Odds
- Gabriel
- há 12 horas
- 9 min de leitura

Lavar o frango. Na pia.
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O esporte que eu mais gosto de praticar na vida (natação) não é algo que eu acompanho enquanto modalidade (fora de Olimpíadas e eventos de similar magnitude). O tipo de 'andar de bicicleta' que eu pratico - misto de exercício com auto flagelo (por vezes) e meio de transporte, literal, não é exatamente ciclismo (que eu igualmente não acompanho, idem), bem como as formas como ando de skate ou pego ondas (com menos frequência do que gostaria), pouco dizem para com a coisa no nível do que a Rayssa Leal ou o Gabriel Medina fazem (gosto de olhar as etapas dos campeonatos onde ambos, mas não se pode dizer que sou um espectador ávido e assíduo). Já um esporte cuja ambiência e desenrolar 'oficial' acompanho bastante - o futebol, que por vezes parece uma praga ou uma (árdua) tarefa imposta sob os ombros tal uma maldição - não é hoje mais (em termos de prática) do que uma lembrança de um tempo que parece de outra vida (se hoje, como em anos longínquos, eu resolver jogar futebol-sete como fazia, a certa etapa, todo domingo, a impressão é a de que eu não apenas vou me ferir como vou morrer na primeira canelada seca trocada ou no primeiro bico de joelho que atingir a planta da minha coxa).
Gosto de basquete também, e não raro me aventuro em praças, seja para treinar uns arremessos enquanto penso na vida, seja para pedir furo em joguinhos de meia quadra que pipocam (se você tiver um grupinho de gente que costuma praticar 'peladas' de basquete no meio de semana, considere me convidar para integrar o bonde). Cansa muito, mas é divertido.
Acompanho o basquete americano (da NBA) com uma frequência e num estilo diferente daquele da maioria dos especialistas de sofá e aficionados em geral: dados (fusos) horários bizarros relativos à transmissão dos jogos, sua quantidade e, especialmente, o fato de que não raro estou dando aula de noite (e com muito sono à medida que fica mais tarde), vivo geralmente, mais de recapitulações, vídeos e cortes de redes sociais e informações do que de acompanhamento ao vivo das rodadas. Os podcasts são grandes aliados nesse quesito.
Escuto liturgicamente um, específico (do qual sou apoiador de longa data), e gravitam em torno dele alguns que gosto também e me suprem eventualmente, semanalmente.
Todos eles são patrocinados por, entre outros apoiadores, empresas responsáveis por gerenciamento de apostas esportivas online.
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(Antes de mais nada não quero aqui proferir uma espécie chinfrim de 'julgamento' pelo singelo fato de que, na qualidade de quem tem um podcast há quase 10 anos, sei bem da tarefa pesadíssima de colocar no ar mais de um episódio/coluna semanal, e tudo de gasto - e desgaste - que está envolvido , e conheço bem o alívio (parcial) que dá quando há algum aporte monetário periódico por alguém que queira oferecer algum tipo de patrocínio. E, ademais: um programa que lide com notícias e análises esportivas parece um nicho que faz muito sentido de ser aliado a esse tipo de produto, admitamos).
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A questão é que por vezes nos perguntamos sobre algumas coisas que parecem girar em um tipo de rotação errada nesse mundo maluco e falamos delas como pequenas catástrofes inevitáveis e alheias quando, na realidade, boa parte do que ocorre, nos surpreende e nos enlouquece, em dada medida, provém de pequenas ou grandes permissividades que a nós mesmos oportunizamos e que nós mesmos ocasionamos. Já falei sobre um pouco disso, sob certo aspecto, aqui
Quando alguém se perguntar o porquê de um número tão grande de pessoas estarem como que em uma draga financeira-orçamentária em virtude de um tipo de promessa fácil de milagre residente em jogos de azar e mitologias de enriquecimento automático, temos que por na mesa o seguinte fator: pela normalização total desse tipo de coisa já como se fosse parte inseparável da essência do que se analisa, já parece que acompanhar alguma modalidade leva em conta necessariamente as odds e outros fatores e linguajar do universo bet como algo intrínseco.
Claro: eu poderia culpar o estágio permanente de crise financeira e o ímpeto idiótico do neoliberalismo em jogar tudo e todos para um buraco negro mental onde é preciso a todo tempo fazer sucesso e ter algum tipo de portfólio para exibir, e o fato de que as pessoas hoje querem mais enriquecer para prestar algum tipo de conta mesclada com autopromoção na web do que para efetivamente terem à disposição bens de consumo ou luxos variados. É estranho um mundo onde você não quer se vangloriar por ter grana o suficiente para alugar uma lancha, usar um modelo exclusivíssimo da Nike ou ostentar um relógio extravagante: o lance parece ser dizer que ganhou, que foi convidado, que está na lista seleta de alguém ou algo. A parada é estar no nicho dos que levam algum tipo de vantagem e duplamente há um recorte e uma distância aqui: o ethos contemporâneo parece não só operar uma clivagem entre dois grupos distintos (os que levam e os que não levam vantagem) como parece constantemente colocando eles em movimento diametral, onde os avantajados se afastam cada vez mais do campo de visão dos desvantajosos - em uma espécie de distanciamento perene que compõe não apenas um cenário onde alguém está melhor do que você, mas onde está, inclusive, correndo uma espécie de juros sobre isso, que te obrigam a se por em movimento de recuperação. Corra atrás da máquina ou fracasse duplamente, fracasse plus, mais-fracasso: alguém se deu bem e você não está fazendo nada a respeito.
Ganhar muita grana talvez não traga felicidade, em si, mas ajuda um bocado a tentar trazer de fora. Nunca havia parado para pensar que essa questão das bets é uma tempestade perfeita: junta a mitologia da sorte grande das loterias (o maior jogo de azar viciante de todos os tempos), com a possibilidade gamificada de uma espécie de disputa mais ativa (não são só bolinhas indicando números a esmo: é preciso algum palpite e alguma inteligência-habilidade) e com o suprassumo ou cobertura fundamental de se poder - se tudo der certo - arrotar vantagem, criando um produto interessante que une misticismo de almanaque com empreendedorismo de perfil fajuto de rede social.
O lance é que eu escutava um desses podcasts que acompanho colateralmente e: lá veio um episódio inteiro falando de prognósticos e palpites para o desenho da próxima temporada do basquete na terra do tarifaço inteiramente lastreado pelas odds e prêmios previstos para cada equipe. Estava só ouvindo, tal uma osmose mental, quando me dei conta de que haviam passados uns 16 minutos onde comentários à moda de ditames proféticos estavam sendo feitos com base única em termos de como estava o balanço das apostas em torno dos times/atletas. Parece uma informação banal, mas: falar sobre a coisa meio que virou isso, em larga escala.
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É interessante como aquilo que chamamos volta e meia de comum é literalmente exemplificado por construções que lhe são refratárias ou avessas em termos de panorama ideológico. A "bolsa de valores" e as odds das bets são exemplos de formas de rentabilidade que causam glória e desgraça na mesma medida em pequenos curto-circuitos no tempo e são exemplos também de como a imprudência com o dinheiro pode custar (literalmente) muito. Mas, também, é inegável: são exemplos de construções sociais baseadas em um binômio de crença-engajamento dos participantes que erigem em torno daquilo uma comunidade com o principal que uma comunidade deve ter, que é algum conjunto ou amálgama de expedientes, verdades, ideias e realidades experienciadas em união, e que são tributárias da confiança geral de que aquilo tem que funcionar. E funciona, enquanto todos mantiverem a crença e não romperem o pacto - para além de eventos catastróficos e outras externalidades. É quase como se você não atrapalhasse a brincadeira fantasiosa das crianças enquanto elas não percebem que você está com a porta semi-aberta, observando. Enquanto a fantasia não for rompida e o grupo partilhar do que está explícita (e implicitamente) combinado e vivenciado, aquilo é real de certa forma.
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Claro: alguém poderia dizer que o jogo de apostas, diferentemente da especulação financeira, não causa, ele, por si só, alguns dos seus resultados (em mais um exemplo fascinante do poder dos comuns e/ou da lógica perversa de sua esquemática ser aproveitada levianamente). Algumas empresas tem um crescimento de valoração meteórica exorbitante, assim como um declínio bruto apenas no papel (ou no cristal líquido). O banco de apostas pagaria muito bem uma eventual vitória do Grêmio frente ao Palmeiras dada a fase, os prognósticos, as escalações e o desempenho esperado para ambos times, uma vez que o triunfo palmeirense é o esperado. Não é culpa da baixa de apostadores a ruindade sonolenta e depressiva do Grêmio de 2025, e sim, talvez, o contrário. Mas, definitivamente, se você não vê nada de errado e nem conectado às mazelas do mundo atual, no fato de que uma partida entre Grêmio e Palmeiras ser, hoje, disputada por duas equipes que abrigam no centro da camisa nomes de marcas de empresas de apostas, sendo as linhas do campo ladeadas por outras logomarcas de outras dessas empresas, tendo a transmissão televisiva do jogo constantes pop-ups na tela exibindo lembretes quanto aos préstimos mais uma dessas empresas e, ao menos dois comerciais ao longo dos intervalos, fazendo anúncios de outras, ainda, - e tendo, todas essas empresas, o resultado desse tipo de partida e seus eventos correlatos como fonte de renda - eu recomendaria um pouco mais de intriga.
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Parece muito mais plural: sai de cena o especialista bufão dos programas insuportáveis de debates esportivos (são como uma espécie de inferno, onde você parece condenado a acompanhar o café pós-almoço de um grupo de idosos senis e diatribes incessantes de discussões todas iguais, repetidas vezes, na mesma semana) e entram os comentaristas de valor prognóstico, que dependem das empresas patrocinadoras fornecerem dados para que algum insight seja oferecido - quase sempre perdendo um quê de formação de opinião e crônica, e virando uma espécie de aconselhamento para usuários da plataforma sobre onde há um investimento mais seguro para aquele final de semana. Sinistro, muito sinistro, diria um narrador antigo.
E assim acompanhar notícias esportivas virou outra história, diante de nossos olhos. É desse jeito, com muitas coisas.
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Em um dos episódios da última temporada de The Bear, Carmy (Jeremy Allen White) tem uma conversa profunda de reconciliação e passada a limpo de traumas, com sua mãe, Donna (Jamie Lee Curtis). Ao fim, ele se oferece para cozinhar preparando sua refeição e opta por um prato de frango. Ao desembrulhar a carne, é alertado pela mãe que talvez devesse lavar o frango, para que 'limpasse' a salmonella. De pronto, ele avisa que a eventual presença de salmonella, que é exterminada no cozimento, se espalharia por toda pia e seria passível de contaminar outros alimentos, com uma inoportuna 'lavagem'.
Entendi como uma piada/referência às crenças absurdas e teorias que pululam pela internet nos últimos tempos, que vão de curas do câncer com gotas de limão até misturas duvidosas de utensílios caseiros para gerar produtos de soluções e propriedades mágicas.
Nunca em minha vida toda vi ninguém lavando um frango, lavei um frango, escutei de que frangos teriam que ser lavados e/ou vi pessoas aconselhando a lavar frangos. Isso não impediu de que nas redes sociais brasileiras, há não muito tempo, esse foi um assunto que terminou como as coisas terminam ultimamente: especialistas alertando para o absurdo inútil da medida e um mundaréu de céticos-conspiradores militantes não dando ouvidos ou aduzindo que suas práticas peculiares sempre 'deram certo' ("I've done my own research").
Como isso de forma absolutamente sorrateira, 'vira' um debate? Da mesma forma que quase tudo hoje em dia: as pessoas fazem virar. As pessoas querem que vire. Ou permitem que se instale, como naquela reclamação constante dos donos de gatos de que estão impossibilitados de trocar de posição no sofá porque o gato se acomodou em seu colo, e dormiu.
UM LIVRO: "A raposa sombria", de Sjón (acho estilo esse nome único que parece um apelido), é uma novela curta muito elogiada desse escritor islandês que transita sempre entre a fantasia, a fábula e a descrição sarcástica. Confesso que deu vontade de ler porque a sequência inicial - onde um caçador persegue uma raposa de um jeito meio onírico no frio do Ártico - combina bem com mais uma massa de ar frio (já até escrevi sobre como não aguento mais isso) que faz despencar as temperaturas no Sul, para meu desespero.
UM DISCO: O disco não veio ainda - diz o Spotify que em 22 de agosto, nos criando um novo tipo de urgência a respeito do 'pré-save' de alguma coisa. Mas gosto muito de Deftones e a julgar pelo atual single - com "My mind is a mountain" e a aduzida hoje mesmo, "Milk of the Madonna", o álbum "Private music" vem numa pegada de nível das coisas que fizeram a banda gerar um público cativo, mesmo com coisas bem irregulares na discografia.
UM FILME: não é filme, mas venci mais uma temporada da já referida "The Bear" esses dias e confesso que estamos chegando naquele limite que a série só persiste porque parece rentável, embora sem nenhum motivo intrínseco ao roteiro para isso. Ao contrário da maioria das pessoas, não vi problemas na bastante criticada terceira temporada, ano passado, fora o prenúncio de que o rumo é esse. Espero, sinceramente, que a próxima e previsível 5a encerre a história - e a exibição - de alguma maneira. Fica, contudo, o carinho pelo ajuntamento mais disfuncional porém mais amável de personagens já visto em um roteiro. A sequência do episódio do casamento e praticamente todo o elenco sentado em baixo de uma mesa para convencer uma garotinha a sair de lá é adorável.