Heróis
- Gabriel
- 28 de mar.
- 7 min de leitura

Eu sempre tive um ranço tremendo do Super-Homem (o kryptoniano do S no peito. Do ubermensch Nietzscheano, nem tanto, embora alguns problemas). Não obstante, eu colecionava avidamente as revistinhas mensais sob a rubrica do personagem, naquele início de década de 90.
Entenda: além de contar com o traço do meu (à época) desenhista favorito (John Byrne), as histórias que circulavam na edição do "homem de aço" eram uma espécie de Aeroporto de Guarulhos do universo da DC Comics, e invariavelmente tramas que envolviam outras edições e sagas de outros heróis tinham ali quase sempre alguma conexão ou referência, de forma que não ler a "Super-Homem" da Editora Abril era como assistir um jogo da Seleção Brasileira sem ser pela Globo (e você pode igualmente ter um tremendo ranço da Globo, mas atire a primeira pedra se não há uma espécie palpável de sensação de que se está fazendo algo do jeito errado, nesse caso).
Minha bronca maior com o Super-Homem é a necessidade tremenda de invenção aleatória e cada vez mais imaginativamente custosa para conferir alguma emoção a uma história de um sujeito que mal e mal se despenteia se aparar no peito um míssil atômico: para correr algum risco, o cara precisa enfrentar alguma vilania cósmica absolutamente non sense e pautada em algum tipo de gigantismo apelativo - ou ficar próximo de uma lasca de uma pedra verde esquisita (é uma opção).
Eu sempre gostei de heróis díspares entre si (vide, abaixo, maus três preferidos) mas que contêm uma característica que os aproxima de um tom trágico iminente: por mais habilidades, poderes sobre-humanos e apetrechos que possua, o sujeito, se levar um tiro na fuça ou uma facada bem dada, bem: morre.
Um é um personagem tão saturado na cultura geral e tão revisitado e escrutinado de tantas maneiras que não vale gastar muito tempo falando (e minha fissura por ele é notória e o assunto poderia render demais, ao nível do inoportuno). Vou me resumir a lembrar que não gosto das versões que visam conferir uma sobre-humanidade e uma espécie de exoesqueleto embutido numa fantasia (a partir de toda e qualquer invencionice fanfarrona que o dinheiro do Banco de Gotham City possa financiar), que terminam por lhe conferir um grau de invencibilidade e virtual imortalidade que depõe contra a poética do personagem (e ver ele falhando e se machucando no "Ano Um" de Miller e Mazzucchelli - meu quadrinho predileto do personagem - e em alguns momentos similares do filme, último, com Robert Pattinson, são bálsamos frente a algumas bizarrices dos últimos tempos onde o sujeito tem algum tipo de armadura aborrecida à prova de balas e possui algo como sete vidas - eu sei disso sobre gatos, não morcegos).
O segundo, vejamos: um garoto picado por um aracnídeo radioativamente modificado que passa a conseguir subir em paredes (que merda é essa?) e que mesmo na pindaíba absoluta é genial e sagaz o suficiente para conseguir não só elaborar um uniforme colant eficiente quanto um dispositivo (pelo amor de deus) acoplado ao seu punho que dispara um fluído que ele mesmo inventou (na boa...) que se solidifica enquanto uma teia firme o suficiente para pendurar um automóvel entre dois edifícios. Ofensivo (que os deuses do cânone me perdoem, mas as versões cinematográficas dos anos 2000 - onde parte da mutação genética fazia com que ele pudesse brotar teia dos pulsos - eca - e mesmo a última versão das 'franquias', onde tudo de mirabolante que ele tem foi presenteado em forma de altíssima tecnologia por um herói/tutor bilionário - fazem mais sentido).
O terceiro é um guri que fora cegado por um acidente com produtos químicos quando pequeno e secretamente mantém uma gama de habilidades impensáveis que o próprio acidente sem querer conferiu a ele em termos de todos os sentidos restantes serem exacerbados, a despeito de tirar-lhe a visão. Em que pese de suas necessidades especiais aparentes (ou fingidas, no caso), conseguiu se formar em Direito e atua como dublê de advogado ao dia e fantasiado de diabinho nas noites de um bairro de Manhattan onde salta de prédio em prédio com desenvoltura de ginasta suicida e surra de bastão uma catrefada que ele mesmo vai se oferecer para defender pro bono na Corte dias depois (a dupla Miller e Mazzucchelli igualmente assina um arco que também está entre meus contos preferidos da vida desse personagem).
Tirante diferenças colossais de lore e de tendências comunicativas e/ou simbologias, Batman, Homem Aranha e Demolidor possuem essa coisa que me encanta que é carregarem a mortalidade banal possível como traço de humanidade que me faz pensar com gosto em suas possibilidades e historietas. Os dois últimos ainda lançam mão de outro traço de humanidade que sabida e antipaticamente (fonte de um sem número de críticas e teses nessa nossa era) não é compartilhado pelo primeiro. Se Bruce Wayne parece se complicar cada vez mais para o gosto de certo público ao rodar uma espécie de ciranda infinita com ares de profecia que se auto cumpre (não seria ele e sua fortuna babilônica um dos genuínos motores da miséria - inclusive moral - que atordoa sua cidade natal?), Peter Parker e Matthew Murdock precisam rebolar para pagar os boletos.
No caso de Murdock (o Demolidor) a quantidade de pontos de contato é cruel: rapaz católico, em constante conflito com sua revolta e os limites parcos da ética onde fora doutrinado, vive o dilema de ser o demônio vingativo, mas controlado por um tom de respeito a preceitos fundamentais que o arremessa nessa singela porém apaixonante dicotomia. Não há arco do Demolidor onde não haja algum momento limite onde a tensão reside em saber se (e quando, e onde) ele vai perder as estribeiras que o caracterizam normalmente.
Uma das coisas - inegável - que sempre me fascinou em Matt (e influenciou meu futuro mais do que talvez deveria ou mais do que eu devesse admitir em um blog) é o fato dele ser advogado. Não apenas advogado, mas o simpático - e charmoso - tipo mais adorável de advogado: o camarada que defende a ralé mais baixa e desamparada da redondeza (que geralmente não tem qualquer trocado para o faz-me-rir do doutor), e o faz com maestria pois é dos bons. Craque no regulamento e no gogó. Rei da tribuna. Showman. Malandro. Casca grossa de bater de frente na audiência de custódia. Mestre do júri. Galanteador. Piadista. Erudito.
É basicamente o epíteto do romantismo advocatício. Sofre com e pelos seus clientes, como na imaginação do Carnelutti e suas "Misérias". Bebe um whiskynho caro guardado para as vitórias memoráveis. Quebra a cabeça nos recursos e sempre encontra a solução em uma madrugada insone.
Não estou gostando muito não, se querem saber, da série televisiva atual que arrecada o personagem para o universo cinematográfico da Marvel. Há algo ali em termos de roteiro e referências explícitas a problemas políticos cotidianos que me parece azedo e artificial. Inegável que um acerto pleno é manter um fio condutor que remete à série que há dez anos foi veiculada na Netflix (que é uma espécie de prólogo ainda que não bem assumido, porém 'oficial', da atual exibição). Charlie Cox é a encarnação física da versão consagrada do personagem nos quadrinhos, de um modo até então jamais visto e dificilmente superado em qualquer futuro imaginável hoje. Vincent D'Onofrio faz um Rei do Crime magistral - que, enfim, atendeu minhas preces e vai retratado como um homem gordo plausível, e não uma montanha descomunal absolutamente inverídica (e a predileção por desenhistas fazerem seus Reis do Crime, ano após ano, de uma forma cada vez mais paquidérmica sempre me intrigou e mesmo irritou - não há suspensão da descrença que aguente).
Mas mesmo torcendo o nariz para a série atual em larga escala, há algo a dizer: o Matt advogado está impecável. As visitas aos presos, os papos com os clientes, a negociação onde (em um dos episódios) ele vibra por conseguir algo crível para um caso perdido de um acusado em termos de acordo judicial (e ainda assim toma esporro por sua incompetência), os corredores de delegacias e fóruns com as famílias de vítimas e réus e seus dramas, maiores que o mundo (no estilo do poema: eternos enquanto duram). Tudo é retratado de maneira peculiar e certeira. O Matt que sente o abalo do clima desfavorável (e sua audição e percepção aguçadas captando acelerações e disritmias cardíacas para usar como trunfo em situações diuturnas é sempre um ponto alto dos episódios), o Matt que sofre com o touché do Promotor sedento por sangue. O Matt safo, que ri com uma ironia fanfarrona quando se dá bem (e que faz conter a raiva de todos por crerem que se trata de um pobre deficiente, ao fim e ao cabo) são definitivamente (e estranhamente) a melhor coisa de um produto audiovisual que narra as desventuras de um (super) herói.
Eu dia dizer que ele lembra um Gabriel de outrora (sempre queimado nas prestações e economizando o almoço para pagar a janta), mas que era capaz de sorrir após alguma tirada boa em uma audiência defendendo algum pobretão que depois se esquivava de cumprir os honorários devidos, ou cobrando (cheio de documentos e razão) algo em juízo de alguém que já tinha penhorado as próprias calças três vezes e mesmo perdendo, não ia pagar é nunca.
A correria de uma hoje impensável justiça de prédios e salas físicas, de processos físicos, de chuvas bem físicas que engarrafavam tudo e a apreensão indo para o Fórum de Porto Alegre e/ou para o TJ à bordo por vezes de um Gol mil, por outras de um ônibus da linha T7.
Se aquele Gabriel sorria bastante e não perdia uma piada, é até um insulto esse daqui que escreve isso o fazer. Traz o whiskynho, por favor. E dos bons, importados, sem miséria. E já aviso que é para botar na conta que depois eu vejo. Pendura.
UM LIVRO: está chegando aí "Desejo pós capitalista", uma coletânea de transcrições de aulas de Mark Fisher que são as últimas expressões do cara em vida. Vou ler ele após ter lido "Marx além de Marx" do Negri, que igualmente é um curso pensado e ministrado em 1979. Ler coisas de aulas, ver como um "show, ao vivo" desses pensadores é como ler não um livro/história, mas o roteiro da peça de teatro que o encena. Adoro. Adoro quando as peças descrevem cenografia enquanto narram, inclusive.
UM DISCO: emocionadíssimo com o show "Caetano & Bethânia" que vi ('ao vivo'...) do gramado da Arena do Grêmio em Porto Alegre, semana passada. Vamos essa semana com um dos meus preferidos de Caetano, cuja fitinha k7 tinha lá em casa quando eu era pequeno "Cinema Transcendental".
UM FILME: segue a entressafra de filmes aqui. Mas: que série impressionante e forte é "Adolescence", não? Meu deus, dê play sem pestanejar. Quatro episódios. Paulada.