top of page
Buscar

Saturação

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 13 de jun.
  • 7 min de leitura

Ontem de noite eu estava na estrada - sim, você já sabe - e eclodiram bombardeios em Teerã - sim, você também já sabe - e promessas de respostas a Tel Aviv.


Eu nasci no ano da revolução iraniana que colocou o Aiatolá no poder (ou seja, embora já veterano, assim como vocês eu nunca vi um Irã de outro jeito) e vivi minha infância inteira sob a égide do chamado "Conflito Irã-Iraque", de tal maneira que creio que foi minha primeira experiência de 'hipernormalização': todo dia o noticiário tinha alguma notinha para dar sobre o conflito, de tal modo que desenvolvi minha personalidade meio que achando normal e inescapável o fato de que aqueles dois países se bombardeavam. Era do seu feitio.


Quando uns anos depois o Iraque invadiu o Kuwait logo após eu achar que haveria uma folga de tanto tiro nessas quebradas comecei tunar a percepção de que o Oriente Médio não era para amadores - tudo isso entremeado por Israel, aqui e ali, devastando Beirute de tempos em tempos (que demorei a descobrir que era um lugar lindo e cosmopolita, pois na minha cabeça todas as cidades mencionadas em tudo o que saía sobre a região eram uma espécie de escombros de edifícios mal colocados sobre um deserto árido. A visão de garotas de biquini e caras bronzeados jogando vôlei de praia na costa israelense também me deu tilt, na primeira vez).


De lá para cá, muita coisa em termos do que algum não tão jovem (as gírias: adoro como são incapturáveis e como quando você acha que as domou, elas já são obsoletas) chamaria de uma treta infinita que ultimamente tem uma de suas mais cruéis pontas soltas naquilo que Israel pratica com Gaza sob os olhos covardes do mundo e de algumas 'notas de repúdio' ou posts manifestando 'solidariedade'.


O ponto é que era algo como 23h34 e eu já tinha lido um capítulo do livro de Rodrigo Guerón discutindo Deleuze e Guattari, escutado um podcast (grande Gonzo, e seu trabalho excelente com os debates sobre Fisher no CriseCriseCrise) e já estava farto do videogame (o Manchester United começou meio errático sua jornada na Premier League) e uma vasculhada na web (já amaldiçoou o cara que desenvolveu a interface de "scroll infinito"? Vai lá, porque até ele se arrepende, literalmente - pesquise aí, o brother pediu desculpas já) parecia uma boa para aqueles momentos de quase-Porto Alegre. O que meus olhos cansados viram me inundou de tanta, mas tanta, mas tanta opinião que quase desmaiei tipo uma máquina sobrecarregada real (não 'máquinas desejantes', mais pra desktop antigo superaquecido).


****


É uma pergunta irônica mas: como algumas pessoas conseguem ter tantos takes sobre tudo? Claro: seria de se elogiar que em alguns casos certas feras descobriram um conteúdo hormonal que às torna imunes a uma das doenças do século, que é a "síndrome da impostora" (uso preferencialmente no feminino, eis que a incidência é sabidamente maior em mulheres). Pessoal vai lá e simplesmente explana a guerra nascente em detalhes, diretamente de seu Motorola em Embu das Artes.


Sim, estamos todos aqui para dar pitacos, comentar, pegar o microfone por alguns instantes na ágora como naqueles programas em que o auditório faz fila para tentar ganhar algum brinde. Alguns tem tino profissional ou talento inato, para. Mas nos últimos tempos mais e mais a fome e a sede com a qual alguns precisam, quase que organicamente, aparecer e querer pautar coisas maiores que sua barriga e sua cabeça é meio incrível. Não acho que seja parte exclusiva do fenômeno de bancar o sabichão e vencer a "impostora", mais do que parte de uma necessidade já natural de acreditar que tudo, a qualquer momento, deve ser publicado. As pessoas andam com uma urgência meio surreal em 'participar' de algo, de algum modo, sendo a presença ou não de reverberação disso um mero detalhe eufórico.


****


Uns dias atrás um camarada achou por bem divulgar na web que havia descoberto um relacionamento extraconjugal de sua companheira com um sujeito do trabalho através de vasculha nas conversas de whatsapp dela, printando detalhes sobre os papos entre ela e o amante e dando informações sobre a agência de publicidade em que ambos trabalhavam e onde viviam o romance furtivo - um trecho especialmente tragicômico do diálogo exposto dava conta de que os amantes, que costumavam se encontrar na escadaria do edifício, na altura do terceiro andar, não poderiam o fazer naquele momento dado que repentinamente apareceu outro colega por ali (situação que teve de ser administrada e seguida de uma mensagem de 'abort mission' ou algo que o valha).


****


É bem sabido que esse tipo de atitude vai ocasionar muito mais galhofa e potencial de reversão do que uma eventual solidariedade. A opinião pública tem tendências variadas nesse caso - com destaque para a solidariedade com o apaixonado enganado (pacote básico e clássico), justificação heroicizante para o traidor(a) em alguns casos (pacote advanced, em especial se a amante for mulher e o caráter do companheiro for de tino duvidoso ou visivelmente desprezível), torcida eventual para o neo-casal, e mesmo condenação do terceiro elemento (por vezes o papo furado de que esse apenas está aproveitando uma chance - como se não tivesse qualquer relação factível com a outra pessoa enquanto alguém que está deliberadamente enganando outrem e fosse uma espécie de inimputável moral, no caso - já não cola como se em uma peça de Nelson Rodrigues).


Agora uma coisa é certa: o gambling arriscado com essas posições neutras-idealizadas-iniciais é tremendo no instante em que há dois fatores em jogo: pessoal não costuma tolerar bem a transição de vítima/enganado para alguém proativo quando não envolva reações novelísticas (ex: "dar o troco"), e diga respeito a atividades policialescas que incluem uma nem um pouco saudável bisbilhotice em celular alheio. O traído-vítima vira neurótico, se torna instantâneo vilão e - levado em conta o fator meio caótico da internet brasileira em extrair piada de tudo (mormente com a situação típica de 'corno') - as chances eram imensas para que o brado kamikaze do marido enganado caísse na vala comum da anedota com ele sendo o bobo da corte ou a atração do picadeiro. Foi o que ocorreu.


****


Pergunto se não foi igualmente o caso tanto de querer de alguma forma prejudicar os amantes, munido de raiva e desolação (quem nunca?) tanto quanto um fator já inerente da vida cotidiana, que é a pessoa acreditar que qualquer coisa que tem em mãos possa ser algum tipo de conteúdo que é publicizado como forma de porta para vantagens e mesmo como espécie de obrigação. Como se não pudesse mais existir histórias privadas.


****


(Lembrei rapidamente do "Breve Romance de Sonho" de Arthur Schnitzler, vertido para o cinema no último suspiro de Stanley Kubrick, que é um dos meus filmes prediletos da vida, "De olhos bem fechados". Não pretendo resumir toda a experiência de livro e filme de modo galhofeiro aqui, mas é preciso dizer que uma mera possibilidade de serem traídos faz os personagens enlouquecerem, perdidos em conjecturas com um alto nível de octanagem de absurdo. No filme, Nicole Kidman pira criando cenários dados como fatos somando peças para as quais sua imaginação completa vastos espaços indefinidos, após fumar um baseado enquanto discute a relação, e confessa ao marido que adoraria ter largado a família para ficar um um militar com quem mal trocou um olhar, certa vez, como forma de dar algum tipo de contra-ataque antecipado às supostas cagadas dele. Cruise se embreta em uma jornada de 24h malucas em Nova Iorque para tentar remediar de algum modo sua condição de corno hipotético usando métodos antigos como amigos, putas e convites para festinhas-barbada. É uma -hoje em dia- estranha crise vivida no modo analógico).


****


Há (há?) um paralelo meio disforme aqui, no instante em que a pressa para se ter alguma opinião e/ou para ter algum conteúdo publicável não é exatamente - ou somente - respectiva a se tentar algum tipo de ganho imediato, nem é da ordem do "querer aparecer" antiquado (tal e qual velhos yelling at clouds ainda referem as 'coisas da internet'), mas é uma espécie de obrigação ou dívida que se assume.


****


Você já viu alguma notícia ou esteve envolvido em alguma situação onde a primeira coisa subsequente que pensou foi na forma de expor, problematizar, exibir, 'postar' isso? (Escrever em um blog - né - vai saber?).


Você já quebrou a cabeça imaginando quase subsequentemente ao fato a forma que isso ia ser narrado? Ou que teria que ser?


Somos os únicos seres da terra que 'contam histórias' - e fazem promessas (Nietzsche). Mas não creio que deveria ser essa a pegada.


Enfim: tudo satura. Coisas importantes, banais, cruciais, inusitadas, informações, estudos, reflexões, fofocas. Tudo parece sugado pelo imenso vórtice das 'coisas que saturam'. Uma massa compacta, da mesma cor. Que passa na nossa frente. Ali, passou. O corno, o genocídio, o golaço (o do Corinthians contra o Grêmio, ontem, foi, infelizmente). O gigantesco bloco de 'coisas que saturam'.


UM FILME: se nunca viu "De olhos bem fechados" (1999) veja. Mas o filme que indico essa semana é "Meu nome é Maria" de Jessica Palud, 2024, que conta a triste história da atriz Maria Schneider e a espiral de depressão que se seguiu após ela participar do infame "Último Tango em Paris" de Bernardo Bertoluci e especialmente marcante por uma cena de violência sexual enxertada de última hora no roteiro por Bertolucci e Marlon Brando sem o conhecimento da atriz (a história é célebre, mas talvez você não saiba maiores detalhes). Uma cena que causou dor, desolação e, acredite, mudou para sempre - e para pior - sua carreira e sua vida.


UM DISCO: gosto bastante da banda Menores Atos e seu indie rock com clara inspiração em algo como "os emos cresceram e agora falam de dores, problemas e relacionamentos reais, ora vejam". É uma barulheira que ganha letras que volta e meia acertam o alvo (embora nem sempre e tudo bem). Passei a semana ouvindo o último trabalho, "Fim do Mundo", muito parecido com "Lapso", de 2018, que me fez reparar na banda pela primeira vez.


UM LIVRO: aqui é um espaço para literatura, com a qual estou há um tempinho em dívida, mas vai esse daqui que estou estudando e foi referido ali em cima: "Capitalismo Desejo & Política. Deleuze e Guattari leem Marx", de Rodrigo Guerón, pela Nau Editora. Didática e abrangência impressionantes.

 
 
bottom of page