Nosso homem em Cayalá
- Gabriel
- 20 de jun.
- 9 min de leitura

A cama tremeu.
Parecia algum tipo de equívoco sensorial causado por algum movimento de eventuais molas no colchão, ou engano dado movimento das pernas. Eu estava de bruços, tv ligada, eventualmente teria me confundido.
Achei estranho e fiz aquele silêncio típico das pessoas que querem prestar atenção em algo, como quem desliga o rádio para estacionar melhor (em tese nenhuma relação, mas: sabemos), e permaneci estático.
A cama tremeu de novo instantes depois. A cama, o chão, as cortinas. O quarto. Estava de bermuda e camiseta de dormir. Desesperado, desci pelas escadas - o quarto era no segundo piso - e cheguei à Recepção aflito (não lembro se cheguei a calçar sapatos) e comuniquei o fato ao sujeito no balcão. Ele, sem tirar os olhos do monitor, mexendo no mouse respondeu, aborrecido: "É, deu uma sacudida. Desse tipo acontece bastante".
Foi talvez um dos terremotos mais suaves da história da Guatemala. Mas: foi meu primeiro terremoto.
Olá: meu nome é Gabriel e assim teve início um dos dias mais malucos da minha vida e - acredite - o terremoto não foi exatamente a parte mais excêntrica dele.
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Desde 2017 faço parte do corpo docente de um curso de Maestría em Criminologia na Universidad San Carlos, Guatemala, capital. Esse tipo de curso, na USAC (é a quarta mais antiga universidade das Américas) costuma ser repleto de professoras e professores dos mais variados cantos das Américas do Sul, Central e México - além de gente da Espanha, igualmente. É uma oportunidade incrível de troca de experiências, de poder lecionar em outro idioma, de conhecer outras paragens (a Guatemala hoje é, matematicamente, um dos países onde mais estive) e de escutar sobre outras visões - acadêmicas e de mundo, em si.
O módulo consiste em uma semana onde ministro aulas das 17h30 às 21h no horário local (três horas abaixo do nosso fuso brasileiro - geralmente eles me encaixam em algum voo que chega domingo de tarde e parte no sábado de manhã seguinte: de Porto Alegre são seis horas direto até o Panamá e de lá mais quase duas até o La Aurora). Na maior parte dos dias eu fico livre para desfrutar as benesses do ótimo hotel em que sempre me hospedam (jamais pensei que me transformaria em um tipo desses, mas: a academia do hotel é de primeiríssima linha e sou cliente habitual) e para passear pelas redondezas (estrategicamente perto de uma excelente cafeteria e da loja oficial da Zacapa, o melhor rum do planeta inteiro).
Por vezes, há algum compromisso com a universidade, como, por exemplo participação em algum seminário ou debate e, bem, digamos que era uma ocasião dessas naquela manhã de algum dia qualquer de junho de 2018 - para a qual houve convite excepcional para participação em Bancas examinadoras de Teses de Doutorado. Estava rolando Copa do Mundo e nos mais aleatórios horários passava algum jogo na TV. Havia um (não recordo qual) durante o café daquela manhã onde ocorreu um mini terremoto e eu, ainda nervoso, mal e mal engoli alguma coisa e tratei de vestir um terno logo em seguida. Eu e um professor mexicano da Universidad de Puebla iríamos ser apanhados pelo motorista cedo para irmos até o campus e participar da avaliação de dois trabalhos de doutoramento (me foram inclusive enviados, fisicamente, pelo correio semanas antes)
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No caminho, o professor parecia muito mais aflito com a situação da definição da classificação do México para a fase eliminatória da competição do que com o eventual terremoto júnior, que revelou ter sentido, fazendo igual ou menos caso que o recepcionista (era um dia em que eles perderam de 3x0 para a Suécia e a cada gol, via alerta no aplicativo do motorista programado para acompanhar o minuto a minuto da partida, o mexicano desfalecia em lamúrias). O motora (o conheço desde a primeira vez que estive lá - sujeito querido, mas de pouquíssimas palavras) parecia também mais atento ao futebol do que em comentar uma tremidinha corriqueira no solo.
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Após trajarem-nos de forma altamente pomposa e protocolar, com togas e chapéus com detalhes vermelhos, os organizadores nos conduziram à sala dos exames, em uma mesa de madeira antiquíssima e elegante, e procederam-se os debates jurídicos sobre os trabalhos e suas respectivas defesas. O primeiro era um rapaz que fez um compilado inacreditavelmente grande sobre as formas alternativas de resolução de conflitos que poderiam dispensar a lógica padronizada dos tribunais. A segunda, era uma mulher na casa dos seus 40 anos, que discorreu sobre tipos penais e lógica de enquadramento de acusações de corrupção.
Em meio à apresentação dessa segunda candidata, fiquei sabendo que ela era juíza na capital e pude notar que no momento da sua vez de tomar a palavra, entraram na sala um senhor mais velho de cabelos grisalhos e dois tipos carrancudos vestindo terno preto e óculos num pique men in black (a sala ficou vazia durante a apresentação do primeiro, que foi embora assim que se encerrou sua avaliação).
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Feitos os cumprimentos (a candidata foi aprovada) o senhor grisalho pediu a palavra: era o pai da agora Doutora, um ilustre advogado tarimbado do país, que fez algo como que um discurso louvando sua filha. Digo 'fez algo como' porque o sujeito falou por cerca de dois minutos e eu basicamente não entendi nada. Nada. Zero.
Considero que sou bom com língua espanhola e mais ainda quando se entra no modo Guatemala-visitante, quando o idioma é tudo que se escuta por uma semana inteira (o cara chega a falar sozinho em espanhol, acredite - não raro). Mas, o fato é: jamais tinha escutado um sotaque e uma pronúncia daquele jeito. Não compreendi nada fora de algumas palavras soltas - e o nome da filha, em meio ao falatório do homem.
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Percebi que qualquer movimento na sala agitava os men in black presentes e que a menção de todos deixarem o recinto os fez saltar rapidamente dos assentos e conduzirem uma checagem estranhíssima da porta e dos corredores.
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Na sala onde nos desmontamos das togas e estávamos assinando as papeladas atinentes ao protocolo, fiquei sabendo de duas coisas:
A juíza, em questão, era basicamente uma das pessoas mais famosas da Guatemala. Ficou conhecida por ser persona non grata ao condenar e mandar prender acusados de corrupção em esquemas de fraudes públicas na capital, fora mandada para uma comarca próxima ao México onde conduziu julgamentos de narcos perigosos, tirada de lá por sua segurança e enviada para uma comarca onde bateu de frente com grileiros locais (estamos contabilizando já o terceiro grupo que a jurou - literalmente - de morte), e atualmente trabalhava em um rumoroso caso onde uma família de um empresário russo que havia fugido de seu país por estar em maus lençóis com o governo Putin estava preso por uso de documentos falsos para forjar uma cidadania guatemalteca, e cuja família estava movendo campanhas de difamação contra ela na web, dizendo ter provas de que ela e outros órgãos guatemaltecos agiam perseguindo-os (à mando e pagos pelo governo da Rússia).
Meio espantado e nervoso, brinquei que teríamos corrido 'risco de vida' em realizar essa banca hoje e ninguém riu. "A sala foi inspecionada pela equipe de segurança da juíza e a janela atrás da mesa da Banca foi considerada uma das menos propensas para haver o enquadramento do espaço por algum sniper próximo", me disse o coordenador do curso de forma bastante séria. "Poderíamos fazer em um gabinete mais fechado, mas não queríamos que a doutora se sentisse aqui também sitiada como costuma viver nos últimos tempos". Passei cerca de duas horas de costas para uma janela, sentado exatamente em frente onde uma pessoa poderia estar sendo alvo de snipers, real/oficial.
A segunda coisa é que a doutora e seu pai estavam muito felizes e faziam questão de levar eu e o professor mexicano para almoçarmos. Era início da tarde e parte da equipe de segurança da juíza que não estava na sala estava analisando sua camionete preta blindada para um double check sobre eventual instalação de bombas e existência de pessoas estranhas no perímetro do prédio do Direito.
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Houve um impasse na hora da divisão dos carros - o motorista da universidade tinha saído em outra missão - e em um átimo de segundo ficou para mim a decisão se eu cumpria um trajeto de cerca de 25 minutos na companhia de um homem de quem eu não entendi sequer uma palavra, ou em uma camionete Dodge gigantesca com plausibilidade de ser atingida por um míssil vindo de um descampado ou por sicários com metralhadoras antiaéreas desde a caçamba de um caminhão em frente. Como prefiro ser dado como louco (ou mal educado) do que como falecido, optei por acompanhar o senhor e mais alguns dos 'homens de preto'. O professor mexicano entrou na trevosa camionete, e partimos.
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O sotaque do homem era realmente estranho (não parecia o cadenciado e limpo espanhol guatemalteco típico da capital, nem nenhum outro que já escutara), mas, para minha sorte, meus ouvidos se acostumaram mal e mal da mesma forma que nossos olhos, pelas tantas, se acostumam e passam a distinguir uma que outra coisa na escuridão repentina. Foi quase meia hora de uma conversa meio errática, mas sem maiores problemas - nem sequestros.
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Chegamos a um restaurante chique em uma zona mais afastada do centro quase pelo meio da tarde. Os seguranças se dividiram entre alguns do lado de fora e dois que foram "almoçar" em uma mesa não tão colada à nossa - mas também não muito distante. O pai orgulhoso anunciou que eu e o professor mexicano éramos convidados de honra e podíamos comer e beber do que quiséssemos (a essa altura percebi que se tratava de um homem de cacife - e muito fino trato). Bebemos vinho, comemos muito bem - a especialidade da casa eram filés - e conversamos em um almoço que transcorreu sem maiores notas. Dessa vez o senhor nos levou ao hotel enquanto a juíza e seu séquito rumaram para outro lado na camionete-fortaleza, desfazendo-se a comitiva.
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No dia seguinte, próximo ao horário da aula, um auxiliar que trabalha como espécie de 'faz tudo' nos cursos das Maestrías sorriu ao me ver no corredor e disse que eu "estava famoso". Não entendi exatamente a brincadeira, que foi repetida quase com mesmas palavras por outro funcionário da secretaria. Quando a secretária do coordenador veio falar comigo me indagando se eu esperava vir do Brasil para acabar virando tema de discussão na Guatemala, eu tive que - meio consternado - perguntar do que ela estava falando. "Você não viu no Twitter?". Era difícil, naquela época, eu não ter visto alguma coisa no Twitter, mas obviamente assuntos internos da Guatemala não eram minha área de domínio e eu não tinha ainda a dimensão exata do que tinha sido minha tarde do dia anterior.
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Ela me espichou a tela do seu celular e havia um engajadíssimo post da conta do empresário russo que estava preso (a conta - bem como um site dedicado ao tema - eram alimentados por familiares do acusado, que se martirizava como 'preso político' e 'perseguido' e sustentava uma campanha voraz contra a pessoa da juíza em questão). Na tela, uma foto da nossa mesa no almoço no restaurante chique, tirada de uma proximidade perturbadora, onde se viam as costas da juíza e seu pai, e, de frente, eu e o outro professor.
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Imagine, sei lá, no Brasil, no mesmo ano de 2018, alguém ser fotografado, tipo, numa lanchonete com Sérgio Moro e Deltan - é mais ou menos esse o pique.
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Na legenda, uma clara tentativa de fake news que perguntava "o que a grandessíssima baluarte do combate à corrupção no país estaria fazendo em um almoço ~secreto ~em pleno meio da tarde de um dia de semana, na companhia de ~advogados misteriosos?"
Seguiam-se mais algumas fotos onde estava lá eu bebendo um vinho de gabarito e mandando altos papos com a juíza. Os comentários eram igualmente pérolas do sugestionamento que começaram a alcançar ares fantasiosos delusionais: uma pessoa questionou se a impoluta juíza não deveria estar trabalhando para justificar seu alto salário ao invés de estar em convescotes nababescos. Outro disse que "conhecia" os advogados em questão (...) e não eram nada mais nada menos do que os representantes de um réu que fora o único para quem ela havia concedido liberdade em um caso bombástico que havia julgado recentemente.
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Veio uma série de ofensas misóginas e algumas outras galhofas infelizes, como de praxe.
Deitado no hotel, à noite, depois da aula, confesso que dediquei horas que deveriam ser de sono à acompanhar tardiamente o desenrolar do bafafá e procurar ler sobre a situação.
Estava até meio receoso quando do acesso às áreas de embarque do aeroporto (mas passou assim que me uni a um grupo entusiasmadíssimo de locais para ver o jogo Argentina versus França poucos instantes antes da hora da partida).
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Na primeira vez em que estive lá, em 2017, alguns alunos após a última aula, me levaram para jantar, no que se estendeu para um convite para beber em uma boate localizada na surrealmente fantasiosa zona da Ciudad Cayalá (pesquise aí você: renderia, garanto, outro texto) e, de uma sacada no estabelecimento olhava para as luzes da capital pensando "O que poderia ser mais inusitado nessa vida do que eu estar de forma completamente aleatória em uma night na Guatemala?". Mal sabia eu.
UM FILME: assisti "Magic Farm" atraído pela presenta da ídola Chloe Sevigny, que desde sempre é uma referência para mim em termos de coolness. Saí nada desapontado com Chloe (bem pelo contrário), mas maravilhado com a diretora (e também atriz no filme) Amalia Ulman e todo seu trabalho de produção artística e visual que sequer conhecia.
UM DISCO: "Caro vapor II - qual a forma de pagamento" de Don L. Que figura interessantíssima do rap brasileiro é esse cabra. O seu "Roteiro pra Aïnouz vol 2", anterior, já era um petardo magnífico. Abre portas para bossa nova, samba, pop e muito mais, mas mantém a crueza, o veneno e a malandragem 'ruim' nas rimas. Excelente.
UM LIVRO: Guatemala? Não diga mais nada --> "Homens de milho" (Hombres de Maiz), Miguel Ángel Asturias.