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  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 3 de jan.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 4 de jan.




Na reta de praia frequentada pela minha família desde que me conheço por gente (um caminho que ia desde a antiga casa - e atual apartamento - dos meus pais, cruzando pela da minha vó, já destruída), passávamos por um antigo farol que eu ainda peguei funcionando quando pequeno, hoje desativado em prol de um maior, alguns quilômetros ao norte (e já são três coisas demolidas/descontinuadas no espaço de um parágrafo, veja você o quanto o tempo e o capital são implacáveis).


O farol, hoje mal e mal percebido por quem passa pela praça onde ele se edifica, foi transformado por um tempo em um espécie de luminária tristonha, cabide de alguns enfeites mequetrefes de natal do município, e agora só está ali, parado, como um monumento sem sentido.


Faróis são românticos, em todos sentidos do termo, em especial ao evocar uma espécie de nostalgia de um mundo que só conhecemos nas sugestões e imagens ficcionais.


Lembro de Jorge Drexler, usando uma ideia singela e apelativa, mas certeira, apontando que (assim como o sistema de funcionamento e funcionalidade dos faróis) para nos encontrarmos, temos de nos perder: as luzes são todas iguais. O que importa é o código inscrito no ciclo de emissões. Um farol indica algo nos seus segundos de escuridão, não no facho de luz.


Por vezes não queremos encontrar é nada. Por vezes queremos fugir do anúncio, do lugar, da região, de alguém.


Esse texto é sobre medo. E fuga.


*****


Éramos amigos, naquele tipo peculiar de relação que existia e só poderia existir num tempo (hoje inimaginável) sem computadores, celulares, internet ou redes sociais: as crianças de cidades, regiões, colégios e vidas apartadas que dividiam costumeiramente a mesma zona durante os períodos de veraneio. Todo um ecossistema de comunhões sazonais impensável na era da hiperinformação e da ultra conexão. Haviam pessoas em nossas vidas exclusivamente 'de temporada', como algumas frutas (nem isso mais, hoje com a modificação genética que mais parece uma compulsão impaciente de consumidores mimados perigosamente).


Ele, com um ano a mais que eu, seu irmão, com um a menos, e toda uma patota que era composta por meus primos e alguns outros amigos (e amigos de amigos) dessa modalidade temporária. Fazíamos coisas de criança, de pré-adolescentes e de adolescentes que éramos e fomos: jogávamos bola (em especial "três dentro/três fora" - a modalidade alternativa de futebol onde é estranhamente prazeroso ser goleiro), pegávamos jacaré nas ondas cavadas de dias de chuva, corríamos como loucos pela orla, comíamos picolés - que o tempo sugeria serem melhores e mais saborosos naquela época.


Um dia, uma notícia: a família do rapaz (que ocupa um apartamento térreo contíguo a onde minha avó veraneava) não viria esse ano de sua cidade interiorana no centro do estado para a praia. O rapaz, o mais velho, foi acometido por algo até hoje por mim desconhecido, mas, de fato, alguma doença gravíssima. A previsão era de que não sobreviveria. Como sói naquele tempo, informações eram escassas (as mães não tinham Facebook para trocar memes bregas nem para postar fotos não autorizadas pelos filhos, muito menos grupos de whatsapp no estilo 'Amigos do Posto 82' ou algo que o valha). O que se sabia era que o abalo familiar era tamanho e a necessidade de cuidados do rapaz, idem. Hospital, UTI. Coma.


Em meados do ano seguinte, aquele esquema de engenharia social que conecta conhecidos de colegas de parentes distantes de vizinhos - ou algo assim - trouxe um fiapo de notícia: o rapaz havia, a muito custo, sobrevivido e a expectativa agora é que resistisse muito embora em um tipo de estado vegetativo. A família voltou a frequentar o apartamento no ano seguinte e a situação era justamente essa de transportar o rapaz de olhar perdido em uma cadeira de rodas a distâncias não muito fora do perímetro da varanda onde ele ficava "tomando sol" de forma não exatamente ativa.


Mais um ano, mais um verão, mais uma temporada da família abrindo as portas de correr da varanda e agora o rapaz - um tipo de milagre - já caminhava com dificuldade, falava, interagia e parecia vivo, agora oficialmente, mais uma vez. Como um personagem de ficção que teve a energia sugada por algum tipo de força maligna, ele parece ter envelhecido décadas em três anos. Os cabelos muito loiros agora estavam ralos e esbranquiçados. A pele, alva, agora parecia um couro opaco e flácido. A estatura notável já não intimidava nem admirava mais ninguém, uma vez que ele passou a ser dotado de uma fragilidade que se exibe indisfarçável a quem olha. Presa indefesa. Os olhos ficaram fundos e as sobrancelhas mais protuberantes, dado que sua magreza parece ter puxado a pele com força pela nuca, como que para ajustar ela mais ao osso craniano.


Via tudo isso, mas à distância.


Nunca mais passei por aquele trecho de rua. Simplesmente tenho medo de ser por ele avistado por um motivo que pode ser o mais bobo, mesquinho, infantil e quiçá egoísta do mundo: tenho comigo uma impressão que o fato incontornável de que minha vida seguiu, normal, o ofenderia. Mais: o iria agredir de alguma forma. Sinto culpa por ser uma pessoa que não derrapou até agora em curva nenhuma improvável tal alguma doença bizarra que parece uma punição randômica, como se me exibisse, afrontoso, em sua frente. Medo. Prefiro não. Fuga.


Volta e meia me dizem que não aparento ter a idade que tenho - de forma obviamente elogiosa. Ele jamais vai ouvir isso, uma vez que a menção clara seria oposta: quando por vezes passo (pelo outro lado da rua) penso que uma pessoa que não conhece a família certamente vê ele, a mãe e as tias como se fossem idosos (irmãos, talvez) conversando amenidades. Ele tem quase a minha idade. Repito que pode parecer estúpido e muito ridículo de minha parte isso tudo, e o simples aceno de um antigo rosto amistoso pode muito bem trazer conforto e memórias boas a alguém, mas tenho um pavor absoluto de pensar que minha altivez, meu viço ou simplesmente meu caminhar ritmado - normal - pode causar algum tipo de ofensa, ressentimento, angústia ou arrependimento (daqueles que sofremos pensando que tipo de escolha distinta talvez fizesse alguma diferença no desenrolar de tudo). Penso se meu sorriso o afrontaria, especialmente após passar pelo pequeno perímetro que se tornou quase todo seu universo e seguir adiante rumo a algum lugar. Um lugar. Qualquer lugar. Vida passando pela sua frente enquanto algum ponto do destino o multou sabe-se lá porque, de forma a condena-lo perenemente a abrir mão de (quase) tudo o que essa mesma vida poderia ser.


Será que ele sente alguma raiva das pessoas que passam, indo a lugares, numa própria simbologia quanto à vida que ele se acostumou a ver passar como um pagante, da plateia ou arquibancada barata e afastada do palco, o mais distante possível de algum protagonismo? Será que isso diz mais sobre mim do que sobre esse 'ele' hipotético que imagino completando as lacunas do que vejo em um corpo fragilizado em uma varanda? Estaria eu fantasiando - para a tragicidade - uma coisa que ele leva mais de boa do que aparenta?


Até quando vou fugir e terei interditado um lado da calçada de um trecho de rua? Devo cruzar essa barreira e romper essa neura? Estarei eu - há alguma possibilidade, enfim - certo, e devo seguir sendo uma espécie de memória interrompida, personagem de um filme bacana que nunca teve continuação, reboot, série revival da Netflix para não evidenciar ainda mais a desgraça dessa serenidade forçada onde ele foi arremessado pelas circunstâncias?


Até lá, sigo fugindo.



UM FILME: quero muito ver a nova versão do "Nosferatu" pela lente de Robert Eggers - até para apagar o gosto ruim que ficou com aquele "Homem do Norte" onde parece tudo no roteiro e na montagem apressado e sem acabamento (como se ele tivesse algo tipo um material de cinco horas e uma inteligência artificial mal calibrada fez cortes em cima da hora para a versão final ter duas). Do anterior, ora, ora, "O Farol", gostei demais. Porém recomendo mais do que fortemente que todos assistam - antes - "A Sombra do Vampiro" de E. Elias, Merhige, 2000, e sua genial premissa que cobre as filmagens do Nosferatu de F.W. Murneau (John Malkovich) mas imaginando que o ator Max Schreck (Willem Dafoe) seria de fato um vampiro. Magnífico é apelido.


UM DISCO: estou escutando "Todo me recuerda a vos", disco da banda argentina - radicada no México - Surfistas del Sistema (péssimo nome, mas, enfim). Sobre o Drexler (citado no inicio desse post com seu disco de 2006 cujo título evoca a metáfora do farol) um amigo me disse certa vez que a crise era tamanha que o melhor artista da MPB era uruguaio. A premissa parece válida: uma boa banda de pop rock BR atual é argentina (radicada no México). Se não vale por outro motivo, vale para você refletir sobre como figuras de linguagem em baladas românticas parecem diferentes em outra língua.


UM LIVRO: dia desses diante de mais uma improbabilíssima versão de 'Halellujah" de Leonard Cohen como se fosse uma canção religiosa tradicional (Péricles cantando em especial natalino de televisão), lembrei e dei uma folhada a esmo, sem compromisso, no "Energy of Slaves", do homem. Muita coisa ali, e mesmo algumas tentativas e exercícios meio pretenciosos e ruins. Mas muita coisa genial, idem, como sói. Poesia que não é meio provocativa me distrai fácil. Não reli todo, não lembro se há algum poema sobre faróis.



  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 27 de dez. de 2024
  • 6 min de leitura



Quando Deus desenhou faixa litorânea do Rio Grande do Sul, ele tava namorando.


Sim, dado que é a única explicação para algo ser tão terrivelmente filler sem nenhuma peculiaridade, a não ser que o responsável estava fazendo algo mais importante e deixou a tarefa naqueles instantes com o estagiário menos experiente que meteu um copia e cola ali porque era quase 18h e o setor já estava quase vazio.


**


Lá estava eu sentado na minha funboard (7,0ft) meio à deriva sacolejado por vento, em um flanco, e princípios de elevações vindos de todos os lados, por outro, que, paradoxalmente, não pareciam ter permissão para se erigir e quebrar. Ondulações inconstantes de um modo triste que parecem adquirir força apenas quando próximas de um banco de areia muito raso, porém o suficiente para formarem uma espécie de gancho oco que não permite nada além de uma fuga - se você for sensato - ou uma viagem ao fundo do mar (nesse caso bem raso), temperado por uma areia que é áspera o suficiente para assar e arranhar sua pele, e desagradavelmente sneaky para entrar nos recônditos mais profundos do seu calção e nas dobras mais desconhecidas do seu corpo. Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, Brasil, em um dia típico.


Uma merda, se quisermos usar a concisão propiciada pela língua de Hugo Mãe.


Por vezes eu penso como uma vastidão dessas consegue promover um espetáculo tão tristonho quando o mar típico de Capão da Canoa do ponto de vista de alguém que quer pegar onda. Por outras, pondero que é essa mesma vastidão que permite justamente isso: quilômetros e quilômetros de design natural de baixa qualidade, como final/limite de cenário de jogo de video game (onde em algum momento a repetição contínua do mesmo padrão anuncia - educadamente - a você, que não, não há nada ali, por favor volte e não nos constranja a ter que bloqueá-lo com uma parede invisível). Ou seja, nenhum acidente geográfico, nenhuma enseada, nenhum morro e/ou falésia, nenhum recorte digno de nota no solo. Apenas uma vastidão em linha reta de areia e uma vastidão equivalente de mar que acompanha a linha reta a perder-se de vista para os lados e igualmente para fora.


Um abandono apavorante, especialmente em dias de mar mais revolto e céu escuro. Um sem fim que -em algum momento- dá com a testa na África se você for em pretensa linha reta.


Fiquei em um brainstorm rabugento por alguns instantes, e logo me veio um tipo de pensamento ou piada de consumo interno que sempre é acionada, como uma secreção ou hormônio de uma glândula, nessa hora: "sabe onde está pior de onda? no Rio Guaíba" - e ato contínuo uma mensagem default no meu cérebro me mandando aproveitar, apesar de tudo.


Porém nesse dia me ocorreu algo meio incomum e vergonhoso, ainda, de tão piegas: se um dia alguma condição física inesperada - ou mesmo a idade - me impedir de surfar, eu olharia com saudade e ternura mesmo para os dias de caixotes fechados e ondas funcionando na meia bomba no mar mexido de Capão? "O que eu não daria para", como quem sente falta de alguém, traduzida em vontade mesmo de comer um prato preparado com falta de talento e esmero pela pessoa. "Bons tempos aqueles".


Lembrei, como quem toma uma vacina, do conceito nietzscheano do eterno retorno e do fato de que é um elemento de debate poderoso nessas horas. Nietzsche podia ter (em realidade tinha, é sabido) vários defeitos (a lista é grande). Um deles definitivamente não é a associação "nazista" que fazem a partir de compilações apócrifas e de encaixes pouco eruditos de algumas de suas críticas ao establishment judaico-cristão (como se fossem um antissemitismo vulgar) e de sua exaltação da força e do padrão germânicos como um respiro de imposição vitoriosa helênica de outrora. Há, de fato, em sua obra, uma possível construção de ambiente para que a insolência seja veículo de um individualismo que se pretende amoral (mas geralmente atinge apenas um padrão cínico e deturpado, e só), mas dificilmente cruel do modo sistemático e consciente pura e simplesmente de um fluxo de campos de extermínio ou algo que o valha.


Os personagens daquele que para mim é o melhor filme de Hitchcock, "Festim Diabólico" ("Rope", 1948) recitam uma fala assumidamente "nietzscheana" ao final para justificar seu escabroso plano - numa apropriação deprimente de uma ideia em uma obra cinematográfica tão incrível (embora não se possa, novamente, dizer que não é um dos rumos possíveis que a aplicação dos preceitos do filósofo pode atingir).


Mas: o eterno retorno.


A passagem que sempre me captura e fascina. Uma apropriação completamente inversa da pieguice do "você um dia vai sentir saudades de" ou "você ainda vai sentir falta do". Uma apropriação da mesma figura hipotética, mas sem um jugo moralista-franciscano com um tom nada leve de ameaça em prol do contentar-se. Um convite diferente.


Esse destino, que se descortina à sua frente (e igualmente às suas costas - eis que cada momento vivido carrega todos os anteriores e está grávido de todos que virão): você o afirma? Você toma as rédeas dele e o pratica, como quem o vivencia? Nietzsche nunca falou de resignação. Pode até ter dado aquele que é - paradoxalmente - o primeiro grande conselho de auto-ajuda como a conhecemos hoje, de fato (viver de forma a fazer coisas que, se se repetissem, eternamente, você as afirmaria, de novo e de novo - o 'eterno retorno' como esse compromisso ético é a interpretação que vários estudiosos da obra nietzscheana, inclusive um dos maiores, Roberto Machado - R.I.P. - propõem). Mas há uma inversão interessante de leitura: não viver como se acorrentado tristemente a um roteiro. Vivenciar o roteiro, que não acontece sem o protagonista. Afirmar o que se vive. Ir em direção a esse destino como Édipo alertado por Tirésias, na tragédia famosa, uma vez que ele se coloca diante.


Não há que se paralisar, no presente, por uma promessa de nostalgia (futura) em razão de coisas ruins (ou menos piores do que poderiam ser), no passado. Não há que se 'contentar'. Há que se domar o agora. Vivê-lo. Pratica-lo. Ele é seu futuro e seu passado. Não simplesmente o 'aceite'. O assuma.


Praticar o agora. Afirmar o que se é, para tornar-se exatamente isso.


Ergueu uma ali - milagre. Começo a remar. Fui.



UM LIVRO: dia desses minha prima ganhou de presente do marido o livro "Cozinha Confidencial", a, digamos, biografia do Anthony Bourdain. Fui informado por ela disso e sorri. Estou escrevendo isso olhando para a mesma sacada onde li boa parte dele e onde o finalizei, depois de tristemente ignorar muitas recomendações durante muito tempo para mergulhar na obra - que é rápida, mas repleta de emoção e histórias. Acho que você também deveria se dar esse presente (é clichê usar essa frase, mas é real. Ela vai te dar vontades). O mais legal é que Bourdain era o tipo de cara que permite que todas aquelas histórias sejam tidas por verdadeiras, em que pese ao fim do livro, deliciosamente, ele mesmo desminta algumas coisas - e/ou é desmentido após conversas com as mesmas pessoas, porém sóbrio.



UM FILME: não é bem um filme. É uma série. E já que estamos pervertendo a dica, vamos perverter de vez. É uma série. De animação. "La Frecuencia Kirlian" é uma pequena maravilha em duas temporadas onde o argentino Cristian Ponce nos oferece uma das melhores peças de ficção científica já criadas, e sem a limitação de filmagens, atores e efeitos práticos. O desenho (propositalmente estático, meio tosco e mal acabado como um rascunho em vários momentos) é um charme só. Na estação de rádio da "frequência Kirlian", um locutor misterioso recebe telefonemas e conta causos a respeito de um vilarejo perdido no interior argentino, mas que, aparentemente, é o centro do universo e seus mistérios.



UM DISCO: andei reescutando o disco "Jesus ñ voltará", de 2023, do artista cearense Mateus Fazeno Rock. Considero esse rapaz um dos maiores talentos surgidos no país em muito tempo. Seu som não é "eclético", naquele adjetivo meio aborrecido de quem não se decide e quer agradar gregos e troianos. Seu som é verdadeiramente misturado e consegue a proeza de meter uma crítica social 'foda' à moda rap-canto falado enquanto a banda toca algo digno de Black Sabbath ("Jesus ñ voltará"), um incrível pop-MPB que gruda, forte ("Pode ser easy" e "Indigno love") e um dos funks-batidão mais bonitos do mundo ("Da noite" - que é batidão, mas sem batidão, e, sim, acompanhado por palmas). Sério, vai nessa.

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 20 de dez. de 2024
  • 7 min de leitura

Final de ano, aquela coisa: convites abundantes e (quase) impertinentes para eventos massivos que envolvem comilanças e beberagens fora do prumo normal e causam um certo pânico em algumas pessoas. Bom dia, meu nome é Gabriel e eu sou um desses ("...Bom dia, Gabriel...")


Diego Maradona disse certa vez que não existe um ex-viciado em cocaína, e, sim, um viciado que luta diuturnamente para vencer (por uma sucessão sudorífera de instantes) essa condição.


Lido de modo parecido com comida.






Muito disso, hoje em dia, tem um orgulhoso caráter que gira em torno de saúde e meus planos quanto a esse fator, mas obviamente envolve também uma questão psicológica de autoestima. Na foto acima, tirada na Ilha do Mel-PR, ao lado de um grande parça, visto uma camisa dos Ramones que comprei pouco tempo antes, em 1994, na lendária Megaforce da galeria na Avenida Independência, em Porto Alegre, e encontrei em um armário na casa de praia dos meus pais esses tempos. Ainda me serve - embora em algum desses 30 anos, não me serviu.


A memória que tenho, vívida, desse dia, é que eu não queria tirar a camisa, porque, na minha cabeça, eu era gordo e ia pagar mico para as gurias. Vi as fotos dessa viagem várias vezes, mas foi meio que recentemente que atentei para o fato de que eu era positivamente diferente do que eu tinha certeza que era.


***


Eu ando volta e meia de 'dieta'.


(ou algo que o valha)


Um pouco por necessidade, um pouco por uma espécie de profissão de fé assumida, um pouco pela minha ânsia quanto à escassez.


Eu explico: quem já ficou liso, sem grana, conhece um tipo específico de pavor que não desejo a ninguém. Some-se a isso (ou cria-se com isso, não importa) uma verdadeira compulsão por manter reservas, fundos de emergência, segurança, paraquedas, botão do pânico. Em tudo na vida, com algum pesar e um tanto de constrangimento, deixo para lá a cigarra artista fala mansa/boa vida e assumo que sou mais para formiga. Sim, a formiga. Sim, eu sei, aquela formiguinha meio reacionária, vingativa. Formiga filha da puta que pune a cigarra pelo seu viver leve, usando a ética protestante do trabalho como fator moral. Superioridade. "Eu te avisei" - a frase predileta de homens brancos hétero de uma geração ou duas acima da minha, dita com gosto repartido entre a inebriante sensação de estar certo e a inconfessável e prazerosa constatação de que o outro foi por conta própria, e se deu mal. A formiga é a vilã da história, escorada em sua suposta prudência que dá azo à fábula.


Sou fanático por reservas, provimentos, mantimentos. Por vezes tenho medo que o orçamento do meu time de futebol do modo franquia no videogame tenha que inflacionar salários demais e vá à falência. Controlo o budget de duas, três temporadas para frente. Vendo jogadores pensando no longo prazo. Esquematizo, à moda da governamentalidade (ironia).


Quando completei 40 anos (há 5 atrás, portanto) decidi que ia levar a sério as questões de saúde, forma física e bem estar como em nenhuma outra etapa da minha vida. Brincando, mas com uma ponta de desespero flagrante, comparo com uma bifurcação na estrada onde em um lado do y estaria um caminho adornado com uma placa dizendo "vamos tentar mais 40?" e outra, na mão oposta, refletindo os dizeres "o que vier é lucro". Optei pela primeira, sem qualquer garantia de nada, mas com prognósticos baseados em prudência formiguística. A reserva aqui é de tempo. Alea jacta: tudo incerto. Um raio ou um bêbado que troca de pista, amanhã ou depois, periga abreviar tudo. Coisas que surgem sem mais na maquinaria inacreditável do nosso corpo, idem. Mas: é infantilóide dizer que esses fatores fazem com que não se tenha que tentar e simplesmente se lançar em um destino randômico que parece aventura ao sabor do vento, mas é uma inconsequência medrosa, na real. Estocar tempo - como vento na célebre passagem da Presidenta (que estava corretíssima). Ganhar qualidade de vida. Se sentir bem. Perseguir o sonho dourado da humanidade que consiste em uma velhice dotada ao mesmo tempo da sabedoria do Diabo dos anos - tal a advertência de Martin Fierro - e de (algum) vigor físico que não torne o mero levantar da cama uma tormenta.


Sim, faço dieta e exercícios constantes mais para tentar equilibrar algo no organismo do que eventualmente para querer ser algum tipo de modelo fitness fisicultor à moda que anda em voga hoje em dia que não sou e não tenho a menor vontade e saco de querer ser.


Nem tudo são flores, bobagem e ilusão bad trip: por vezes me achei gordo e malcuidado, e estava. Por vezes inclusive estava pior do que eu achava, no quesito. Tem gente que tem facilidade para muita coisa (língua estrangeira, crochê, pintura). Eu tenho, biologicamente, para ganhar peso. Mas, em compensação: tem gente que tem que fazer hemodiálise toda semana. Eu 'tenho' (por autoimposição) que fazer exercícios (eu gosto) e dieta (não tanto). Trocas.


Em um dado momento, se você não me conhece pode pensar que você está lendo algum tipo de neurótico. Calma: eu procuro, digamos, maneirar de forma straight. Sou um grande maneirador. Maneiro como ninguém. Não é algo militaresco. Ao final de semana vou ali e como fatias de bolo, bombom, pizza e chopes. Chocolate - para mim - é um problema similar àquele (do Maradona): é melhor eu não comer o primeiro quadradinho. Não parará. Não abro mão dos prazeres da mesa e fico satisfeito com o tipo de vida que quero levar, onde há algum nível de proveito que consigo fruir sem qualquer tipo de culpa. Mas aqui o cheque-especial é cruel nos juros.


Uma das coisas mais auto aflitivas que pode existir é você (tentar) estar em dois lugares ao mesmo tempo, (tentar) ser duas pessoas ao mesmo tempo e (querer) acochambrar decisões antagônicas. Com a comida fico preso nesse vórtice: adianta tomar o achocolatado light junto a uma fatia de torta (dark)? Adianta comer frango grelhado e salada para depois de lançar na sobremesa mais aviltante. O que é redução de danos e o que é uma espécie de lusco-fusco barroco de culpa cristã em relação aos prazeres alimentícios?


E, principalmente: onde a competitividade pré-programada mentalmente da racionalidade neoliberal te atinge? (porque, sim, ela te atinge): será nas compensações e na necessidade de anunciar aos quatro ventos que a academia da semana "tá paga" para justificar o croissant de doce de leite (que não se pode deixar de fotografar e - ato contínuo, não se pode deixar de publicar), ou será no post do pudim de leite condensado como prêmio público para a vitória da semana? É engraçado reparar que as pessoas por vezes publicam coisas na internet não como se quisessem obter algum tipo de ganho com a publicização da informação e sim como se fosse uma espécie de obrigação externa. O cara anuncia que está se fartando com uma espécie de justificativa pronta tal como se houvesse uma Receita Federal das calorias ansiando por um recurso arrazoado para analisar o caso e aplicar algum tipo de multa.


No meu caso, me sinto mal quando algum tipo de esbaldar não redunda em compensação ou métrica oposta. Exagero em ambos lados, fácil de se perder.


E o pior é a maior das armadilhas do 'ex-viciado': a abertura de exceções que por vezes viram um festival de pequenas brechas 'contratuais' que escalam para uma espécie de estado de anomia total e fica parecendo que um dia fora da curva engata no outro tal e qual um carnaval baiano da falta de regulação e quando se vê - a título de soltar um pouco a correia e "se dar um presente", o sujeito sofre como se tivesse que passar os próximos dias pagando uma conta de um empréstimo infundado feito às pressas de forma imatura.


(Poucas cenas do cinema contemporâneo me prenderam tão fortemente quanto aquela do "A Baleia" onde Brendan Fraser percebe que o tom alarmante de sua condição cardíaca e física era tão desesperador que ele não hesitou de forma alucinada ao devorar um chocolate que encontrou em uma gaveta - ao contrário do que se poderia pensar que era o correto. Não havia forças para nada ali. Sua vida há muito virara um buraco negro desse tipo de exceção).


Você que não convive com esse tipo de raciocínio embutido de fábrica deve estar pensando algo do tipo "ah, quer comer um dogão completo e um milk shake de Ovomaltine em todas refeições do dia come, não quer, não come", mas meu sonho é que fosse simples.


Ninguém vai me ver exaltando aquele tipo de vida das pessoas cuja personalidade consiste em avisar qual a série de treinos da semana (ainda me pego arredio à palavra 'treino' para significar "fazer ginástica/musculação: se está "treinando" para quê?), nem, tampouco, aquela pessoa que exala galhofa (mas oculta um descontrole melancólico) que diz não dar bola para nada, "vivendo como se não houvesse amanhã" (preguiça, sobretudo porque na maioria das vezes, haverá e é tudo um blefe).


Mas problemas de autoimagem e questionamentos similares (e tudo o que eles acarretam e ocasionam) não afligem apenas meninas de 13 anos fazendo teste para São Paulo Fashion Week, posso dizer com tranquilidade.


UM LIVRO: Demorei a ler "O Avesso da Pele" de Jéferson Tenório. Felizmente, o fiz quando meu exemplar já tem o adorno de um autógrafo simpaticamente assinaldo por ele na última Feira do Livro (a moça que adesivava os livros com os nomes dos pretendentes, na fila, colou um post-it escrito "Grabiel", mas Jéferson autografou para o cara correto). Uma narrativa comovente sobre relacionamentos, bem contemporânea que não usa meias palavras para discutir as questões de racismo e choques de realidade a partir de suas rupturas atinentes.


UM FILME: "Abraço de Mãe" é muito do que eu queria para pensar uma estética e um estilo do que viria a ser o "cinema de terror nacional". O Brasil é rico demais em folclora e escapamos por um triz de sermos um país em que os filmes de horror seriam fantasias às avessas de gringos envolvendo selva, curupiras, Anacondas e aquela coisa meio "cenário do Blanka" do Street Fighter II. O filme é por demais parecido com os filmes espanhóis da categoria: soluções que mesclam psicologia, suspense e filmagens práticas para driblar a ausência de efeitos especiais e a leva modorrenta de filmes gringos que não conseguem oferecer nada que não pareça requentado. Honestíssimo, e com Marjorie Estiano, que é uma bandeira de talento inegável.


UM DISCO: um amigo, ao longo desse ano que passou, trouxe ao meu conhecimento essa banda-duo magnífica e com um nome tão trivial que parece de personagem pouco inspirado de filme cafona: Hermanos Gutierrez. Eles próprios parecem inventados por uma inteligência artificial: dois irmãos (de fato) de ascendência equatoriana, porém nascidos em Zurique, Suíça, e com residência estadunidense, que fazem música instrumental à base de violões e guitarras-slide com pegada latino-psicodélica. A trivialidade para por aí. A música é sublime. Agradável. Sedutora. Provoca sensações e propõe. "Sonido Cósmico" é seu último trabalho em álbum, desse ano mesmo e é uma verdadeira joia rara. Só dê play. Em breve, a música se imporá e estará te conduzindo.

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