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  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 25 de abr.
  • 7 min de leitura

Nessa madrugada, imediatamente anterior a esse texto estar indo para o ar, o ex-presidente da República Fernando Collor de Mello foi preso após os últimos recursos frente à condenação que ele havia sofrido no STF em 2023 serem definitivamente rejeitados, percorrido um caminho de quase dez anos entre sua denúncia no próprio Supremo (era 2015 e ele exercia o cargo de Senador da República), sua efetivação como réu (2017), as condenações iniciais (2023) e imbróglios a respeito da estipulação de sua pena, que duraram até coisa de dois dias atrás e sua detenção no aeroporto de Maceió, às quatro da matina. Em meio às principais acusações, a recepção de cerca de R$ 20 milhões em propinas entre 2010 e 2014 a partir da BR Distribuidora - uma subsidiária da Petrobrás - ainda como resultado de desdobramento da (cruzes, século passado) "Operação Lava Jato".


Entre uma vida de trambiques obscuros, muitos deles chinfrins (como o caso da Fiat Elba - jovens, pesquisem), abuso de poder, 'coronelismos' e apoio aos ideais e pessoas mais equivocados e tenebrosos da história brasileira recente, uma marca indelével: o confisco, em 1990, das poupanças dos brasileiros e o bloqueio de valores de outras aplicações de renda fixa (também chamado ironicamente de "empréstimo compulsório") como medida de liquidez do caixa da Fazenda e tentativa de "conter a inflação".


Eram anos estranhos onde a jovialidade, a beleza, a afeição por extravagâncias e práticas esportivas do presidente, seu caráter (supostamente) renovador que fugia do perfil dos ditadores e proto-estadistas de araque dos anos antes do retorno da democracia representativa, parecia fazer o Brasil estar ingressando em uma legítima nova era. A imprensa comprou forte Collor, esse símbolo de um Brasil se arrojando à era neoliberal, seus cavalos de pau de jet-ski no lago Paranoá, suas voltinhas em motos potentes, seu jogging nos arredores de mansão breguíssima onde ele vivia ao invés dos aposentos oficiais e mesmo seu jeitinho de figurante a ser assassinado logo no primeiro capítulo em novela do Bret Easton Ellis - o que inclusive combina com outro suposto hábito frequente que ele possuía, e o fazia fungar excessivamente entre pronunciamentos energéticos com olhos arregalados e uma mandíbula que parecia ter vida própria, por vezes.


Sim, as contas (conta, corrente, aquela que era para ser a tranquilinha, manja?) de boa parte da população brasileira foi bloqueada e tomada da noite para o dia (literalmente - e aqui uma piscadela de ironia que, da noite para o dia tenha, idem, não só se decretado a prisão compulsória quanto a própria dura, no aeroporto, tenha ocorrido) com a promessa de ser 'devolvida' gradualmente aos cofres das pessoas, na coisa que mais tinha cara de 'fundo perdido' de todos os tempos.


E, sim, novamente, caso pareça tão surreal a ponto de que você pense que não entendeu bem: boa parte dos brasileiros acordou quebrada, sem acesso a seu próprio dinheiro, que sumiu, numa manhã de abril (outra coincidência?).


Minha família sofre até hoje com os efeitos daquilo. Não é força de linguagem ou considerações mediatas ou especulativas. Não é que nem o papo das "netas das bruxas" que "não conseguiram queimar", porque as 'netas' no caso, é um estado político e metafórico de identificação - muito embora eu desconfio que os 'netos' dos que queimavam as bruxas são netos mesmo - descendentes não só morais diretos como consanguíneos em muitos casos, a ver. Refiro algo absolutamente direto e literal: a espiral de dívidas, empréstimos e rebolations variados em que meus pais se enfiaram desde aquela época ressoa até hoje em uma desconjuntura financeira estilo não uma bola de neve, mas uma multidão de bolas de neve descendo a ladeira, unidas a outras bolas que não conseguem ser empurradas acima, tipo a pedra de Sísifo.


Éramos da suposta, chamada - e, finada - 'classe média' que foi definitivamente aniquilada pela medida.


Eu teria todos os motivos do mundo para celebrar a prisão desse crápula (a condenação, inicialmente, é de 8 anos e alguns meses de xadrez - e, claro: já veio o laudo médico de ocasião, praxe nesses casos, atestando uma série de doenças dignas de almanaque que vai tentar fazer ele comer em casa, com café com leite, boa fatia desse bolo). Não nego que um patife como Collor, preso, ainda que momentaneamente, é muito mais justiça sendo feita do que ele full time solto e impune.


Mas uma prisão oriunda de um montante de propina que totaliza algo como 5 milhões ano (convenhamos, parece pouco ante os salários que alguns técnicos ruins do futebol ganham mensalmente e num mundo em que nos acostumamos cada vez mais com os bilhões ao invés dos milhões - quem quer ser um "milionário"?) e que nada tem a ver com o maior e mais canalha de seus atos, não me impressionou nem excitou tanto.


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Há muito tempo, já, quando iniciaram os procedimentos de investigação que culminaram com aquilo que historicamente ficou conhecido nos anos do Governo Dilma como "Comissão da Verdade", e fora suscitada a possível volta à tona de processos e medidas referentes aos responsáveis pelo período nefasto do Golpe Militar brasileiro, tivemos que escutar, de forma muito insistente (tanto quanto errônea) a questão de que eventualmente "prender antigos generais de pijama" não valeria à pena.


Havia, no caso, um misto de descrédito, despotencialização, suposto sentimento de 'página virada' e também uma coisa muito esquisita (mais afeita à área dos juristas, mas não só), que era a de rechaço, como algo desatualizado e despropositado, do que se passou a chamar de "esquerda punitiva". A ideia de que um discurso verdadeiramente progressista não deveria se pautar em absolutamente nenhum aspecto a partir de uma espécie de (a) uso 'vingativo' dos aparelhos jurídico-penais-estatais e (b) de que não se poderia manifestar uma espécie de crença ingênua na possibilidade de haver uma espécie de redenção do sistema penal quando ele fosse falsariamente usado "para o bem".


Sobre um desses aspectos, em tempos de Oscar e de neo-golpe tentado, parece que a (tal) ingenuidade e o progressismo viraram o fio, e não há quem em sã consciência que não apregoe que 1) anistia é o caralho, 2) crimes dessa monta não podem simplesmente prescrever e 3) a desresponsabilização deliberada dessas pessoas é causa de uma espécie de não-cicatrização que justamente impede que páginas sejam viradas de fato. Mas, sob certo aspecto, falar de militares é fácil. A questão é o discurso cotidiano.


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Fui forjado acadêmica e profissionalmente (e, quando não, ideologicamente, em alguns aspectos) em um ambiente onde a "esquerda punitiva" era vista como um mal tão grande quanto o próprio punitivismo reacionário convicto, em si - afinal, eram punitivismos, ambos: essa odiosa crença, esse abjeto fervor de impor sofrimento a partir de um orgulho meio fascista, meio bobo, de ver os estamentos penais funcionando para impor dor e privações.


Havia, segundo alguns, até um que de psicanalítico (e jamais a psicanálise foi aplicada tão despotencializada do que quando se pensava que ela podia ser um alicerce jurídico-garantista para um anti-punitivismo de forma simples) na tendência sádica em 'gozar' com a punição (sentido amplo).


Principalmente: se denunciava a tolice que seria colaborar para "manter vivo" /ou "engordar" a lógica punitiva inteira, ao se querer que contra a parcela mais rica, poderosa e perversa ela fosse aplicada com intensidade.


Por muitas vezes já me manifestei e escrevi sobre o fato de que, em relação a essa assunto, a coisa 'não é bem assim': sobretudo nesse texto aqui onde discuto (com bastante reverência, embora com críticas) um texto clássico de autoria de Maria Lúcia Karam que basicamente cristalizou o termo e suas circunstâncias, em nosso meio político-acadêmico e também no Capítulo 9 de meu terceiro livro - dá pra fazer donwload aqui, no próprio site (tem o botão 'downloads' ali em cima - que batizo, justamente, de um "Acerto de contas" por mais uma vez com a "Esquerda Punitiva".


O fato é: uma tentativa desenfreada de seguir querendo dizer que o panorama político e o discurso progressista devem ficar engessados nos anos 90 e no início dos anos 2000, somada a uma sinalização virtuosa de que você não vai defender esquemas punitivos para não se rebaixar moral e politicamente ao nível dos reacionários e a uma espécie de medo absolutamente infantil de que defender a prisão de salafrários das altas rodas faz automaticamente crescer também a repressão aos 'descamisados' (como se o sistema penal fosse organicamente um banco onde qualquer depósito de fé, em qualquer contexto, o fizesse necessariamente ganhar peso direto em termos de poder para ele terminar de agir para apenas um lado e isso fosse uma operação aritmética fácil).


Desculpem o excesso de franqueza, mas o punitivismo (diário, regular, assassino e orquestrado) dos miseráveis e precarizados não tem como "outro lado da moeda" o discurso - supostamente ingênuo - de se querer regozijar com os poucos exemplos de punição dos 'grandes' (tal e qual a plebe vibra e debocha com escândalos palacianos - para depois apanhar dos guardas).


O "avesso" da (mesma) moeda do morticínio dos pobres é a impunidade inata dos poderosos.


E isso nada tem a ver - e não legitima - visões draconianas, medievais, estúpidas e grotescas de anti-garantismo: não quero que haja descalabros contra Collor, Bolsonaro e tantos quetais. Mas recuso terminantemente a ideia de que apenas o fato de querer vê-los punidos já me faz ideológica, moral e filosoficamente igual a alguém que respira punitividade hidrófoba por todos os poros. Como se essa gente fosse tão blindada que é blindada até contra hipóteses.


Aqui não, truta.


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Então: estrou triste com a prisão de Collor. Queria muito ela. Mas queria que fosse por outra coisa, e por muito mais tempo. E, sim: está tudo bem. É sobre isso, sim. E não é preciso disfarçar nada.


UM FILME: essa é fácil, né? Não à toa que fora mencionado de relance, "Psicopata Americano", de Mary Heron, EUA, 2000, é baseado na novela de Bret Easton Ellis, um verdadeiro fanático por retratar o histrionismo ridículo e cruel que era o zeitgeist dos anos 80 e se foca na escrotice e no padrão neurótico dos yuppies de Wall-Street (uma padrão que Collor representava, ou queria representar, mesmo que de um jeito absolutamente jeca e ridículo) em uma fábula que é mais (acredite) uma crítica psico-social do que um filme sobre assassinatos. Magnífico. Há uma continuação meio apócrifa de 2002 (não vi) e um previsto remake para breve (possivelmente não verei).


UM LIVRO: ele volta e meia aparece por aqui, e não poderia ser diferente. Mark Fisher chega ao Brasil de novo, agora com "Desejo Pós Capitalista", transcrição de suas últimas aula em um curso sensacional que ele vinha ministrando (eram previstos 15 encontros, ele faleceu antes da metade), onde boa parte do material mais quente em termos de filosofia contemporânea e discursos idem era mobilizado para fazer o que ele sabia de melhor: se apoiar no presente para olhar para o passado recente para, daí, pensar o futuro.


UM DISCO: influência fisheriana? Talvez. Ele, que teorizada muito sobre jungle e drum n' bass: deu vontade esses dias enquanto corria de escutar "Timeless" de Goldie. Ainda que o cara represente um drum n' bass mais comercial, na contramão do que o professor MArk curtia, sempre foi um estilo que me chamou muita atenção, e parece nos conduzir para algum tipo de outro lugar, um outro cenário, onde dançamos e suamos - apesar de nossos braços prateados cyborgues.

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 18 de abr.
  • 8 min de leitura

A Páscoa sempre foi um feriado extremamente simpático no meu ponto de vista. No Rio Grande do Sul significa - se tudo correr bem - dias de sol, porém com um friozinho convidativo que encoraja atividades ao ar livre em meio a uma quebra do que vinha sendo a normalidade rotineira do ano.


(Na minha família sempre se optou por um segmento light em termos das tradições cristãs, então não se costumava comer carne vermelha muito ostensivamente na sexta - havendo, porém, enquanto opção sidekick, estilo 'de ontem', junto à macarronada e algum prato de peixe branco: certa vez belisquei um salame italiano enquanto a massa não ficava pronta e, alertado pela minha avó, fiquei pensando se ia para o inferno. Acabou o sentimento ruim na primeira dentada em um 'Diamante Negro' pós almoço).


Estudante de escola e universidade de orientações católicas, a sexta-feira santa sempre se alarga para uma quinta-feira igualmente santa, o que torna a terça-feira anterior à quarta pré-quinta um dia já energizado dado que, como diriam Otávio Augusto e Cecil Thiré na cena do filme "Muito Prazer" de 1979 que retornou nessa quadra histórica como meme, ali pelas 16h da quarta a "(...) semana está praticamente encerrada", ao natural.


Agora calcule a questão da terça-feira transformada de engate inicial da marcha de uma semana que ainda parece longa em véspera de uma quarta (não santa, mas em vias de canonização: beata, já, digamos) que por sua vez ganha ares de sexta de uma forma que nem os personagens do filme imaginariam.


Somem-se fatores como os da época em que eu trabalhava na Justiça Federal e - sabe-se lá por qual motivo exato e já perdido no tempo - havia uma recomendação de o feriado iniciar na quarta mesmo, o que faz da terça-feira um ponto interessante de anestesia (convenhamos: quem vai iniciar algo que envolva muita mão de obra em uma semana fadada ao break) e consegue a proeza de até mesmo eliminar a depressão natural de domingo (o verdadeiro dia 'santo' conforme a liturgia bíblica) precedendo a segunda-feira como símbolo de uma trilha de desafios.


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Os feriados na Justiça Federal sempre me intrigaram tal e qual aquela historieta do Eduardo Galeano sobre a necessidade de um guarda em um quartel de Sevilha marcar posição ao lado de um banco no pátio, que, descoberta, era uma reminiscência da vez em que havia a necessidade de alguém ficar ali avisando os passantes que o banco estava recém pintado. Quando não havia ainda oficializado o recesso dos trâmites processuais - para dar um mini respiro para a classe advocatícia, a Justiça Federal fazia por conta uma parada em meados de dezembro até o início do ano que não era reprisada por Tribunais e Fórum de classe estadual. Certa vez perguntei para minha chefe da Secretaria no TRF o porquê disso (sem parecer que estava desconfortável ou reclamando) e a explicação dela foi tão surreal que jamais fui atrás de tentar averiguar, porque simplesmente não quero ter outra hipótese: a estrutura interna de funcionamento/organograma do TRF havia sido tirada do modelo de uma corte inglesa que previa uma parada a essa época do ano dada a possível intensidade de neve na região e a inviabilidade dos trabalhos. Teriam copiado a estrutura - e a parada. Realmente acho difícil de ser sustentável essa explicação, mas admitamos: eu - e você - queremos que essa pitoresca resposta seja a verdade. Deixemos assim.


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Já fui uma pessoa que - metódico para algumas coisas - se incomodava com o chamado 'feriado em meio de semana', visualizando-o como uma espécie de quebra de ritmo tal e qual o corredor que avança como uma gazela após o disparo do tiro mas que é obrigado a voltar dado que um dos adversários fora eliminado por queimar a linha de largada. A potência concentrada daquele arranque talvez não volte e não será exatamente reprisada na nova largada.


Parecia, inegável, que a pessoa terminava por se desconjuntar - e ficar ainda mais cansada - após uma parada ocasional em uma terça feira (até porque a folga não é aproveitada na maioria dos casos em uma inércia como uma máquina que resfria ou um carro desligado), para o que a galhofa (mas, é preciso dizer, alguma lógica) sugere que o feriado precisa de uma emenda como um complemento óbvio e seria melhor, pois 'transferir' para segunda algo que recairia na terça, ou para a sexta algo que originalmente era na quinta.


Não me parece má ideia, mas o ponto é: o cansaço da vida laboral e da nossa própria realidade circundante faz com que basicamente o trabalhador veja qualquer motivo de pequena folga ou pausa como uma dádiva semelhante ao do caminhante no deserto que vê a miragem de um bebedouro de água gelada e brilhante.


Dia desses, no podcast aquele onde sou um dos criadores e apresentadores - aquele, sabe? - teve esse episódio onde eu conversei com um querido amigo sobre sua função na chefia de um gabinete parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo. Uma das coisas que levantei é uma tese recente que desenvolvi a respeito do revival avassalador que a série "The Office" (na versão americana, no ar entre 2005 e 2013 - com muito mais desenvolvimento e sucesso que sua versão original, inglesa) ganhou durante os anos da pandemia. Para além das gags famosas em redes sociais, ilustrativas enquanto 'figurinhas' (mesmo descontextualizadas e não necessariamente referindo diretamente questões do enredo - o que também é um tipo de fenômeno), a série (que tem alguns dos grandes momentos do humor sarcástico televisivo em todos os tempos) gira basicamente em torno de pessoas que tem seu ápice de socialização durante as tardes de trabalho, mas que, igualmente, possuem em comum uma espécie de aversão ao trabalho, e passam o tempo todo gastando uma energia descomunal em torno de problemas comezinhos e diversionismos de atenção que sempre que possível paralisam o fluxo do escritório (as duas pessoas maníacas por organização e produtividade - de um jeito muito mais doentio do que competente, propriamente - não escapam dos non-senses tresloucados e da engambelagem reinante no ambiente, idem, mas são justamente um casal secreto e desajustado, formado por pessoas estranhamente reacionárias e portadores de personalidades altamente contraditórias e confusas).


A adorável narrativa de um escritório onde todos estão o tempo todo resolvendo outros problemas que não os da firma, em si, empenhando um emoção e vivacidade absurdas em coisas como a disputa sobre de qual confeitaria vai se pedir o lanche, ou que cor devem ser as bandeirolas para enfeitar a sala de reuniões para o aniversário de alguém, e onde os superiores reais (a matriz, em Nova Iorque) são vistos como inimigos, intrusos ou exageradamente desumanos por cobrarem questões básicas de diligência e efetividade e, especialmente, a forma como o re-sucesso repentino da série triplicou a quantidade de referências a ela para uma geração que só a conheceu na disponibilidade dos streamings diz muito: estamos todos engatilhados com o excesso de trabalho.


Dentre os personagens que angariam e redobraram a simpatia, pelo público, um casal que usa o tempo entre as batidas do ponto para viver uma espécie de romance evidente (porém, durante algum tempo velado), enquanto prega peças infantilóides em um membro específico da equipe ao longo de toda tarde de expediente, um sujeito que evidencia estar sempre prestes a se demitir, como objeto de barganha salarial, e faz questão de não demonstrar engajamento algum com proatividades típicas da função (usualmente dorme durante reuniões), e, ainda, um tipo curioso, cuja piada reside justamente em estar lá sem ninguém exatamente saber nada sobre sua vida privada, seu passado e sequer sua real função na empresa.


Espécies de 'heróis' contemporâneos disfuncionais.


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Há quem diga que existem feriados demais no Brasil.


Por mais que seja verdade sob um certo aspecto, e por mais que o tom sempre festivo (no mau sentido que possa ter isso) resvale para uma gandaia inconsequente porém não autoafirmada enquanto tal, no quesito (que ocasiona um incômodo antagonismo entre o repouso - e a farra - enquanto projeto, ou enquanto leniência/letargia displicente), é preciso dizer que o estado geral de culpa que nos atormenta quando estamos fruindo de espaços de não-trabalho literal (é triste chamar assim) é algo a ser diagnosticado e combatido.


Não é preciso reprisar toda uma cantilena contemporânea sobre a forma como nos foi incutido (a golpes de simbologias mitológicas e romantização enquanto 'batalha', 'luta', motivos 'épicos' ou remetentes à natureza selvagem das criaturas no ciclo vital) a superação física e psicológica dos desafios nos impele a não optar pela fraqueza da desistência ou a imoralidade do desfrute enquanto temos à nossa frente: trabalho. Produtividade. Possibilidade de render.


Não é preciso eu reprisar o meu mantra costumeiro de que - carregando na garupa uma multidão de autores e autoras que tenho estudado bastante nos últimos anos - o grande e atual esconderijo (nem tão escondido assim) do capitalismo está na nossa subjetividade forjada e em nossa forma de viver e ver as coisas em um ritmo de produtividade(s) que opera na (mesmíssima) lógica do trabalho e/ou que estende o momento do trabalho para muito antes, muito depois e muito além da 'firma'.


O descanso e/ou o feriado são sempre vistos sobre essas perspectivas fanfarronas ou decadentemente deprimentes, onde algum funcionário (mormente "público") oferece uma espécie de catimba perene para procurar trabalhar o menos possível (se The Office fosse ambientada numa repartição brasileira, a crítica seria seis mil vezes mais manjada, óbvia e sem graça: é, sim, surpreendentemente uma visão de mundo corporativo - mesmo que arcaico - estadunidense).


Portanto, ao ler essas mirradas linhas, aproveite para fazer o que deve sim, ser feito, sem culpa e na medida do sempre-que-possível: descanse. Mais do que isso: faça coisas, se quiser, mas não produza. Mesmo colocar em dia leituras, fazer exercícios, fazer sexo e cozinhar são atividades que podem ser realizadas enquanto fruição, prazer, passatempo ou mote de alegria/hobby, mas são facilmente porta camuflada de entrada para o cavalo de Tróia da 'produtividade'. Números. Metas a serem batidas. Postagem na rede. "Tá pago". Espécie de "anúncios" não para sua pessoa, mas para os outros, "seguidores", como quem bate o botão no xadrez competitivo anunciando que é a "vez" do adversário. Disputa surreal. Embate, corrida virtual. Unilateral, porém de todos contra todos.


Trabalhe, se pá (e aquela pilha de roupas ali?), mas não 'produza', faça-me o favor. Só hoje.


UM LIVRO: o nome sugere algo mais literal e raso em relação ao tema do texto de hoje do que sinceramente o é. Não que não seja, também e muito, mas "O Apocalipse dos trabalhadores" é mais uma das pequenas obras primas que Valter Hugo Mãe nos deixa de brinde, como se fosse fácil escrever com tamanha maestria. Exploração e suor é uma das coisas que você vai encontrar nesse livro. A única nota negativa é que ele é da fase em que (acho muito ruim) Mãe escrevia tudo com letras minúsculas, por algum tipo de manifesto estilístico em relação aos substantivos que ele mesmo abandonou, felizmente.


UM DISCO: escutando essa semana "Lucro Sucio; Los Ojos del Vacío" - do Mars Volta. Gosto demais da banda, mas admito que a pira sonora dos parças Bixer-Zavala e Rodriguez-Lopez que se afastou de algo como uma psicodelia com mais peso e se voltou para uma coisa meio música latina indie/jazz contemporâneo bizarro/experimentalismo aqui e tentativas mais comerciais ali está meio estranha para meu paladar.


UM FILME: assisti ao simpático "North Hollywood" de Mike Alfred, 2021. Filminho da galera do Illegal Civ., coletivo de vídeos e produção criativa ligada ao skate e à moda juvenil de rua da última década. Um pessoal meio Jackass sobre rodinhas, mas aqui gravando e filmando mais comportados, como profissionais. Um retrato doce de uma juventude meio vazia, a partir de um bando adorável de desajustados que poderia descambar para dramas maiores como perdição de vida desde o consumo de drogas, mas tem um clima de amigos tomando refrigerante em uma mesa redonda de lanchonete.

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 11 de abr.
  • 8 min de leitura

Então: "boletos"

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Um dos termos mais certeiros e apropriados que a dinâmica de neologismos e novilínguas das redes sociais gerou nos últimos tempos é o da “coitadolândia” – uma subversão da própria gíria/adjetivo/condição pessoal ou estado do “coitadismo” enquanto local fictício-retórico de quem não apenas “se faz de coitadinho” (essa é antiga), como de uma espécie de nova versão do ato, consistente em aproveitar uma certa capitalização bizarra da condição.


O coitadinho das redes sociais (que habita virtualmente a ‘coitadolândia’) talvez não seja exatamente um coitado(a), mas certamente é alguém cujo mote principal de sua estranha autopropaganda internética de persona reside em forçar um contexto onde esteja sempre próximo de algum tipo de buraco metafórico numa revival da hiena chata da Hanna Barbera que só faz reclamar de forma pusilânime e desmotivada.


É um curioso fenômeno que, como já sugeri, talvez quem não transite no meio de redes como o finado (mais propriamente morto-vivo ou dead que walk) Twitter e o BlueSky não conheça com perfeição: certa vez uma amiga se lamuriou para mim que havia sido reprovada na prova da OAB por falta de uma questão na prova objetiva – e em se tratando de uma pessoa estudiosa, com tino para a coisa e que sempre fora acostumada a se destacar na área, aquilo foi um baque terrível. Me confidenciou, ela, ali alguns anos atrás: “...é que tu só usa o Twitter, onde as pessoas passam o tempo todo fingindo rir da própria desgraça de um jeito humorístico. No Instagram é horrível se tu não vence, se tu não está feliz ou se não tem saco para mentir”. Ela deu um tempo das redes naquele período porque não aguentava os vitoriosos histriônicos do Insta, e nem tinha traquejo para simular rir de si mesma (Nota: final feliz – uma questão que ela havia errado fora anulada por conter uma dubiedade na resposta e ela acabou aprovada na temida e genérica primeira fase do Exame).


Claro: há, sempre houve - e não é coisa nova - uma tentativa de angariar algum magnetismo charmoso em se oferecer como o contrário da soberba odiosa dos muito bons. Há um certo tom de limite extrapolado meio ridículo e inato em quem arrota grandeza e vitórias demais e há, de mais a mais, uma certa chance de capturar simpatia, compaixão ou interesse na forma de pena, frente aos derrotados.


Mas, pessoal se passa: uma circulada na timeline do BlueSky e a (acho mais boa do que ruim, frise-se) migração das pessoas e da alma tuiteira para esse site mostra sua força quando as pessoas ostentam o dia todo uma espécie de estado de fudição metafórico ou uma glorificação de algum tipo de fudição material enquanto bandeira virtuosa ou appeal. É completamente over – e até estranho – exibir algo de concretamente bom. Divertido e dentro é passar comentando fracassos amorosos/sexuais, situações de constrangimento e, eles (reais ou artifícios retóricos) os “boletos vencendo”. Dramas. Tragicomédias. Ponte de simpatia.


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Por vezes me pego pensando como um mantra ou anestésico moral ante a coisas tensas, chatas, pesadas, sinistras ou apenas cansativas do meu dia a dia: é incrível como já estive inimaginavelmente pior. Claro: há que se controlar a verve de sedativo opressor que possui esse grau comparativo onde você se orgulha – ou engana a si mesmo – usando os piores patamares do mundo como benchmark ou como demonstrativo de força, tal e qual aqueles coaches que têm medo de ir até a esquina, mas dão palestras sobre “como ser macho” evocando exemplos patéticos de soldados comendo larvas em uma selva chuvosa e coisas que remetem a uma jornada canhestra de remontada por algum herói arquetípico fajuto.

 

Mas, se for pensar bem (e não vou ficar espalhando isso) estou, em larga escala, bem.


Já estive mal em termos financeiros, afetivos, profissionais, morais, físicos e toda a gama de categorias que se possa imaginar. Por vezes, em séries combinadas de um estar mal em vários (quando não todos esses) juntos.

 

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Dia desses passei voltando da Casa de Cultura Mário Quintana e após ver algumas das exposições da Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, por um emblemático endereço na Rua Sete de Setembro. Jamais esquecerei do prédio.


O ano era 1997 e lá estava eu: mal fisicamente, mal em termos de autoestima, mal em termos amorosos, e especialmente no núcleo de vários desses problemas, mal financeiramente. Daquelas vezes em que mal se tem dinheiro cara comprar um chiclé e que se procura ir a pé em parte do trajeto para economizar fichinha do ônibus (era fichinha, na época, como eram as de telefone público). Era o primeiro ano de faculdade e a necessidade de arrumar um emprego para tirar algum trocado contrastava com a questão de que qualquer trabalho na área e que remunerasse consideravelmente estava longe de um pirralho de 17 para 18 anos que mal havia saído do colégio. Fui office boy no escritório que meu pai mantinha com alguns amigos à época, mas a sensação de ou não se estar trabalhando de verdade, ou de se estar simplesmente fazendo um favor (somada com a questão de um que outro pingado significava tirar dinheiro de casa, ao invés de trazer) que permeava o local não me fez querer ficar muito.


Um anúncio no jornal, uma promessa de vaga meio nebulosa, uma estimativa de oferta salarial bem considerável me fez ir junto com uns outros 30 (coitados no sentido literal) às 14h em um andar desse prédio não identificado de escritórios na Sete de Setembro para escutar 40 minutos de palestras indefinidas, ver uns 10 minutos de vídeos que não eram bem específicos e mais uns 5 minutos com o dono da empresa dando algo que hoje seria visto como discurso quântico-motivacional de baixa intensidade. Ao final, eu me achando meio burro, e um sujeito ao lado vivificou aquilo que nós professores sempre falamos: não represe consigo uma dúvida, eis que ela pode ser a de todo mundo. Enfim, perguntaram: em que diabo consiste esse emprego? Para quê é essa vaga?


Por trás de toda uma cortina de fumaça que não ousava dizer seu nome, diante do tom curto e grosso, o chefe foi obrigado a dizer, sem enrolação, que era uma firma que entregava galões d’água para escritórios e conjuntos comerciais. Em algum universo paralelo, o Gabriel ainda tinha mais medo de morrer de fome do que o Gabriel dessa realidade, e alguém iria me ver carregando galões d’água tirados de uma Fiorino no centro de Porto Alegre. Não ocorreu.


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Em outra dessas vagas miraculosas meio indefinidas no jornal, fui a um andar de um edifício mais bonito na Rua Riachuelo, acima do Shopping Rua da Praia. Mais uma vez uma promessa de “oportunidades” e possibilidade de “carreira progressiva” em relação a algo que juro que até hoje não sei bem o que era porque a entrevista foi muito ruim para todos, menos para um rapaz loiro, alto, boa compleição física, olhos azuis, que estava usando (diferentemente de todos com no máximo uma camisa polo mal ajambrada) um terno de cor creme (meio esquisito, mas certamente avançado para a ocasião) que tinha um sobrenome anglófono e que, dada filiação paterna, havia morado e estudado nos Estados Unidos. A entrevistadora basicamente virou seu corpo para o lado do rapaz que de forma constrangedora (para os demais coitados strictu senso) monopolizou a dinâmica e fez todos ali parecerem figurantes tristes. Espero que tenha crescido na empresa e aproveitado a carreira.


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Minha última tentativa naquela leva do fatídico semestre 1 de 1997 foi uma entrevista para ser atendente da então inaugurada Livraria Saraiva do Shopping Praia de Belas: nada mal em termos de trabalhar entre livros e DVDs e auxiliar uma clientela legal. Tinha até uma camisetinha preta e amarela de uniforme que era bacana. Achava que tinha andado bem nas dinâmicas de entrevista. Uma colega de aula ironicamente ficou com a vaga e freudianamente creio quer não a perdoei até hoje.


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Vou poupar vocês do semestre II de 1997 e o I de 1998, quando a quantidade absurda de quinquilharias do apartamento da minha avó (especialmente livros e discos do meu falecido tio) foram objeto de escambo e venda por mim e foram uma fonte de renda interessante entre trocas e revendas nos sebos e brechós de Porto Alegre e região metropolitana e me fez vivenciar uma realidade parecida (embora mambembe) com a do filme “O cheiro do ralo”. Tem histórias boas (talvez me anime a contar, algum dia) e rendeu, incrivelmente, uns bons trocados.


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Em 1999 começou minha história de duradouros estágios respeitáveis e honestamente remunerados em Tribunais (estadual e federal), que foram quase até o começo de uma advocacia sem habilitação (o famoso lugar entre o estagiário que já se formou e o advogado que ainda não é), seguida por advocacia de verdade (o que também teve na linha momentos de coitadismo realmente existente que fariam os coitados hype das redes de hoje chorar convulsivamente).


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É impressionante como sob todos os aspectos estou melhor hoje em dia. Do tipo que pensa naquela época e (somados aos quase 30 anos de distância) quase considera parte de alguma espécie de arco alternativo bizarro, ou pesadelo com a câmera meio desfocada do qual o protagonista acorda de sopetão.


É por isso que coitadinhos da coitadolândia não me descem muito.


Quero distância de má fase. Não preciso anunciar por aí (inclusive fingindo uma bonança financeira total que está longe de ser bem assim) que meu cartão de crédito esse mês deu numa fatura gigantesca – dado que suportou uma parcela de um seguro específico que pago religiosamente de forma anual e que me faz muito bem por existir. E que foi pago com alguma cara feia, mas sem a dor de inviabilizar o resto de minha vida útil. Pequenas vitórias. Confortos em algum lugar. Estabilidades temporárias que, sim, são reais.


O equilíbrio entre olhar para sua linha do tempo, tipo a linha do 'M' da mão, e perceber que andou um belo bocado e triunfou sobre muita coisa, e perceber que lidou com as várias demandas oriundas de lugares ruins e o de não ter isso como um limite judaico-cristão de dádiva suficiente precisa ser encontrado sem que tudo vire bandeira e tentativa de atrair atenção em jogos bobos de posts em uma rede. Acertamos volta e meia uma carreira inteira no cubo mágico. Isso pode não significar nada para o arranjo geral do cubo e o trabalho nunca cessa. Mas já é algo.

 

UM FILME: recebo sempre com surpresa a informação de que algumas pessoas desconhecem totalmente “O cheiro do ralo” de Heitor Dhalia, 1997, com Selton Mello vivendo, talvez o maior de todos seus papéis. Posso garantir que o submundo das pessoas que tentam ganhar dinheiro com a venda de tranqueiras, antiguidades e cacarecos nas cidades grandes é fielmente retratado – mesmo em seus exemplos que parecem mais bizarros.


UM LIVRO: “Ardil 22”, de J. Heller é um livro divertidíssimo que ironiza a co-dependência entre alguns problemas, suas possíveis soluções e a potencialização de outros problemas em uma visão satírica sobre a 2ª guerra mundial que certamente vale à pena. Foi um dos livros que me rendeu um belo dindim quando fui negociá-lo num sebo da mesma Rua Riachuelo onde realizei a entrevista aquela que até hoje não sei para o que era (imagino o rapaz brasileiro-americano loiro com dois filhos igualmente loiros). Deu pena de vender, mas foi.

 

UM DISCO: “Capinan, o viramundo” era um dos discos que dava sopa entre as quinquilharias que minha avó detinha num cômodo específico da casa. Uma pena tudo isso ter ocorrido antes da retomada da brisa do vinil. Eu estaria rico, lhes digo. Esse é mais um que foi para o azeite. Mas, de forma precária em uma vitrola já quase destruída pelo tempo, em uma casa que não mais escutava discos de vinil, eu testava, conhecia e reconhecia tudo o que lá estava antes de ir à luta pelos trocados no centro. Esse tem umas pedradas brutais: “Soy loco por ti América”, “Papel Machê” e especialmente “Gotham City”, até hoje misteriosíssima (mas que na versão original cantada por Jards Macalé supera e muito a do Camisa de Vênus, meio amorfa)

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