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Estupor

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 4 de abr.
  • 7 min de leitura

Gosto - desde que me entendo por gente - de filmes de terror, embora os motivos dessa predileção foram, se não sendo substituídos, aprimorados, ao longo dos anos de vida e cinefilia. Hoje em dia, costumo dizer que o terror - especialmente quando acoplado a algum tom fantástico, surreal, sobrenatural ou metafísico - é uma possibilidade narrativa infinita que, como os sonhos ou os delírios, pode se dar o luxo de contextualizar uma história a partir de patamares que nada devem à lógica. Um espírito atormentado. Uma antiga maldição. Um cemitério indígena. Pessoas que mudam de rosto. Mortos que dão recado.


Gosto de acompanhar um pessoal que entende do riscado falar a respeito de modo que volta e meia dedico parte de tempo livre das semanas dando play em materiais como os do República do Medo, do Não Apague a Luz e dos Esqueletos no Armário e me delicio com as tiradas e reflexões deles em cima desse tipo de temática.


O terror também é um gênero que possibilita uma amplitude estética e de proposta cinematográfica absurdamente larga e faz consequentemente com que até produtos ruins sejam fonte de prazer e contentamento: uma comédia ruim é (para mim) insuportável; de um filme de romance fraco e condescendente com standards morais médios eu fujo sempre que possível. Agora, um filme de terror pode ser pesado, estilística e historicamente significativo, como "O Exorcista" ou "O bebê de Rosemary", tanto como há noites que pedem diversão em ponto morto, tal e qual algum lixo adorável consistente em meninas sem sutiã sendo mortas a facadas por psicóticos em acampamentos de maconheiros.


Foi nos últimos anos - e após já acompanhar uma geração inteira de fãs e produtores de conteúdo que reajusta filmes que eu vi na adolescência como verdadeiros clássicos jovens (o patamar atual que é consenso em torno de "Pânico", de Wes Craven, 1996, é um exemplo), que me dei conta de uma coisa que sempre achei implausível ao nível até de perturbar um pouco o sangue doce com o qual assisto certas produções: há um padrão de condução da história onde se aloca esse tipo de filme onde universitários/colegiais inconsequentes morrem em um contexto onde tudo parece lúdico até começar a ficar estarrecedor - e é ao mesmo tempo uma exigência narrativa que compõe o fator tradicional do estilo. Deve, em algum momento do enredo, haver uma festa ou carnaval alucinado (uma casa onde os pais do anfitrião foram viajar? uma casa de campo que estará vazia em um dado final de semana, talvez?), e onde ocorrerá algum tipo de clímax com um ou vários cadáveres que começarão a ser notados a partir de dado momento em que pessoas começam a literalmente sumir dos olhos do público. O que sempre me intrigou nesse tipo de condução é o singelo fato de que: quem faria uma festa (e alugaria barris de chope?) em uma mesma semana onde alguém na sua escola ou bairro foi morto a golpes de foice e teve o intestino delgado pendurado em uma estante de troféus de campeonatos interestaduais de basquete? Bem: muita gente faria. Nós, inclusive.


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Acompanhando não apenas a literal ladeira abaixo do mundo como a interação dessa consequência com várias das causas que podem ser associadas à versão de racionalidade neoliberal e ao tipo de individualismo cruel e histriônico que nos percorre no estágio atual da aventura do capitalismo, me dei conta do tom altamente poético e visionário de várias películas que, como em automático, foram ao longo dos anos produzidas em série sempre utilizando das mesmas fórmulas. A menina recatada (porém sexy) que é cheia de dúvidas (porém impetuosa) que se candidata a final girl (em oposição à sua amiga 'piranha' e espalhafatosa), e o louquinho do corredor que já de antemão sabemos que é absolutamente inocente em termos de não ser o vilão (apesar de haver pistas imbecis e constrangedoramente descaradas de que ele oculta alguma coisa) são tão elementares quanto a "festa inoportuna" que precisa ocorrer apesar de o município viver aparentemente uma onde de assassinatos brutais.


Na era do TikTok onde tudo freneticamente já chega em uma transmutação quase instantânea e quase total de notícia/relato em meme/interpretação extrativa, é mais do que óbvio que, sim: ninguém vai cancelar o churrasco na mansão afastada ou a invasão do salão da escola na madrugada apenas por que Jenny, a cheerleader capitã, foi esfaqueada trinta e seis vezes num beco atrás da loja de conveniência da main street local de uma cidade com 12 mil habitantes. Talvez alguém - na mesma tarde do dia em que a notícia se espalhou - faça algum 'edit' de suas melhores fotos com Jenny e um brinde a ela com algum tipo de destilado duvidoso. Mas, definitivamente, a festa no sábado seguinte ao evento não só não será cancelada como vai bombar. Era a coisa que eu achava a mais implausível - mesmo em filme que pessoas usam máscaras e machados - e virou aquela que considero mais óbvia.


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Vi a reportagem essa semana do estarrecedor ataque a facadas que uma professora de uma escola pública de Caxias do Sul-RS recebeu de dois alunos. Comunidade, Diretor, professoras, pais dando depoimentos esbugalhados, reticentes e chorosos na TV. Psicopedagogas e promotores de justiça falando do caso com sobriedade em entrevistas. Ao fundo das câmeras de um dos depoimentos, adolescentes faziam o que costumam fazer nessas situações e se propunham a macaquices para tentar trollar a transmissão.


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Eu e minha companheira fomos em um show da Lana Del Rey há dois anos em um malfadado festival que tomou corpo no centro de São Paulo, no Vale do Anhangabaú (péssima logística e acústica). Éramos as únicas pessoas com mais de 40 anos (e héteros) em um raio de muitos metros, paciência.


Em dado momento, uma menina no bolinho de garotas radiantes de alguma combinação de álcool com coisas ainda não bem identificadas, à nossa frente, simplesmente deu tilt e caiu dura no chão, apagada. Alguns segundos (menos de minuto) de uma espécie de desespero tomou conta do grupo enquanto nós e alguns poucos viventes ao redor demonstramos preocupação em alertar o pessoal do balcão do bar próximo em chamar os socorristas, eventualmente. Pouco tempo passou (menos de minuto) e a decisão do grupo foi singela: deixa a amiga deitada como um moletom acomodado no centro da rodinha porque Lana estava divando no palco (cantava a ironicamente emblemática "Ultraviolence" no momento). Uma amiga da turma dava uma que outra olhadela para a desmaiada enquanto alternava a câmera do celular gravando stories da musa no palco e o modo frontal, para filmar a si mesma cantando e emulando um choro meio forçado. As demais faziam algo similar. A guria no chão demorou a esboçar reação que indicava sinais vitais, mas acordou, aparentemente. O importante é não perder o timing da postagem. Várias curtidas ao vivo (coraçõezinhos subindo em profusão na tela, pude notar).


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Imagino a situação do estupor (há que se admitir) dos alunos da escola de Caxias. É o mesmo de quando alguma falta de luz inesperada causa cancelamento de aulas, de quando há alguma bem sucedida ameaça de 'bomba' na escola (uma tradição brasileira que ganha outros contornos e contextos, bem piores, se falarmos em países do norte global, sobretudo um deles, específico), alguma greve ou mesmo aquela coisa meio eufórica do começo da epidemia (depois pandemia) de Covid, onde achávamos inicialmente que tudo se resumiria a um ponto facultativo episódico de duas semanas e era até excitante o aviso para ninguém andar na rua.


Colegas atacaram uma professora a facadas. Aulas suspensas. A ideia é apostar com os amigos nos grupos internéticos quem consegue aparecer atrás do repórter. Os comentários. O perverso e absurdo ciclo dos autores do fato serem ora jogados na lama, ora compreendidos com um certo tom de advogado do diabo, ora (há que se admitir e pensar nisso) heroicizados. Quem tem novidades? Quem sabia de algo? Quais as figurinhas e os memes mais engraçados sobre? Não se pode ir à aula. Há um assunto conectando a todos (mesmo a galera de outros colégios). Debates. Choro de alguns. Galhofa de outros. Todo mundo frenético, mas ao mesmo tempo, meio em suspenso, vivendo um curto circuito onde uma conexão geral mantem todo mundo de um jeito ou outro na mesma página.


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Não me surpreenderia nem um pouco que seja esse o assunto que domine as rodinhas na 'festa' que certamente vai haver em Caxias do Sul em algum momento, de algum jeito, nesse final de semana. Presumir que essa galera está necessariamente em um clima funesto é não saber nada vezes nada.


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Há gente falando em transmitir a série "Adolescence", da Netflix e seu previsível e merecido sucesso em escolas como forma de discutir e enfrentar a questão da violência, do bullying e do masculinismo tóxico nas escolas.


Sinceramente? Sou de uma geração que teve exibida para si doses maciças do filme da Christiane F. e do livro respectivo para supostamente discutir e enfrentar a questão das drogas e do sexo. Eu diria que não adiantou muito (muito embora nunca na minha vida quis me aproximar de heroína - e embora, também, eu já era um jogo ganho nesse sentido: jamais na vida quis usar uma droga que envolve agulhas na veia e uma tremenda mão de obra daquelas).



UM FILME: "Pânico" (Scream), o original da franquia (odeio esse termo) consegue várias proezas meta linguísticas. A maior delas a de ser o filme mais plain em termos de obedecer todos os critérios chiclete para um filme de "terror adolescente" ser empacotável, quanto sua premissa central ser justamente dobrar a aposta e debochar especificamente disso, de forma aberta. Poucas coisas nesses últimos quase 30 anos foram tão certeiras - e geraram uma cadeia igualmente meta linguística de imitações de imitações, algo não igualado sequer pelas suas próprias continuações (a maioria sofríveis e indignas de nota).


UM DISCO: escutei essa semana um disco meio down e esquisitinho que em algum momento há uns 20 anos atrás foi hype no exterior segundo algum site especializado em tendências fugazes. O nome da banda/duo é Fischerspooner e o nome do álbum é "# 1". Em alguma playlist dessas que a vida traz estava a faixa "Emerge", único registro que fez referência a algo que minha memória registrou parcamente desse caso. Resolvi ouvir o disco todo e é música eletrônica da cena electroclash afetada, do tipo que me fez saber porque nunca dei tanta atenção (no quesito, eu curtia Peaches, por exemplo).


UM LIVRO: gosto demais do argentino Pedro Mairal. Ele tem coisas lindíssimas (como "Salvatierra"), coisas estilo crônica urbana e divertida (como "A Uruguaia"), mas eu queria mesmo indicar aqui a coisa mais adorável - sobre 'adolescência... - que você lerá em termos de "romance" (que não é romance, é bem curtinho e mais singelo) "de formação": Uma noite com Sabrina Love. Tempos de uma juventude mais simples, com sonhos mais (literalmente) palpáveis.

 
 
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