
Se você estiver lendo isso nessa exata data em que foi publicado o post, eu - após uma semana onde tive compromissos intensos em todos os turnos de todos os dias e fiz três viagens (o que me faz questionar se algum dia novamente eu conseguirei dormir até algo como depois das 08h na minha vida), já participei de um evento jurídico como palestrante/debatedor e já dei uma entrevista numa rádio. Ah: e recebi um e-mail da firma me parabenizando pelo meu 'aniversário' de prestação de serviço. Trabalhe com o que você gosta e - tenha material para textos de blog
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Como em muitas pessoas que viveram a adolescência ao longo da década de noventa, o Nirvana teve muito impacto na minha construção de identidade, à época. A combinação mais manjada do mundo (bateria, baixo, guitarra, gritos - em uma verve juvenil frenética) fez sentido para toda uma geração de um modo tal que até hoje não sei se minha captura pessoal não exagera no quão agudo e pertinente parecia tudo aquilo. Até porque diferentemente de outros ídolos pop fáceis (mormente no período), Kurt Cobain exalava dor e desespero de uma maneira que pouco parecia jogo de cena e se aproximava de uma espécie de pedido de ajuda que tristemente se concretizou da pior maneira.
Era muito chocante e magnético, tudo, mesmo que algumas das referências não eram inéditas para quem tinha o estilo de sede típico desse tipo de informação e imagética: a postura no palco, o charme autodestrutivo, o niilismo, os cabelos na cara cobrindo o rosto de modo até meio infantil (tão clichê, tão importante), as roupas casuais anunciando uma nova forma de se ilustrar uma 'estrela' no imaginário e, além disso, aquilo que mais me impressionava, à época, que era a cena do vídeo de "Lithium" (repetida algumas vezes em outras apresentações), onde Cobain em dado momento se arremessava de forma inconsequente à bateria montada no fundo do palco, como se já prenunciasse que queria, mesmo, se desmantelar inteiro e sumir daqui. Lembro também sem muito júbilo de uma ou duas vezes que eu e colegas de colégio empilhamos cadeiras no fundo da sala de aula e tentamos com sucesso imitar a sequência (com sucesso em ganhar escoriações e em ter certeza que, ao cabo, era uma ideia de merda, que fique claro).
Há muitas formas de ler a morte de Cobain e a peça artística, assim digamos, do fato, aliado à carta de despedida que consegue respirar alguma pieguice e também ser algo à moda amarga de suas canções. Lembro de um texto sobre o tom urgente e urbano do Nirvana, e da poesia de seu principal integrante, e do golpe de realidade bruta que eram suas faixas terminando sempre sem fade ou efeitos tais como era a voga dos anos 90 e dos respiros finais da moda do hard rock megalomaníaco: a faixa acaba quando os instrumentos param, por vezes em algum reverb que parece desleixo ou equívoco da engenharia de som, tal em "Heart shaped box" ou na menos cotada "Big Long Now" - como se alguém deixasse microfone e amplificador ligados além do momento ensaiado. O fato é que há uma banda ali. Há algo ali que executa uma canção, doa as tripas pela garganta, transpira, se despenteia, e encerra. Não há um efeito 'espiritual' de voz como no emblemático encerramento de "Don't cry" do Guns n' Roses (a última grande banda do período comumente tido por encerrado por Seattle), um fechamento que combina com orquestras e sua renderização quase simbiótica em videoclipe épico. As músicas do Nirvana simplesmente acabam, como se alguém não depositasse a ficha para seguir ganhando créditos na máquina.
A música termina auto evidentemente, quando encerra seu curto ciclo catártico-pessimista.
Lembro de ter um compromisso que não recordo especificamente qual é, e de ter que pegar carona com a minha mãe naquela manhã (dentista? médico? supermercado?) em que fui acordado por ela com a notícia dita da seguinte maneira: "o cantor aquele, que tu gosta. Ele morreu. Se matou". Gostava de vários cantores, mas sabia de quem se tratava, no ato, sem precisar de maiores pistas. Era quase óbvio, bastante previsível e - algum(a) psicanalista online? - desejado, em certa medida.
Há algo engraçado, e reside no fato de que esse texto não é sobre o Nirvana
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Na época do final adequadamente óbvio para cristalizar Cobain de um jeito meio contraditório na galeria definitiva de um mainstream contra o qual ele dizia querer lutar e que tinha sucesso em sabotar (isso não se pode negar) não raramente em seus dias finais, uma série de comentários de críticas culturais especializadas se misturavam a opiniões soltas ao vento que prenunciariam e se debruçariam confortáveis nos fóruns, chans e redes de hoje: não faltaram teorias conspiratórias que alegaram um suicídio forjado para encobrir um homicídio - Courtney Love, a esposa, à época, como sempre (...), alvo usual de acusações de vilania para uma parcela imensa de fãs, aquela coisa - algumas evidências fake, muito choro, a busca incessante pelo novo herói a ser extrativizado e, não raro, comentários rasos sobre como alguém com uma quantidade planetária de fãs, discos vendidos, dinheiro e acessos variados a prazeres variados poderia ser, algo como, 'infeliz'.
Mais: como alguém que ganha a vida levando pessoas ao êxtase delirante apenas com sua presença em um palco pode rançar se dizendo enjoado disso?
Bem.
Guardadas as proporções, todas elas, estou entrando no meu 18 ano efetivo como professor universitário, tirando algumas experiências não oficiais e sem carteira assinada que pipocaram algum tempo antes. E sempre acontece uma coisa engraçada quando eu vejo que há mais de uma vez na grade semanal a necessidade de eu lecionar a mesma disciplina para turmas diferentes de mesmo período/semestre.
Nesse seriam três, como em outros anos já foi - alterações emergenciais na grade substituíram uma e terei 'apenas' duas repetidas.
A forma da instituição onde trabalho envolve um campus central e uma multiplicidade surpreendente de campi descentralizados que percorre um perímetro considerável da região (a mais próxima, é tal um bairro afastado, um pouco, da cidade. A mais longínqua requer uma viagem de 1h30 de estrada promovida pelo instituição com transporte oficial). Volta e meia me pego pensando em estratégias para manter o mesmo grau de vibração em turmas, campi e cidades diferentes, procurando, ao mesmo tempo, emparelhar a matéria em todas elas para fins de organização (e sanidade).
E aí vem a questão: magicamente (ou tragicamente) como em alguma turnê de rock, há performances e performances. Há lugares em que a empatia é sentida palpável no ar desde o primeiro bom dia/boa noite. Há lugares em que desde logo se percebe difícil, a coisa. Há lugares em que o fluxo é tão leve que aparentemente qualquer sorriso e gracejo funcionam. Há outros que começa haver um desespero para quebra do gelo que se acentua quando tudo parece fugir do script e nada do que é dito ganha encaixa ou dá liga.
Há dias em que me fazem sentir particularmente divertido e outros onde só consigo ter vergonha por bancar o bobo. Há noites que não passam, manhãs que passam voando, turmas onde pontos de interesse no discurso são diametralmente opostos aos de outras, e onde certas teses e reflexões fazem sucesso absoluto - as mesmas que foram um rotundo fracasso ou caíram no vácuo mortal do desinteresse, em outros.
Lidar com a mesma disciplina é lembrar de ter que abordar os mesmos tópicos e deixar de lado igualmente os mesmos menos importantes todas noites. E, dolorosamente, é repetir absolutamente tudo, procurando dar à pessoa que está vendo aquilo pela primeira vez a mesma sensação e colorido que receberam as outras nos outros lugares onde você já fez aquilo, na mesma semana.
Essas 'turnês' são a partícula microscópica de possibilidade de alguém como eu se sentir um rockstar - somadas ao fato de que é estranho pensar que parte grande do meu trabalho consiste em me postar em frente de um grupo de pessoas (por vezes, uma pequena multidão) e dar o meu 'show' e perpassar meu 'repertório', preferencialmente de forma equânime para cada público, faça frio ou calor, estando eu resfriado ou preocupado com algum assunto extra, tendo acordado em um dia bom ou terminando uma jornada péssima, nesse palco onde o cara se apresenta várias vezes por semana, trabalhando a partir da hora em que as pessoas comumente chegam em casa.
Há vezes em que ninguém nota nada (se o cara está um farrapo de cansaço, destruído por alguma questão pessoal/familiar, gripado, com enxaqueca) e o 'show' corre tranquilo. Há vezes em que é sofrivelmente visível que a coisa está mal - e ocorre de algum hit do setlist ser apresentado da forma mais fraca e opaca ou mais enérgica e apaixonante, para duas 'plateias' diferentes, em uma questão de um dia (uma oportunidade que não voltará naquela tour, para o bem e para o mal). Ao final, você se atira na poltrona do ônibus, van, carro/viatura, avião, o que seja, para festejar e permanecer elétrico, ou como quem clama por algum tipo de anestesia geral sem saber bem qual a próxima parada, lugar, cidade.
Aquela pergunta, sobre como alguém pode ser infeliz (em amplo espectro) ou se aborrecer, se sua tarefa é apresentar seu material, proposta, 'ideias' para uma audiência não raramente sedenta e complacente só pode (é trivial, eu sei) ser respondida de dentro. Sem metáforas, agora: logicamente há (por pior que seja algum eventual cenário), ainda, sim, muito do romantismo e da aura de se dar aulas, palestras, conferências e estar em evidência em alguma arena ou púlpito sob olhares de pessoas que, em alguns casos, foram ali por sua causa. Já fiz isso ao longo de todas as regiões do Brasil - todas mesmo - e mesmo fora do país ('turnê' internacional que já passou pela Europa e América Central). E parece por vezes que isso rivaliza com a questão central que precisa volta e meia ser lembrada: dar aulas, emplacar opiniões e teses, ser admirado por reflexões e colocações - e mesmo tocar guitarra e se arremessar no kit de bateria - não escapa da condição essencial de ser: trabalho.
Há algo distinto e quase místico na manifestação artística que mescla ela a uma série de chaves de leitura que quase encobre a questão do ofício, do trampo. É gozado dizer (pense, ou fale em voz alta), mas Caetano Veloso está (entre outras coisas) trabalhando quando proclama sobre areias e os automóveis (de Roma). Em meio aos closes, carões, stilettos e jatos de fumaça prateada, Beyoncé está trabalhando. Há - ainda que em grau desprezivelmente menor do que em nós, compositores da massa denominada peonada - um não totalmente desconsiderável fator de saco cheio atinente a qualquer (qualquer) labuta.
Os milhões de dólares, o enaltecimento fanático e o glamour para com os artistas das multidões, faz par inusitado com platitudes a respeito de vocação e 'amor' (de forma um tanto similar também àquela que obscurece a questão do trabalho doméstico e reprodutivo feminino) que pautam por séculos a visão de um profissional docente como alguém que está mais fazendo algo por si e por seu júbilo, ao lecionar, do que ter um ganha pão que carrega toda a gama da problemas específicos e uma série de tristezas e momentos inglórios latentes.
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Estou com sono. "Vovó, me leva para casa"
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UM DISCO - seria muito anticlimático não mencionar algo do Nirvana aqui. Para além de obviedades como "Nevermind" ou o clássico e fino desde o momento do lançamento, "Unplugged", pediria atenção para a coletânea de outtakes e lados b "Incesticide", onde parece possível ver uma banda com um core e uma proposta altamente surreais em relação ao seu sucesso planetário unânime. Fora de tentativas bobas de separar o que seria o 'verdadeiro' Nirvana (distorção, autodestrutividade, apatia), daquele que atingiu o mainstream via MTV, podemos considerar eles como uma das bandas mais estranhas e avessas que mudou o mundo enquanto fenômeno para além de si.
UM FILME - fiquemos por aqui: "Montage of Heck" é um documentário biográfico sobre a vida de Kurt Cobain cercado de material inédito (à época, 2015) do próprio Kurt desde sua infância e das primeiras manifestações genuinamente artísticas na adolescência. É - aviso - uma das coisas mais deprimentemente tristes que você vai assistir.
UM LIVRO - faz um tempinho já que li "O som do vermelho", novela de Catalin Partenie que narra as agruras de jovens que tinham um sonho roqueiro na Romênia do melancólico apagar das luzes do regime Ceaucescu. Dentre os governos mais toscamente rígidos da antiga 'cortina de ferro', os derradeiros dias daquela Romênia encontravam tensão extra em relação ao que uma juventude rebelde e naturalmente perdida frente a ausência de perspectivas. Uma guitarra pode significar algum lugar seguro.