (é assim que a chamo) "Carnaval no Fogo", de Ruy Castro é uma das leituras mais divertidas que se pode fazer. Aproveite o embalo da festa.


UM DISCO: Lá em casa, desde pequeno, sempre se cultivou a tradição de escutar os sambas-enredo das escolhas do Rio de Janeiro para assistir aos desfiles já sacando a proposta e as melhores músicas. No meio dos anos 90, já na era do CD-Player, todo final de ano adquiríamos o disco respectivo do carnaval vindouro, e formamos uma pequena coleção. Uma prova de que não é possível chamar os sistemas atuais de streaming de verdadeira substituição de nada - e de que a magnitude da internet é falível - é que não há, catalogados, esses discos (alguns, pela capa, me recordam exatamente minhas faixas preferidas), de modo usual. Fui tentar escutar alguns deles e virou uma espécie de caça ao tesouro para além dos mais famosos da década que são arroz de festa em coletâneas. Humpf. Queria ouvir dois específicos da Caprichosos de Pilares ("Samba sabor chocolate", 1995 e "Negra origem, negro Pelé" de 1998) e me senti o arqueólogo Indiana Jones.


UM FILME: havia tempo que não abandonava vigorosamente um filme como "Pequenas coisas como estas", de 2024, com Cillian Murphy no protagonismo (nada errado com ele, mas inclusive com seu personagem mosca morta e cujo carisma parece ter sido sugado por um buraco negro). Não é que dei stop e deixei o filme para lá. A chatice era modorra eram tantas que meu abandono talvez tenha feito barulho, como uma porta fechando com violência. Orgulhosamente não sei como termina aquele resto de 60% de história mais ou menos faltante.


ps: quero ver "O Brutalista" e o filme do Bob Dylan, talvez semana que vem tenha boas notícias nessa sessão do post.

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 21 de fev.
  • 8 min de leitura

Se você estiver lendo isso nessa exata data em que foi publicado o post, eu - após uma semana onde tive compromissos intensos em todos os turnos de todos os dias e fiz três viagens (o que me faz questionar se algum dia novamente eu conseguirei dormir até algo como depois das 08h na minha vida), já participei de um evento jurídico como palestrante/debatedor e já dei uma entrevista numa rádio. Ah: e recebi um e-mail da firma me parabenizando pelo meu 'aniversário' de prestação de serviço. Trabalhe com o que você gosta e - tenha material para textos de blog


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Como em muitas pessoas que viveram a adolescência ao longo da década de noventa, o Nirvana teve muito impacto na minha construção de identidade, à época. A combinação mais manjada do mundo (bateria, baixo, guitarra, gritos - em uma verve juvenil frenética) fez sentido para toda uma geração de um modo tal que até hoje não sei se minha captura pessoal não exagera no quão agudo e pertinente parecia tudo aquilo. Até porque diferentemente de outros ídolos pop fáceis (mormente no período), Kurt Cobain exalava dor e desespero de uma maneira que pouco parecia jogo de cena e se aproximava de uma espécie de pedido de ajuda que tristemente se concretizou da pior maneira.


Era muito chocante e magnético, tudo, mesmo que algumas das referências não eram inéditas para quem tinha o estilo de sede típico desse tipo de informação e imagética: a postura no palco, o charme autodestrutivo, o niilismo, os cabelos na cara cobrindo o rosto de modo até meio infantil (tão clichê, tão importante), as roupas casuais anunciando uma nova forma de se ilustrar uma 'estrela' no imaginário e, além disso, aquilo que mais me impressionava, à época, que era a cena do vídeo de "Lithium" (repetida algumas vezes em outras apresentações), onde Cobain em dado momento se arremessava de forma inconsequente à bateria montada no fundo do palco, como se já prenunciasse que queria, mesmo, se desmantelar inteiro e sumir daqui. Lembro também sem muito júbilo de uma ou duas vezes que eu e colegas de colégio empilhamos cadeiras no fundo da sala de aula e tentamos com sucesso imitar a sequência (com sucesso em ganhar escoriações e em ter certeza que, ao cabo, era uma ideia de merda, que fique claro).


Há muitas formas de ler a morte de Cobain e a peça artística, assim digamos, do fato, aliado à carta de despedida que consegue respirar alguma pieguice e também ser algo à moda amarga de suas canções. Lembro de um texto sobre o tom urgente e urbano do Nirvana, e da poesia de seu principal integrante, e do golpe de realidade bruta que eram suas faixas terminando sempre sem fade ou efeitos tais como era a voga dos anos 90 e dos respiros finais da moda do hard rock megalomaníaco: a faixa acaba quando os instrumentos param, por vezes em algum reverb que parece desleixo ou equívoco da engenharia de som, tal em "Heart shaped box" ou na menos cotada "Big Long Now" - como se alguém deixasse microfone e amplificador ligados além do momento ensaiado. O fato é que há uma banda ali. Há algo ali que executa uma canção, doa as tripas pela garganta, transpira, se despenteia, e encerra. Não há um efeito 'espiritual' de voz como no emblemático encerramento de "Don't cry" do Guns n' Roses (a última grande banda do período comumente tido por encerrado por Seattle), um fechamento que combina com orquestras e sua renderização quase simbiótica em videoclipe épico. As músicas do Nirvana simplesmente acabam, como se alguém não depositasse a ficha para seguir ganhando créditos na máquina.


A música termina auto evidentemente, quando encerra seu curto ciclo catártico-pessimista.


Lembro de ter um compromisso que não recordo especificamente qual é, e de ter que pegar carona com a minha mãe naquela manhã (dentista? médico? supermercado?) em que fui acordado por ela com a notícia dita da seguinte maneira: "o cantor aquele, que tu gosta. Ele morreu. Se matou". Gostava de vários cantores, mas sabia de quem se tratava, no ato, sem precisar de maiores pistas. Era quase óbvio, bastante previsível e - algum(a) psicanalista online? - desejado, em certa medida.


Há algo engraçado, e reside no fato de que esse texto não é sobre o Nirvana


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Na época do final adequadamente óbvio para cristalizar Cobain de um jeito meio contraditório na galeria definitiva de um mainstream contra o qual ele dizia querer lutar e que tinha sucesso em sabotar (isso não se pode negar) não raramente em seus dias finais, uma série de comentários de críticas culturais especializadas se misturavam a opiniões soltas ao vento que prenunciariam e se debruçariam confortáveis nos fóruns, chans e redes de hoje: não faltaram teorias conspiratórias que alegaram um suicídio forjado para encobrir um homicídio - Courtney Love, a esposa, à época, como sempre (...), alvo usual de acusações de vilania para uma parcela imensa de fãs, aquela coisa - algumas evidências fake, muito choro, a busca incessante pelo novo herói a ser extrativizado e, não raro, comentários rasos sobre como alguém com uma quantidade planetária de fãs, discos vendidos, dinheiro e acessos variados a prazeres variados poderia ser, algo como, 'infeliz'.


Mais: como alguém que ganha a vida levando pessoas ao êxtase delirante apenas com sua presença em um palco pode rançar se dizendo enjoado disso?


Bem.


Guardadas as proporções, todas elas, estou entrando no meu 18 ano efetivo como professor universitário, tirando algumas experiências não oficiais e sem carteira assinada que pipocaram algum tempo antes. E sempre acontece uma coisa engraçada quando eu vejo que há mais de uma vez na grade semanal a necessidade de eu lecionar a mesma disciplina para turmas diferentes de mesmo período/semestre.


Nesse seriam três, como em outros anos já foi - alterações emergenciais na grade substituíram uma e terei 'apenas' duas repetidas.


A forma da instituição onde trabalho envolve um campus central e uma multiplicidade surpreendente de campi descentralizados que percorre um perímetro considerável da região (a mais próxima, é tal um bairro afastado, um pouco, da cidade. A mais longínqua requer uma viagem de 1h30 de estrada promovida pelo instituição com transporte oficial). Volta e meia me pego pensando em estratégias para manter o mesmo grau de vibração em turmas, campi e cidades diferentes, procurando, ao mesmo tempo, emparelhar a matéria em todas elas para fins de organização (e sanidade).


E aí vem a questão: magicamente (ou tragicamente) como em alguma turnê de rock, há performances e performances. Há lugares em que a empatia é sentida palpável no ar desde o primeiro bom dia/boa noite. Há lugares em que desde logo se percebe difícil, a coisa. Há lugares em que o fluxo é tão leve que aparentemente qualquer sorriso e gracejo funcionam. Há outros que começa haver um desespero para quebra do gelo que se acentua quando tudo parece fugir do script e nada do que é dito ganha encaixa ou dá liga.


Há dias em que me fazem sentir particularmente divertido e outros onde só consigo ter vergonha por bancar o bobo. Há noites que não passam, manhãs que passam voando, turmas onde pontos de interesse no discurso são diametralmente opostos aos de outras, e onde certas teses e reflexões fazem sucesso absoluto - as mesmas que foram um rotundo fracasso ou caíram no vácuo mortal do desinteresse, em outros.


Lidar com a mesma disciplina é lembrar de ter que abordar os mesmos tópicos e deixar de lado igualmente os mesmos menos importantes todas noites. E, dolorosamente, é repetir absolutamente tudo, procurando dar à pessoa que está vendo aquilo pela primeira vez a mesma sensação e colorido que receberam as outras nos outros lugares onde você já fez aquilo, na mesma semana.


Essas 'turnês' são a partícula microscópica de possibilidade de alguém como eu se sentir um rockstar - somadas ao fato de que é estranho pensar que parte grande do meu trabalho consiste em me postar em frente de um grupo de pessoas (por vezes, uma pequena multidão) e dar o meu 'show' e perpassar meu 'repertório', preferencialmente de forma equânime para cada público, faça frio ou calor, estando eu resfriado ou preocupado com algum assunto extra, tendo acordado em um dia bom ou terminando uma jornada péssima, nesse palco onde o cara se apresenta várias vezes por semana, trabalhando a partir da hora em que as pessoas comumente chegam em casa.


Há vezes em que ninguém nota nada (se o cara está um farrapo de cansaço, destruído por alguma questão pessoal/familiar, gripado, com enxaqueca) e o 'show' corre tranquilo. Há vezes em que é sofrivelmente visível que a coisa está mal - e ocorre de algum hit do setlist ser apresentado da forma mais fraca e opaca ou mais enérgica e apaixonante, para duas 'plateias' diferentes, em uma questão de um dia (uma oportunidade que não voltará naquela tour, para o bem e para o mal). Ao final, você se atira na poltrona do ônibus, van, carro/viatura, avião, o que seja, para festejar e permanecer elétrico, ou como quem clama por algum tipo de anestesia geral sem saber bem qual a próxima parada, lugar, cidade.


Aquela pergunta, sobre como alguém pode ser infeliz (em amplo espectro) ou se aborrecer, se sua tarefa é apresentar seu material, proposta, 'ideias' para uma audiência não raramente sedenta e complacente só pode (é trivial, eu sei) ser respondida de dentro. Sem metáforas, agora: logicamente há (por pior que seja algum eventual cenário), ainda, sim, muito do romantismo e da aura de se dar aulas, palestras, conferências e estar em evidência em alguma arena ou púlpito sob olhares de pessoas que, em alguns casos, foram ali por sua causa. Já fiz isso ao longo de todas as regiões do Brasil - todas mesmo - e mesmo fora do país ('turnê' internacional que já passou pela Europa e América Central). E parece por vezes que isso rivaliza com a questão central que precisa volta e meia ser lembrada: dar aulas, emplacar opiniões e teses, ser admirado por reflexões e colocações - e mesmo tocar guitarra e se arremessar no kit de bateria - não escapa da condição essencial de ser: trabalho.


Há algo distinto e quase místico na manifestação artística que mescla ela a uma série de chaves de leitura que quase encobre a questão do ofício, do trampo. É gozado dizer (pense, ou fale em voz alta), mas Caetano Veloso está (entre outras coisas) trabalhando quando proclama sobre areias e os automóveis (de Roma). Em meio aos closes, carões, stilettos e jatos de fumaça prateada, Beyoncé está trabalhando. Há - ainda que em grau desprezivelmente menor do que em nós, compositores da massa denominada peonada - um não totalmente desconsiderável fator de saco cheio atinente a qualquer (qualquer) labuta.


Os milhões de dólares, o enaltecimento fanático e o glamour para com os artistas das multidões, faz par inusitado com platitudes a respeito de vocação e 'amor' (de forma um tanto similar também àquela que obscurece a questão do trabalho doméstico e reprodutivo feminino) que pautam por séculos a visão de um profissional docente como alguém que está mais fazendo algo por si e por seu júbilo, ao lecionar, do que ter um ganha pão que carrega toda a gama da problemas específicos e uma série de tristezas e momentos inglórios latentes.


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Estou com sono. "Vovó, me leva para casa"


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UM DISCO - seria muito anticlimático não mencionar algo do Nirvana aqui. Para além de obviedades como "Nevermind" ou o clássico e fino desde o momento do lançamento, "Unplugged", pediria atenção para a coletânea de outtakes e lados b "Incesticide", onde parece possível ver uma banda com um core e uma proposta altamente surreais em relação ao seu sucesso planetário unânime. Fora de tentativas bobas de separar o que seria o 'verdadeiro' Nirvana (distorção, autodestrutividade, apatia), daquele que atingiu o mainstream via MTV, podemos considerar eles como uma das bandas mais estranhas e avessas que mudou o mundo enquanto fenômeno para além de si.


UM FILME - fiquemos por aqui: "Montage of Heck" é um documentário biográfico sobre a vida de Kurt Cobain cercado de material inédito (à época, 2015) do próprio Kurt desde sua infância e das primeiras manifestações genuinamente artísticas na adolescência. É - aviso - uma das coisas mais deprimentemente tristes que você vai assistir.


UM LIVRO - faz um tempinho já que li "O som do vermelho", novela de Catalin Partenie que narra as agruras de jovens que tinham um sonho roqueiro na Romênia do melancólico apagar das luzes do regime Ceaucescu. Dentre os governos mais toscamente rígidos da antiga 'cortina de ferro', os derradeiros dias daquela Romênia encontravam tensão extra em relação ao que uma juventude rebelde e naturalmente perdida frente a ausência de perspectivas. Uma guitarra pode significar algum lugar seguro.

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