Na reta de praia frequentada pela minha família desde que me conheço por gente (um caminho que ia desde a antiga casa - e atual apartamento - dos meus pais, cruzando pela da minha vó, já destruída), passávamos por um antigo farol que eu ainda peguei funcionando quando pequeno, hoje desativado em prol de um maior, alguns quilômetros ao norte (e já são três coisas demolidas/descontinuadas no espaço de um parágrafo, veja você o quanto o tempo e o capital são implacáveis).
O farol, hoje mal e mal percebido por quem passa pela praça onde ele se edifica, foi transformado por um tempo em um espécie de luminária tristonha, cabide de alguns enfeites mequetrefes de natal do município, e agora só está ali, parado, como um monumento sem sentido.
Faróis são românticos, em todos sentidos do termo, em especial ao evocar uma espécie de nostalgia de um mundo que só conhecemos nas sugestões e imagens ficcionais.
Lembro de Jorge Drexler, usando uma ideia singela e apelativa, mas certeira, apontando que (assim como o sistema de funcionamento e funcionalidade dos faróis) para nos encontrarmos, temos de nos perder: as luzes são todas iguais. O que importa é o código inscrito no ciclo de emissões. Um farol indica algo nos seus segundos de escuridão, não no facho de luz.
Por vezes não queremos encontrar é nada. Por vezes queremos fugir do anúncio, do lugar, da região, de alguém.
Esse texto é sobre medo. E fuga.
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Éramos amigos, naquele tipo peculiar de relação que existia e só poderia existir num tempo (hoje inimaginável) sem computadores, celulares, internet ou redes sociais: as crianças de cidades, regiões, colégios e vidas apartadas que dividiam costumeiramente a mesma zona durante os períodos de veraneio. Todo um ecossistema de comunhões sazonais impensável na era da hiperinformação e da ultra conexão. Haviam pessoas em nossas vidas exclusivamente 'de temporada', como algumas frutas (nem isso mais, hoje com a modificação genética que mais parece uma compulsão impaciente de consumidores mimados perigosamente).
Ele, com um ano a mais que eu, seu irmão, com um a menos, e toda uma patota que era composta por meus primos e alguns outros amigos (e amigos de amigos) dessa modalidade temporária. Fazíamos coisas de criança, de pré-adolescentes e de adolescentes que éramos e fomos: jogávamos bola (em especial "três dentro/três fora" - a modalidade alternativa de futebol onde é estranhamente prazeroso ser goleiro), pegávamos jacaré nas ondas cavadas de dias de chuva, corríamos como loucos pela orla, comíamos picolés - que o tempo sugeria serem melhores e mais saborosos naquela época.
Um dia, uma notícia: a família do rapaz (que ocupa um apartamento térreo contíguo a onde minha avó veraneava) não viria esse ano de sua cidade interiorana no centro do estado para a praia. O rapaz, o mais velho, foi acometido por algo até hoje por mim desconhecido, mas, de fato, alguma doença gravíssima. A previsão era de que não sobreviveria. Como sói naquele tempo, informações eram escassas (as mães não tinham Facebook para trocar memes bregas nem para postar fotos não autorizadas pelos filhos, muito menos grupos de whatsapp no estilo 'Amigos do Posto 82' ou algo que o valha). O que se sabia era que o abalo familiar era tamanho e a necessidade de cuidados do rapaz, idem. Hospital, UTI. Coma.
Em meados do ano seguinte, aquele esquema de engenharia social que conecta conhecidos de colegas de parentes distantes de vizinhos - ou algo assim - trouxe um fiapo de notícia: o rapaz havia, a muito custo, sobrevivido e a expectativa agora é que resistisse muito embora em um tipo de estado vegetativo. A família voltou a frequentar o apartamento no ano seguinte e a situação era justamente essa de transportar o rapaz de olhar perdido em uma cadeira de rodas a distâncias não muito fora do perímetro da varanda onde ele ficava "tomando sol" de forma não exatamente ativa.
Mais um ano, mais um verão, mais uma temporada da família abrindo as portas de correr da varanda e agora o rapaz - um tipo de milagre - já caminhava com dificuldade, falava, interagia e parecia vivo, agora oficialmente, mais uma vez. Como um personagem de ficção que teve a energia sugada por algum tipo de força maligna, ele parece ter envelhecido décadas em três anos. Os cabelos muito loiros agora estavam ralos e esbranquiçados. A pele, alva, agora parecia um couro opaco e flácido. A estatura notável já não intimidava nem admirava mais ninguém, uma vez que ele passou a ser dotado de uma fragilidade que se exibe indisfarçável a quem olha. Presa indefesa. Os olhos ficaram fundos e as sobrancelhas mais protuberantes, dado que sua magreza parece ter puxado a pele com força pela nuca, como que para ajustar ela mais ao osso craniano.
Via tudo isso, mas à distância.
Nunca mais passei por aquele trecho de rua. Simplesmente tenho medo de ser por ele avistado por um motivo que pode ser o mais bobo, mesquinho, infantil e quiçá egoísta do mundo: tenho comigo uma impressão que o fato incontornável de que minha vida seguiu, normal, o ofenderia. Mais: o iria agredir de alguma forma. Sinto culpa por ser uma pessoa que não derrapou até agora em curva nenhuma improvável tal alguma doença bizarra que parece uma punição randômica, como se me exibisse, afrontoso, em sua frente. Medo. Prefiro não. Fuga.
Volta e meia me dizem que não aparento ter a idade que tenho - de forma obviamente elogiosa. Ele jamais vai ouvir isso, uma vez que a menção clara seria oposta: quando por vezes passo (pelo outro lado da rua) penso que uma pessoa que não conhece a família certamente vê ele, a mãe e as tias como se fossem idosos (irmãos, talvez) conversando amenidades. Ele tem quase a minha idade. Repito que pode parecer estúpido e muito ridículo de minha parte isso tudo, e o simples aceno de um antigo rosto amistoso pode muito bem trazer conforto e memórias boas a alguém, mas tenho um pavor absoluto de pensar que minha altivez, meu viço ou simplesmente meu caminhar ritmado - normal - pode causar algum tipo de ofensa, ressentimento, angústia ou arrependimento (daqueles que sofremos pensando que tipo de escolha distinta talvez fizesse alguma diferença no desenrolar de tudo). Penso se meu sorriso o afrontaria, especialmente após passar pelo pequeno perímetro que se tornou quase todo seu universo e seguir adiante rumo a algum lugar. Um lugar. Qualquer lugar. Vida passando pela sua frente enquanto algum ponto do destino o multou sabe-se lá porque, de forma a condena-lo perenemente a abrir mão de (quase) tudo o que essa mesma vida poderia ser.
Será que ele sente alguma raiva das pessoas que passam, indo a lugares, numa própria simbologia quanto à vida que ele se acostumou a ver passar como um pagante, da plateia ou arquibancada barata e afastada do palco, o mais distante possível de algum protagonismo? Será que isso diz mais sobre mim do que sobre esse 'ele' hipotético que imagino completando as lacunas do que vejo em um corpo fragilizado em uma varanda? Estaria eu fantasiando - para a tragicidade - uma coisa que ele leva mais de boa do que aparenta?
Até quando vou fugir e terei interditado um lado da calçada de um trecho de rua? Devo cruzar essa barreira e romper essa neura? Estarei eu - há alguma possibilidade, enfim - certo, e devo seguir sendo uma espécie de memória interrompida, personagem de um filme bacana que nunca teve continuação, reboot, série revival da Netflix para não evidenciar ainda mais a desgraça dessa serenidade forçada onde ele foi arremessado pelas circunstâncias?
Até lá, sigo fugindo.
UM FILME: quero muito ver a nova versão do "Nosferatu" pela lente de Robert Eggers - até para apagar o gosto ruim que ficou com aquele "Homem do Norte" onde parece tudo no roteiro e na montagem apressado e sem acabamento (como se ele tivesse algo tipo um material de cinco horas e uma inteligência artificial mal calibrada fez cortes em cima da hora para a versão final ter duas). Do anterior, ora, ora, "O Farol", gostei demais. Porém recomendo mais do que fortemente que todos assistam - antes - "A Sombra do Vampiro" de E. Elias, Merhige, 2000, e sua genial premissa que cobre as filmagens do Nosferatu de F.W. Murneau (John Malkovich) mas imaginando que o ator Max Schreck (Willem Dafoe) seria de fato um vampiro. Magnífico é apelido.
UM DISCO: estou escutando "Todo me recuerda a vos", disco da banda argentina - radicada no México - Surfistas del Sistema (péssimo nome, mas, enfim). Sobre o Drexler (citado no inicio desse post com seu disco de 2006 cujo título evoca a metáfora do farol) um amigo me disse certa vez que a crise era tamanha que o melhor artista da MPB era uruguaio. A premissa parece válida: uma boa banda de pop rock BR atual é argentina (radicada no México). Se não vale por outro motivo, vale para você refletir sobre como figuras de linguagem em baladas românticas parecem diferentes em outra língua.
UM LIVRO: dia desses diante de mais uma improbabilíssima versão de 'Halellujah" de Leonard Cohen como se fosse uma canção religiosa tradicional (Péricles cantando em especial natalino de televisão), lembrei e dei uma folhada a esmo, sem compromisso, no "Energy of Slaves", do homem. Muita coisa ali, e mesmo algumas tentativas e exercícios meio pretenciosos e ruins. Mas muita coisa genial, idem, como sói. Poesia que não é meio provocativa me distrai fácil. Não reli todo, não lembro se há algum poema sobre faróis.