Cabin Fever/Solar Power
- Gabriel
- há 4 horas
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(Hoje amanheceram, ao mesmo tempo, as temperaturas 'oficial' e a da 'sensação térmica'. em números positivos. 7º e 3º, respectivamente. Acredite: fenômeno raro nos últimos dias, onde a temperatura andava por 1º e a sensação em torno de algo como entre -3º e -6º. Teve um dia dessa semana, terça feira, onde amanheceu a marcação com -2º, então imagine a 'sensação', que marcava algo como 'puta que pariu' ou 'foi pras cucuias').
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Só não declaro a total impossibilidade de viver em um lugar assim posto que estou vivendo, e aqui, digitando essas linhas - mas estamos no limite, bom saber.
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Uma série de piadas infames - na forma apavorante da figurinha-meme ruim que assola os grupos de whatsapp (mormente aqueles onde você não queria estar e se faz presente por obrigações para além de sua vontade e estado de espírito), ironizou, nessa última semana, a condição basicamente inaceitável das baixas temperaturas no Rio Grande do Sul do modo usual: comentários sarcásticos sobre como "está fresquinho na rua", ladeados por imagens de pessoas (supostos gaúchos e, claro, sempre homens) bebendo "Polar" (ou algo que o valha) sem camisa na varanda de casa e/ou o (tristemente clássico) falso comentário sobre o fato de que no Estado está na hora de colocar um moletom, talvez.
Por trás do que é feito, muitas vezes, como brincadeira tola e inofensiva (e não raro o é, frise-se), há toda uma economia afetiva e ideológica onde algumas pessoas podem se exibir de forma disfarçada, tal baile de máscaras, no que diz para com a forma como se percebem e/ou enxergam no contexto social, político, étnico e especialmente imagético. Há uma espécie de orgulho fascistóide em algumas pessoas em glorificarem as baixas temperaturas numa por vezes não intencional, mas sempre clara, tentativa de - à moda bastante pueril - ostentar algum tipo de brio relativo à resistência ou à perseverança (quando não ao suportar de provação física). E, claro, em um dos momentos mais típicos para, tal e qual um descaminho ou lavagem de dinheiro, demonstrarem algum fator que descola sorrateiramente a proximidade nacional e as transporta para um mundo onde elas teriam mais relação e afinidade com rincões europeus longínquos (sei lá, "Vikings", "Ragnar", esse tipo de coisa) do que com pessoas localizadas três ou quatro estados brasileiros acima do mapa.
Acho engraçado que o frio que não raro identifica um traço distintivo de nós, 'do sul' (e não se engane: o verão, úmido, no Rio Grande do Sul é uma das experiências mais excruciantes que uma pessoa pode experienciar, com coisas como 39º que parecem 46º - você já entendeu o ágio, a inflação que costuma rolar aqui em relação a esses medidores) é em realidade uma coisa altamente idealizada. Quando alguém fala que gosta do inverno, geralmente mentaliza um lugar aconchegante, agradável, onde há uma lareira hipotética e amigos em uma sala de luz baixa, todos bebendo vinho (hipotético) e comendo alguma coisa (hipoteticamente) deliciosa. Completa a imagem algo como neve sobre um luar prateado pela janela. "Fondue em Gramado" (separe alguma roupa que você não se importa que seja praticamente inutilizada ao feder a óleo para, tipo, todo o sempre - o preço inflacionado e caríssimo por essa experiência tenebrosa deveria incluir serviço de lavagem/tinturaria), "roupas elegantes" (a real: parada de ônibus repleta de gente trajada tal e qual aqueles moradores de rua de filme de 'Nova Iorque no natal'), "cidade estilosa" (chuva que transforma toda e qualquer superfície em gosma, vento cortante, pessoas andando curvadas, doenças respiratórias no pico, moradores de rua - esses não hipotéticos - amanhecendo mortos, de frio).
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Mas o que mais impressiona é o fato de que: toda uma mitologia construída para capitalizar de algum modo "o frio", esse traço distintivo de autoimagem, não leva em conta o básico: o Rio Grande do Sul convive com esse tipo de temperatura desde que se reconhece existindo e ainda, repito, ainda não se faz preparado em basicamente nada.
O chororô de pessoal do plantio em relação à geada que petrifica tudo é sintomático: todo ano alguma cultura agrícola vai ser comprometida e alguém vai dar uma entrevista murcha em algum programa televisivo lamuriando perda de investimentos como se estivéssemos em um ciclo eterno tal e qual o português da piada que vê uma casca de banana na esquina e lamenta o fato de que terá que tropeçar.
Pessoas que vem de fora - e a tentação é grande de se falar em norte global, mas poderíamos ficar com Buenos Aires - estranham o fato de que uso de calefação é um ilustre desconhecido aqui, causando o estranho e incômodo fenômeno de, não raro e dada posição do sol, fazer mais frio dentro dos ambientes/casa do que fora, aparentemente. É isso: o cara senta no sofá, cozinha, vai ao banheiro e dorme de casaco (e gorro de lã). Nenhum lugar ou equipamento parece preparado efetivamente (no verão a recíproca se verifica falsa: no calor escaldante, o pouco (cada vez mais pouco) que se pode (e olhe lá) fazer - ar condicionado torando, é constante em lojas, prédios públicos, restaurantes, etc.) e o frio é sempre visto como algo que chega sem avisar, de forma sorrateira e inédita, e vira um salve-se quem puder individual de sobreposição meio ridícula e non-sense de roupas, no estilo whatever works (adotei, há muito, e azar).
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O fato é que eu, que sempre fui de rua - passei há algum tempo a me definir como flaneur dando de ombros para a breguice disso - sempre fui mestre da dérive - sofro intensamente. E mais: sofro porque gosto (quando não: preciso) de rotinas e previsibilidades. Ter de cancelar um compromisso, mormente se for um daqueles da categoria meu, comigo mesmo, dói.
Reclamo e padeço também no calor inclemente, mas ele não enforca tanto em termos de privações as coisas que mais me aprazem. Quando para muitos é uma benção, ficar trancado em casa - ou em apenas um ambiente por muito tempo - para mim é o próprio inferno.
Acredite: não poder sair por aí, de bicicleta ou a pé (quando, não raro, escolho cumprir algum compromisso caminhando, mesmo que o trajeto dure mais e me obrigue a ajustar horários - ou: quando vou no mercado não efetivamente mais próximo, só para dar um passeio) me gera uma dor quase física.
Esse ano, enfim, fui capturado pela barca dos que de um jeito ou de outro admitem que, ao fim e ao cabo, só há um grande, eficaz, prático e democrático exercício, que é a corrida. Eu juro: detesto. Mas, enfim, me rendi. Um período passado no litoral em Janeiro, a recusa terminante em me matricular em alguma academia ad hoc (não se pode ser viciado nesse ponto) e o tempo disponível me geraram uma espécie de cronograma teste onde eu precisava de algum exercício mais forte em algum momento do dia. Separei parte das manhãs para correr, as tardes para trabalhar, e os finais de tarde/noitinha para surfar (que também é um exercício, mas tem um pique de encontro de amigos em bar - mas sem bebida, só caldo - idem).
Doutor, é grave: tomei gosto. Quando retomei a rotina de viagens que marca minha semana usual, segui correndo. Passei a tomar como um legítimo compromisso. Uso espaços eventualmente ociosos e viáveis do dia para correr em pistas públicas e parques (quem sou eu? Quem é esse no espelho?).
Sempre fui uma pessoa 'solar'. Mas agora creio que a idade me faz optar de forma meio que comprometida (para não dizer que estou naquele ponto onde tenho que optar de forma definitiva) por um dos 'perfis' e cada vez menos é noite e cada vez mais é dia (poucas coisas me deixam mais feliz do que a consolidação da moda de carnaval no estilo 'blocos de manhã' e a sensação de que o dia todo segue pela frente após a farra e a noite toda segue para repouso - mas, por favor: não aderirei a 'festas não alcoólicas em cafeteria hype', favor não insistir). Esses dias, desesperado pela sucessão de trabalho, recordes negativos de temperatura e chuva, mandei mensagem para o dono da academia que frequento pedindo para ir fora do meu horário, para não fazer nenhuma aula ou treino específico. Só para correr na esteira por uma meia hora. Só para sair de casa. Para gastar energia como quem gasta gasolina acelerando sem rumo e sem destino específico.
Passei resmungando essa semana em uma intensidade ainda mais insistente e incisiva que a usual, somando a temperatura, o ar, a atmosfera, Deus, sei lá, aos problemas de sempre: se você conviveu comigo, esse é um singelo pedido de desculpas. Vai melhorar (acho).
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PS: se você não se agiliza para descobrir onde são pontos 'oficiais' de coleta de doação de agasalhos (vale para alimentos e outros mantimentos em lugares que não padecem com o frio) em sua cidade/bairro (o que é meio impossível hoje em dia, dados dois ou três dedilhadas na tela do celular), não se preocupe: dá uma ou duas volta na quadra que alguma pessoa (infelizmente) serve de ponto vivo de 'coleta', com toda certeza. E vai te agradecer.
UM DISCO: escutei e achei ok, mas sem muito entusiasmo o novo álbum da Lorde, "Virgin". Assim como o anterior, creio que não vai me fisgar e gerar vontade de uma segunda audição. A impressão é que para meu gosto nenhum chegará aos pés de "Melodrama", de 2017, onde acendeu uma luzinha que mostrava que ela era mais do que fogo de palha de uma estreia bem sucedida de 'menina interessante'.
UM LIVRO: já que o tema é esse, vai de "Neve Negra" de Santiago Nazarian, uma história de terror e suspense ambientada na serra catarinense de proximidade com os canions na divisa com o Rio Grande do Sul (local onde sempre se registram as 'mais baixas temperaturas' do país). Prende a atenção e faz querer conferir se você trancou a porta (tem um filme argentino de mesmo nome, mas não é o caso).
UM FILME: uma autobiografia heroicizante, dramalhona, complacente e semi-musical sobre a vida de Robbie Williams? Sim. Um filme divertidíssimo e espetacular? Também. Amei "Better Man" e amei com toda a intensidade do mundo a ideia do macaco. Tenho dito a todos: por mim, agora toda e qualquer cinebiografia só tinha macaco de protagonista. E pronto.