Coitados-hype e os boletos metafóricos
- Gabriel
- 11 de abr.
- 8 min de leitura

Então: "boletos"
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Um dos termos mais certeiros e apropriados que a dinâmica de neologismos e novilínguas das redes sociais gerou nos últimos tempos é o da “coitadolândia” – uma subversão da própria gíria/adjetivo/condição pessoal ou estado do “coitadismo” enquanto local fictício-retórico de quem não apenas “se faz de coitadinho” (essa é antiga), como de uma espécie de nova versão do ato, consistente em aproveitar uma certa capitalização bizarra da condição.
O coitadinho das redes sociais (que habita virtualmente a ‘coitadolândia’) talvez não seja exatamente um coitado(a), mas certamente é alguém cujo mote principal de sua estranha autopropaganda internética de persona reside em forçar um contexto onde esteja sempre próximo de algum tipo de buraco metafórico numa revival da hiena chata da Hanna Barbera que só faz reclamar de forma pusilânime e desmotivada.
É um curioso fenômeno que, como já sugeri, talvez quem não transite no meio de redes como o finado (mais propriamente morto-vivo ou dead que walk) Twitter e o BlueSky não conheça com perfeição: certa vez uma amiga se lamuriou para mim que havia sido reprovada na prova da OAB por falta de uma questão na prova objetiva – e em se tratando de uma pessoa estudiosa, com tino para a coisa e que sempre fora acostumada a se destacar na área, aquilo foi um baque terrível. Me confidenciou, ela, ali alguns anos atrás: “...é que tu só usa o Twitter, onde as pessoas passam o tempo todo fingindo rir da própria desgraça de um jeito humorístico. No Instagram é horrível se tu não vence, se tu não está feliz ou se não tem saco para mentir”. Ela deu um tempo das redes naquele período porque não aguentava os vitoriosos histriônicos do Insta, e nem tinha traquejo para simular rir de si mesma (Nota: final feliz – uma questão que ela havia errado fora anulada por conter uma dubiedade na resposta e ela acabou aprovada na temida e genérica primeira fase do Exame).
Claro: há, sempre houve - e não é coisa nova - uma tentativa de angariar algum magnetismo charmoso em se oferecer como o contrário da soberba odiosa dos muito bons. Há um certo tom de limite extrapolado meio ridículo e inato em quem arrota grandeza e vitórias demais e há, de mais a mais, uma certa chance de capturar simpatia, compaixão ou interesse na forma de pena, frente aos derrotados.
Mas, pessoal se passa: uma circulada na timeline do BlueSky e a (acho mais boa do que ruim, frise-se) migração das pessoas e da alma tuiteira para esse site mostra sua força quando as pessoas ostentam o dia todo uma espécie de estado de fudição metafórico ou uma glorificação de algum tipo de fudição material enquanto bandeira virtuosa ou appeal. É completamente over – e até estranho – exibir algo de concretamente bom. Divertido e dentro é passar comentando fracassos amorosos/sexuais, situações de constrangimento e, eles (reais ou artifícios retóricos) os “boletos vencendo”. Dramas. Tragicomédias. Ponte de simpatia.
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Por vezes me pego pensando como um mantra ou anestésico moral ante a coisas tensas, chatas, pesadas, sinistras ou apenas cansativas do meu dia a dia: é incrível como já estive inimaginavelmente pior. Claro: há que se controlar a verve de sedativo opressor que possui esse grau comparativo onde você se orgulha – ou engana a si mesmo – usando os piores patamares do mundo como benchmark ou como demonstrativo de força, tal e qual aqueles coaches que têm medo de ir até a esquina, mas dão palestras sobre “como ser macho” evocando exemplos patéticos de soldados comendo larvas em uma selva chuvosa e coisas que remetem a uma jornada canhestra de remontada por algum herói arquetípico fajuto.
Mas, se for pensar bem (e não vou ficar espalhando isso) estou, em larga escala, bem.
Já estive mal em termos financeiros, afetivos, profissionais, morais, físicos e toda a gama de categorias que se possa imaginar. Por vezes, em séries combinadas de um estar mal em vários (quando não todos esses) juntos.
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Dia desses passei voltando da Casa de Cultura Mário Quintana e após ver algumas das exposições da Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, por um emblemático endereço na Rua Sete de Setembro. Jamais esquecerei do prédio.
O ano era 1997 e lá estava eu: mal fisicamente, mal em termos de autoestima, mal em termos amorosos, e especialmente no núcleo de vários desses problemas, mal financeiramente. Daquelas vezes em que mal se tem dinheiro cara comprar um chiclé e que se procura ir a pé em parte do trajeto para economizar fichinha do ônibus (era fichinha, na época, como eram as de telefone público). Era o primeiro ano de faculdade e a necessidade de arrumar um emprego para tirar algum trocado contrastava com a questão de que qualquer trabalho na área e que remunerasse consideravelmente estava longe de um pirralho de 17 para 18 anos que mal havia saído do colégio. Fui office boy no escritório que meu pai mantinha com alguns amigos à época, mas a sensação de ou não se estar trabalhando de verdade, ou de se estar simplesmente fazendo um favor (somada com a questão de um que outro pingado significava tirar dinheiro de casa, ao invés de trazer) que permeava o local não me fez querer ficar muito.
Um anúncio no jornal, uma promessa de vaga meio nebulosa, uma estimativa de oferta salarial bem considerável me fez ir junto com uns outros 30 (coitados no sentido literal) às 14h em um andar desse prédio não identificado de escritórios na Sete de Setembro para escutar 40 minutos de palestras indefinidas, ver uns 10 minutos de vídeos que não eram bem específicos e mais uns 5 minutos com o dono da empresa dando algo que hoje seria visto como discurso quântico-motivacional de baixa intensidade. Ao final, eu me achando meio burro, e um sujeito ao lado vivificou aquilo que nós professores sempre falamos: não represe consigo uma dúvida, eis que ela pode ser a de todo mundo. Enfim, perguntaram: em que diabo consiste esse emprego? Para quê é essa vaga?
Por trás de toda uma cortina de fumaça que não ousava dizer seu nome, diante do tom curto e grosso, o chefe foi obrigado a dizer, sem enrolação, que era uma firma que entregava galões d’água para escritórios e conjuntos comerciais. Em algum universo paralelo, o Gabriel ainda tinha mais medo de morrer de fome do que o Gabriel dessa realidade, e alguém iria me ver carregando galões d’água tirados de uma Fiorino no centro de Porto Alegre. Não ocorreu.
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Em outra dessas vagas miraculosas meio indefinidas no jornal, fui a um andar de um edifício mais bonito na Rua Riachuelo, acima do Shopping Rua da Praia. Mais uma vez uma promessa de “oportunidades” e possibilidade de “carreira progressiva” em relação a algo que juro que até hoje não sei bem o que era porque a entrevista foi muito ruim para todos, menos para um rapaz loiro, alto, boa compleição física, olhos azuis, que estava usando (diferentemente de todos com no máximo uma camisa polo mal ajambrada) um terno de cor creme (meio esquisito, mas certamente avançado para a ocasião) que tinha um sobrenome anglófono e que, dada filiação paterna, havia morado e estudado nos Estados Unidos. A entrevistadora basicamente virou seu corpo para o lado do rapaz que de forma constrangedora (para os demais coitados strictu senso) monopolizou a dinâmica e fez todos ali parecerem figurantes tristes. Espero que tenha crescido na empresa e aproveitado a carreira.
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Minha última tentativa naquela leva do fatídico semestre 1 de 1997 foi uma entrevista para ser atendente da então inaugurada Livraria Saraiva do Shopping Praia de Belas: nada mal em termos de trabalhar entre livros e DVDs e auxiliar uma clientela legal. Tinha até uma camisetinha preta e amarela de uniforme que era bacana. Achava que tinha andado bem nas dinâmicas de entrevista. Uma colega de aula ironicamente ficou com a vaga e freudianamente creio quer não a perdoei até hoje.
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Vou poupar vocês do semestre II de 1997 e o I de 1998, quando a quantidade absurda de quinquilharias do apartamento da minha avó (especialmente livros e discos do meu falecido tio) foram objeto de escambo e venda por mim e foram uma fonte de renda interessante entre trocas e revendas nos sebos e brechós de Porto Alegre e região metropolitana e me fez vivenciar uma realidade parecida (embora mambembe) com a do filme “O cheiro do ralo”. Tem histórias boas (talvez me anime a contar, algum dia) e rendeu, incrivelmente, uns bons trocados.
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Em 1999 começou minha história de duradouros estágios respeitáveis e honestamente remunerados em Tribunais (estadual e federal), que foram quase até o começo de uma advocacia sem habilitação (o famoso lugar entre o estagiário que já se formou e o advogado que ainda não é), seguida por advocacia de verdade (o que também teve na linha momentos de coitadismo realmente existente que fariam os coitados hype das redes de hoje chorar convulsivamente).
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É impressionante como sob todos os aspectos estou melhor hoje em dia. Do tipo que pensa naquela época e (somados aos quase 30 anos de distância) quase considera parte de alguma espécie de arco alternativo bizarro, ou pesadelo com a câmera meio desfocada do qual o protagonista acorda de sopetão.
É por isso que coitadinhos da coitadolândia não me descem muito.
Quero distância de má fase. Não preciso anunciar por aí (inclusive fingindo uma bonança financeira total que está longe de ser bem assim) que meu cartão de crédito esse mês deu numa fatura gigantesca – dado que suportou uma parcela de um seguro específico que pago religiosamente de forma anual e que me faz muito bem por existir. E que foi pago com alguma cara feia, mas sem a dor de inviabilizar o resto de minha vida útil. Pequenas vitórias. Confortos em algum lugar. Estabilidades temporárias que, sim, são reais.
O equilíbrio entre olhar para sua linha do tempo, tipo a linha do 'M' da mão, e perceber que andou um belo bocado e triunfou sobre muita coisa, e perceber que lidou com as várias demandas oriundas de lugares ruins e o de não ter isso como um limite judaico-cristão de dádiva suficiente precisa ser encontrado sem que tudo vire bandeira e tentativa de atrair atenção em jogos bobos de posts em uma rede. Acertamos volta e meia uma carreira inteira no cubo mágico. Isso pode não significar nada para o arranjo geral do cubo e o trabalho nunca cessa. Mas já é algo.
UM FILME: recebo sempre com surpresa a informação de que algumas pessoas desconhecem totalmente “O cheiro do ralo” de Heitor Dhalia, 1997, com Selton Mello vivendo, talvez o maior de todos seus papéis. Posso garantir que o submundo das pessoas que tentam ganhar dinheiro com a venda de tranqueiras, antiguidades e cacarecos nas cidades grandes é fielmente retratado – mesmo em seus exemplos que parecem mais bizarros.
UM LIVRO: “Ardil 22”, de J. Heller é um livro divertidíssimo que ironiza a co-dependência entre alguns problemas, suas possíveis soluções e a potencialização de outros problemas em uma visão satírica sobre a 2ª guerra mundial que certamente vale à pena. Foi um dos livros que me rendeu um belo dindim quando fui negociá-lo num sebo da mesma Rua Riachuelo onde realizei a entrevista aquela que até hoje não sei para o que era (imagino o rapaz brasileiro-americano loiro com dois filhos igualmente loiros). Deu pena de vender, mas foi.
UM DISCO: “Capinan, o viramundo” era um dos discos que dava sopa entre as quinquilharias que minha avó detinha num cômodo específico da casa. Uma pena tudo isso ter ocorrido antes da retomada da brisa do vinil. Eu estaria rico, lhes digo. Esse é mais um que foi para o azeite. Mas, de forma precária em uma vitrola já quase destruída pelo tempo, em uma casa que não mais escutava discos de vinil, eu testava, conhecia e reconhecia tudo o que lá estava antes de ir à luta pelos trocados no centro. Esse tem umas pedradas brutais: “Soy loco por ti América”, “Papel Machê” e especialmente “Gotham City”, até hoje misteriosíssima (mas que na versão original cantada por Jards Macalé supera e muito a do Camisa de Vênus, meio amorfa)