Cliffhanger
- Gabriel
- 14 de mar.
- 8 min de leitura
Há algo como dez anos atrás (não resisto ao Google: onze, embora fique menos dramático do que o número redondo) estreava na HBO aquela que é uma das peças ficcionais de maior e mais inegável qualidade já produzidas para consumo televisivo: a primeira temporada de True Detective.
A ambiência estética do primeiro episódio, a forma como a narrativa era tomada e a informação (extra) oficial (então) de que se planejava uma exibição no estilo "antologia" me trouxe não apenas a certeza de que aquela história, daquele caso policial investigado, naquela região onde se passava a trama, com aqueles personagens, teria começo, meio e fim encapsulados na própria temporada, como me fez apostar (e acertar em cheio) quanto a algo não tão previsível assim: em um misto de futurologia com torcida fervorosa, sugeri, à época, que aquilo estava me cheirando (bem) a um tipo de percurso onde não necessariamente o mistério do plot não fosse inteiramente resolvido (ou quiçá o seria), e que talvez o final reservaria surpresas amargas àqueles que têm tara por explicações, encaixes, arredondamento e tranquilidade na interpretação das tramas.
Bingo: o final da - curta - temporada se encerrou com um clímax catártico, que apontava para lados e leituras beirando o surreal e o sobrenatural que poderiam ser pinçadas em um livro de Robert W. Chambers ("The King in Yellow" - corri para baixar e ler após o fim do episódio) tal um hyperlink, bem como para um baixíssimo índice de desfecho convencional, que deixou boa parte do público confuso, ou indignado, ou um misto curioso de ambos. Eu adorei estar certo (e adorei o não-cartesianismo da conclusão, considerando-o, de certa forma, educativo). Deal with it.
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Foi um sentimento cruelmente inverso àquele de quando descobri que já há planejada mais uma temporada de 'Ruptura', interessantíssima versão de um punhado já conhecido de críticas (às relações humanas conduzidas pelas lentes da postura desejável no ambiente corporativo e ao próprio ambiente e - ausência de - ética, em si), levados à tela semanalmente com originalidade e arrojo, complementando a primeira temporada de exibição que reside em um hiato que remonta há mais de dois anos.
O anúncio de mais uma temporada desse tipo de série costuma ser celebrado pelos fãs em uma curiosa dinâmica, como se a continuidade tranquilizante do produto predileto fosse suficiente para uma estabilidade, e como se eventual cobrança posterior por manutenção de qualidade, ou por decepção com algum rumo de roteiro ou condução (invariavelmente ocorre), não tivesse ligação direta com essa simbiose esquisita onde tudo passa do limite porque os envolvidos assim desejam - e é o que de fato arruína a relação, não raro.
Enfim: já estou assistindo a uma coisa sabendo que não haverá a agradável tensão de imaginar o que a série vai oferecer frente aos episódios que faltam no calendário, eis que qualquer tipo de amarra ou desfecho não precisará ser feito com coragem que vislumbra uma deadline e suas escolhas, e poderá ser realizado em uma terceira, quarta, décima oitava temporada, whatever.
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Do mesmo modo, de uma maneira que acho curiosa e meio inexplicável, as pessoas adquiriram (junto com o vocabulário específico) a mania de reclamar de forma bastante veemente quando um seriado semanal frustraria as expectativas de andamento da história com algum episódio categorizado como filler (literalmente 'preenchedor'), o que é visto entre as comunidades de fãs como uma ofensa atroz, dado que o filler é universalmente notado como uma espécie de perda de tempo que irrita na medida em que não revela nada ou não faz (em tese) avançar a trama.
A comunidade de fãs não parece se importar com uma sucessão de renovações e anúncios de extensão de temporadas, mas justamente se enfurece de modo desproporcional quando ocorre algum episódio dedicado - não raramente - a expor justamente algum resquício de mensagem ou de oferta estilística que a produção e os autores do programa visam colocar como em um diálogo ou demonstração de um ponto. A regra é clara: a trama não pode se esticar para os lados, ou dar uma voltinha para que vejamos o caimento da costura. Ela só pode andar para frente, para frente a para frente, tal um cavalo treinado que supostamente não se cansa nem bebe água nunca.
Arrisco a dizer que é no filler que vemos a veia artística ou a válvula de escape dos roteiristas e produtores frente a essa roda maluca - e em alguns desses ditos fillers estão os mais memoráveis episódios de algumas séries. Espécimes famosos (ou infames, a depender) são o "episódio da mosca" de Breaking Bad ("Fly", episódio 10 da terceira temporada), onde uma notável (e importante) conversa é travada pelos protagonistas enquanto estão à caça de um inseto em uma sala fechada, e mesmo uma sensível e bela recapitulação da vida pregressa de uma das personagens centrais de The Bear, em um episódio que é dirigido por outra das atrizes da série, tal um presente ("Napkins" - episódio 06 da terceira temporada, dirigido por Ayo Edebiri).
Ambos episódios foram bastante criticados - e constato, refletindo, que outra das mais geniais coisas que já assisti, "Atlanta", em suas quatro (porém enxutas) temporadas, é composta por algo que periga ser a metade do conteúdo de coisas que poderiam ser tidas por fillers.
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Madonna (sim, a própria, eis que, inclusive, só há uma) disse certa vez que percebia um videoclipe como um 'poema', em comparação a um filme como um 'romance'. A opinião de Madonna nesse quesito (uma artista musical, mas que possui um trabalho basicamente inseparável do teor visual e estilístico) é importante e pertinente: um clip é associado a uma canção, mas pode inclusive se dar ao luxo de exibir alguma coisa paralela ou mesmo não diretamente conexa, eis que, tal um poema, é tanto uma abordagem quanto uma nova chave de leitura (e não um tipo de romance, porém pequeno). Do mesmo modo que um artigo científico não é um manual menor, ou uma monografia não é uma tese ou um tratado, apenas com um limite de páginas marcado e reduzido. Há um outro ritmo, e com ele, outras possibilidades. Há um core significativamente distinto que reside na proposta que vem com os estilos, o que radicaliza inclusive sua forma de recepção mais apropriada ou proveitosa.
Pensando em um filme como um romance - ou em uma série como um romance em partes ou capítulos - no entanto, é premente que se fuja desse caráter que pauta a questão de forma tosca, a partir do volume, do tamanho, literalmente.
Um romance com 10 mil páginas e 12 volumes não traduz imediatamente grandiosidade, não impõe por si só um tom épico e - doloridamente - não significa nem redunda em pertinência, muito menos em qualidade. Aliás: é um tipo de exercício onde o mais provável é que haja uma confusão entre se ter algo (e muito) a dizer com um singelo dizer muito. Nossa hipotética e interminável saga de 10 mil páginas provavelmente não traz nada além de uma sucessão narrativa modorrenta e arrastada onde, ou um detalhamento ao nível do enlouquecedor da velocidade de descrição da história e seus predicados, ou uma vontade de pura entrega cronológica de fatos, cria um desagradável efeito. É como um mapa que, em busca de algo como o suprassumo detalhístico, é concebido tal uma folha de papel manteiga sobre a cidade inteira, se mesclando a ela por quilômetros e quilômetros cúbicos, para suposto maior e mais fiel espelhar. Um mapa do tamanho preciso do território que visa cobrir, eliminando a necessidade de escalas em prol de uma suposta exatidão mais plena. Ou seja: além de instrumento inútil, como mapa, em si, é um fracasso.
O 'consumo' de 'conteúdo' (pavor dessas palavras empregadas desse jeito nesse contexto) obedece hoje em dia algumas visíveis marcações que não parecem primar pela singeleza e, de fato, se aproximam do léxico dos termos tal como seria dizer 'comer comida' ou 'ingerir alimentos'.
Nessa mistura de público que anseia por ser mimado - como se filmes, livros, seriados e outros produtos tais precisassem também servir tal analgésico - com lucratividade explorada em novos níveis e confins, reside um estilo e uma era de produções que, a mim, ao menos, dá nos nervos. Tiresome.
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"Conclave" tem duas horas de duração. Gostei do filme, ainda que ele traga - como muito já se disse - diálogos óbvios e meio constrangedores que explicitam claramente o tom, a moralidade, o caráter e o papel na trama de cada um dos envolvidos nas cenas respectivas. "A substância" (que achei uma ideia cativante presa - sem trocadilho infame, juro - em um corpo esquisito de execução), tem a tortura de quase três horas de duração onde boa parte desse tempo é gasto com repetições do mote central (que todos haviam entendido já na primeira leitura da sinopse), com flashbacks e outras piscadelas narrativas que, adivinhe?, procuram explicar mais, e mais (e mais) o que já estava explicado.
"Anora", o filme polemicamente (...) premiado com o Oscar, tem mais de duas horas de tela, enquanto que "Wicked", uma espécie de re-fábula em torno de "O mágico de Oz" em versão pré-adolescente, tem cerca de duas horas e quarenta minutos.
Nada dos valores exorbitantes de tempo de exibição desses filmes redunda necessariamente em algo a dizer ou em alguma necessidade de proposta, senão que é basicamente como se às crianças na piscina do clube fossem dados alguns minutos a mais na hora do fechamento, para que elas, já exaustas, façam mais algumas vezes o que exatamente fizeram ao longo de toda a tarde em termos de descer o escorregador. Boring.
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Não há porém nada em termos cinematográficos esse ano que se compare à exaustiva jornada de se assistir a "O Brutalista", um exercício enfadonho de quase quatro horas de duração onde, acho, meu ponto aqui fica mais visível: não há qualquer motivo para a metragem da película atingir esse tamanho, senão uma pura e simples vontade de exploração altamente linear de uma história a ser narrada sem precisar fazer escolhas cênicas pesadas e complexas a ponto de dizerem muito mostrando pouco. É (e esse trocadilho infame veio mesmo, de propósito, aqui, podem por na conta) como uma obra de reforma que é tocada sem limite de orçamento, sem prazo de entrega e, especialmente, sem qualquer fiscalização por capataz algum. Uma excruciante experiência que parece durar não o tempo que a narrativa ou o enredo pede, mas, sim, o que o realizador - externo à tela - quer. E aqui estamos acorrentados a uma tendência que por um lado trata o 'consumidor' dessas vertentes de arte como o legítimo 'consumidor' que o público quer ser e, por outro, tenta usar o mesmo remédio alargando as narrativas sem confins visíveis enquanto espécie de manifesto artístico bobo ensimesmado. Considerando que que o público no geral parece não querer fillers vistos enquanto 'enrolações', nem aceita cortes finais que redundam em notada mão firme de autour, péssima trend.
UM FILME: falei de vários aqui, mas para não residir gosto amargo algum, deixo de brinde uma série que enfoca uma história verídica de quando a ex-membro do IRA Dolours Price resolveu se chocar de frente com as antigas lideranças do movimento republicano irlandês do norte, esquadrinhando toda uma era do discurso da tensão político militar na região. "Say Nothing" (Não diga nada), 09 episódios, zero bullshit.
UM DISCO: Como pensei em jazz (dada indicação de livro abaixo e da, praticamente, monomania do autor em relação ao tema) vou tacar algo diferente, que já tem um tempinho mas que é do tipo de coisa que chega em você e fica - e volta. "Your queen is a reptile" do Sons of Kemet. Faz o seguinte: dá play agora, na primeira música. Eles te explicam o resto no caminho.
UM LIVRO: terminei de ler "O Fim do Mundo e o Impiedoso País das Maravilhas" de Haruki Murakami. Hoje em dia há uma involuntária propaganda que pode ser feita sobre esse livro de 4 décadas atrás, dado que parte do seu enredo tem um viés de ideia encontrado justamente na série...Ruptura! Pretendo falar mais dele em breve, sou fã do escritor e acho que 'capto' algo em seu estilo que pede uma ou outra palavrinha a mais.