top of page
  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 28 de mar.
  • 7 min de leitura

Eu sempre tive um ranço tremendo do Super-Homem (o kryptoniano do S no peito. Do ubermensch Nietzscheano, nem tanto, embora alguns problemas). Não obstante, eu colecionava avidamente as revistinhas mensais sob a rubrica do personagem, naquele início de década de 90.


Entenda: além de contar com o traço do meu (à época) desenhista favorito (John Byrne), as histórias que circulavam na edição do "homem de aço" eram uma espécie de Aeroporto de Guarulhos do universo da DC Comics, e invariavelmente tramas que envolviam outras edições e sagas de outros heróis tinham ali quase sempre alguma conexão ou referência, de forma que não ler a "Super-Homem" da Editora Abril era como assistir um jogo da Seleção Brasileira sem ser pela Globo (e você pode igualmente ter um tremendo ranço da Globo, mas atire a primeira pedra se não há uma espécie palpável de sensação de que se está fazendo algo do jeito errado, nesse caso).


Minha bronca maior com o Super-Homem é a necessidade tremenda de invenção aleatória e cada vez mais imaginativamente custosa para conferir alguma emoção a uma história de um sujeito que mal e mal se despenteia se aparar no peito um míssil atômico: para correr algum risco, o cara precisa enfrentar alguma vilania cósmica absolutamente non sense e pautada em algum tipo de gigantismo apelativo - ou ficar próximo de uma lasca de uma pedra verde esquisita (é uma opção).


Eu sempre gostei de heróis díspares entre si (vide, abaixo, maus três preferidos) mas que contêm uma característica que os aproxima de um tom trágico iminente: por mais habilidades, poderes sobre-humanos e apetrechos que possua, o sujeito, se levar um tiro na fuça ou uma facada bem dada, bem: morre.


Um é um personagem tão saturado na cultura geral e tão revisitado e escrutinado de tantas maneiras que não vale gastar muito tempo falando (e minha fissura por ele é notória e o assunto poderia render demais, ao nível do inoportuno). Vou me resumir a lembrar que não gosto das versões que visam conferir uma sobre-humanidade e uma espécie de exoesqueleto embutido numa fantasia (a partir de toda e qualquer invencionice fanfarrona que o dinheiro do Banco de Gotham City possa financiar), que terminam por lhe conferir um grau de invencibilidade e virtual imortalidade que depõe contra a poética do personagem (e ver ele falhando e se machucando no "Ano Um" de Miller e Mazzucchelli - meu quadrinho predileto do personagem - e em alguns momentos similares do filme, último, com Robert Pattinson, são bálsamos frente a algumas bizarrices dos últimos tempos onde o sujeito tem algum tipo de armadura aborrecida à prova de balas e possui algo como sete vidas - eu sei disso sobre gatos, não morcegos).


O segundo, vejamos: um garoto picado por um aracnídeo radioativamente modificado que passa a conseguir subir em paredes (que merda é essa?) e que mesmo na pindaíba absoluta é genial e sagaz o suficiente para conseguir não só elaborar um uniforme colant eficiente quanto um dispositivo (pelo amor de deus) acoplado ao seu punho que dispara um fluído que ele mesmo inventou (na boa...) que se solidifica enquanto uma teia firme o suficiente para pendurar um automóvel entre dois edifícios. Ofensivo (que os deuses do cânone me perdoem, mas as versões cinematográficas dos anos 2000 - onde parte da mutação genética fazia com que ele pudesse brotar teia dos pulsos - eca - e mesmo a última versão das 'franquias', onde tudo de mirabolante que ele tem foi presenteado em forma de altíssima tecnologia por um herói/tutor bilionário - fazem mais sentido).


O terceiro é um guri que fora cegado por um acidente com produtos químicos quando pequeno e secretamente mantém uma gama de habilidades impensáveis que o próprio acidente sem querer conferiu a ele em termos de todos os sentidos restantes serem exacerbados, a despeito de tirar-lhe a visão. Em que pese de suas necessidades especiais aparentes (ou fingidas, no caso), conseguiu se formar em Direito e atua como dublê de advogado ao dia e fantasiado de diabinho nas noites de um bairro de Manhattan onde salta de prédio em prédio com desenvoltura de ginasta suicida e surra de bastão uma catrefada que ele mesmo vai se oferecer para defender pro bono na Corte dias depois (a dupla Miller e Mazzucchelli igualmente assina um arco que também está entre meus contos preferidos da vida desse personagem).


Tirante diferenças colossais de lore e de tendências comunicativas e/ou simbologias, Batman, Homem Aranha e Demolidor possuem essa coisa que me encanta que é carregarem a mortalidade banal possível como traço de humanidade que me faz pensar com gosto em suas possibilidades e historietas. Os dois últimos ainda lançam mão de outro traço de humanidade que sabida e antipaticamente (fonte de um sem número de críticas e teses nessa nossa era) não é compartilhado pelo primeiro. Se Bruce Wayne parece se complicar cada vez mais para o gosto de certo público ao rodar uma espécie de ciranda infinita com ares de profecia que se auto cumpre (não seria ele e sua fortuna babilônica um dos genuínos motores da miséria - inclusive moral - que atordoa sua cidade natal?), Peter Parker e Matthew Murdock precisam rebolar para pagar os boletos.


No caso de Murdock (o Demolidor) a quantidade de pontos de contato é cruel: rapaz católico, em constante conflito com sua revolta e os limites parcos da ética onde fora doutrinado, vive o dilema de ser o demônio vingativo, mas controlado por um tom de respeito a preceitos fundamentais que o arremessa nessa singela porém apaixonante dicotomia. Não há arco do Demolidor onde não haja algum momento limite onde a tensão reside em saber se (e quando, e onde) ele vai perder as estribeiras que o caracterizam normalmente.


Uma das coisas - inegável - que sempre me fascinou em Matt (e influenciou meu futuro mais do que talvez deveria ou mais do que eu devesse admitir em um blog) é o fato dele ser advogado. Não apenas advogado, mas o simpático - e charmoso - tipo mais adorável de advogado: o camarada que defende a ralé mais baixa e desamparada da redondeza (que geralmente não tem qualquer trocado para o faz-me-rir do doutor), e o faz com maestria pois é dos bons. Craque no regulamento e no gogó. Rei da tribuna. Showman. Malandro. Casca grossa de bater de frente na audiência de custódia. Mestre do júri. Galanteador. Piadista. Erudito.


É basicamente o epíteto do romantismo advocatício. Sofre com e pelos seus clientes, como na imaginação do Carnelutti e suas "Misérias". Bebe um whiskynho caro guardado para as vitórias memoráveis. Quebra a cabeça nos recursos e sempre encontra a solução em uma madrugada insone.


Não estou gostando muito não, se querem saber, da série televisiva atual que arrecada o personagem para o universo cinematográfico da Marvel. Há algo ali em termos de roteiro e referências explícitas a problemas políticos cotidianos que me parece azedo e artificial. Inegável que um acerto pleno é manter um fio condutor que remete à série que há dez anos foi veiculada na Netflix (que é uma espécie de prólogo ainda que não bem assumido, porém 'oficial', da atual exibição). Charlie Cox é a encarnação física da versão consagrada do personagem nos quadrinhos, de um modo até então jamais visto e dificilmente superado em qualquer futuro imaginável hoje. Vincent D'Onofrio faz um Rei do Crime magistral - que, enfim, atendeu minhas preces e vai retratado como um homem gordo plausível, e não uma montanha descomunal absolutamente inverídica (e a predileção por desenhistas fazerem seus Reis do Crime, ano após ano, de uma forma cada vez mais paquidérmica sempre me intrigou e mesmo irritou - não há suspensão da descrença que aguente).


Mas mesmo torcendo o nariz para a série atual em larga escala, há algo a dizer: o Matt advogado está impecável. As visitas aos presos, os papos com os clientes, a negociação onde (em um dos episódios) ele vibra por conseguir algo crível para um caso perdido de um acusado em termos de acordo judicial (e ainda assim toma esporro por sua incompetência), os corredores de delegacias e fóruns com as famílias de vítimas e réus e seus dramas, maiores que o mundo (no estilo do poema: eternos enquanto duram). Tudo é retratado de maneira peculiar e certeira. O Matt que sente o abalo do clima desfavorável (e sua audição e percepção aguçadas captando acelerações e disritmias cardíacas para usar como trunfo em situações diuturnas é sempre um ponto alto dos episódios), o Matt que sofre com o touché do Promotor sedento por sangue. O Matt safo, que ri com uma ironia fanfarrona quando se dá bem (e que faz conter a raiva de todos por crerem que se trata de um pobre deficiente, ao fim e ao cabo) são definitivamente (e estranhamente) a melhor coisa de um produto audiovisual que narra as desventuras de um (super) herói.


Eu dia dizer que ele lembra um Gabriel de outrora (sempre queimado nas prestações e economizando o almoço para pagar a janta), mas que era capaz de sorrir após alguma tirada boa em uma audiência defendendo algum pobretão que depois se esquivava de cumprir os honorários devidos, ou cobrando (cheio de documentos e razão) algo em juízo de alguém que já tinha penhorado as próprias calças três vezes e mesmo perdendo, não ia pagar é nunca.


A correria de uma hoje impensável justiça de prédios e salas físicas, de processos físicos, de chuvas bem físicas que engarrafavam tudo e a apreensão indo para o Fórum de Porto Alegre e/ou para o TJ à bordo por vezes de um Gol mil, por outras de um ônibus da linha T7.


Se aquele Gabriel sorria bastante e não perdia uma piada, é até um insulto esse daqui que escreve isso o fazer. Traz o whiskynho, por favor. E dos bons, importados, sem miséria. E já aviso que é para botar na conta que depois eu vejo. Pendura.


UM LIVRO: está chegando aí "Desejo pós capitalista", uma coletânea de transcrições de aulas de Mark Fisher que são as últimas expressões do cara em vida. Vou ler ele após ter lido "Marx além de Marx" do Negri, que igualmente é um curso pensado e ministrado em 1979. Ler coisas de aulas, ver como um "show, ao vivo" desses pensadores é como ler não um livro/história, mas o roteiro da peça de teatro que o encena. Adoro. Adoro quando as peças descrevem cenografia enquanto narram, inclusive.


UM DISCO: emocionadíssimo com o show "Caetano & Bethânia" que vi ('ao vivo'...) do gramado da Arena do Grêmio em Porto Alegre, semana passada. Vamos essa semana com um dos meus preferidos de Caetano, cuja fitinha k7 tinha lá em casa quando eu era pequeno "Cinema Transcendental".


UM FILME: segue a entressafra de filmes aqui. Mas: que série impressionante e forte é "Adolescence", não? Meu deus, dê play sem pestanejar. Quatro episódios. Paulada.


  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 21 de mar.
  • 6 min de leitura

Há um exercício que não apenas me cansa no sentido físico e muscular (quando não me agride no sentido ósseo, conjuntamente), mas que parece sugar minha força vital e meu elã sempre que sou impelido a realizá-lo. Ele se chama Burpee, e mesmo o nome é ridículo e parece algo inventado por uma criança para batizar algum tipo de amigo imaginário.


Consiste mais ou menos em você, de pé, empenhar um misto de apoio/flexão com um tipo de (quase) abandonar-se no ar, jogando as pernas para trás, sendo amortecido pelas mãos no chão, até que você esteja paralelo e grudado ao solo como um tapete estendido - ou uma lesma. A segunda parte do movimento é o caminho oposto, e você faz a força de erguer o torso com as mãos ao lado do peito (a volta da flexão), mas de forma a dar algo como que um impulso/pulinho que permita que suas solas do pé retornem ao chão para você se botar em pé (ou quase), como se uma hipotética câmera de filmagem desse rewind na fita do mesmo movimento anterior. O ciclo se completa quando já semicurvado, tal um gorila, você eleva os braços acima da cabeça e dá um pequenino salto que conta "um" para o movimento. Uma batida de palmas acima da cabeça para marcar o numeral e complementar o salto é opcional.


E vamos de novo.


Há uma variação literalmente diabólica dessa desgraça chamada Devil Press (quem inventa esses nomes, meu deus?) onde o apoio no chão é feito segurando um (ou dois) haltere e o movimento de retorno conta com alguns itens a mais: depois de se reerguer no solo (pés no chão, semi curvado), você vai balançar o peso por baixo do arco (do triunfo) formado pelas suas pernas abertas e erguer ele em riste acima da cabeça, como o He-Man defronte o Castelo de Greyskull. Se estiver fazendo com apenas um, é agora (haltere para cima) a hora de rapidamente trocar ele de mão para que o próximo seja finalizado com o braço contrário.


Se me mandam realizar 15 desses eu tenho uma técnica de tentativa de auto engano mental que consiste em diluir a contagem em blocos de cinco, três vezes, em uma espécie de prestação que não funciona se não num âmbito meio imbecil de sugestão que, corporalmente, não parece adiantar muito.


Já tentei realizar diversos tipos de contagens distintas - a mais trivial é começar de cima para baixo e ver minha tarefa paulatinamente se aproximando dos numerais mais baixos até chegar no 'um' que precede o final redentor. Partida do ônibus espacial. Medo. Explosão da Challenger quando eu era pequeno. Coisas aleatórias passando pela cabeça. Já tentei fazer combinações meio esdrúxulas, mas que residem em um auto incentivo meio vergonhoso - que agora divido com todos - no que diz para com contar três blocos de três repetições e depois mais três blocos de duas cada, 'pulverizando' mentalmente os 15 desafios em pequenos punhados de somas onde a satisfação da exigência parece mais próxima do que em uma contagem regular.


Imagino por vezes imagens gráficas gamificadas na mente onde vasos se enchem de líquido de alguma cor berrante, escadas e andares com números são transpostas, voltas em uma pista de corrida são completadas. Uma que curti esses dias eram números na quantidade das repetições como lâmpadas apagadas dando check e se acendendo à medida que mais uma repetição era vencida. Desafios mentais, imaginação criando cenários onde falta aquilo para uma vitória em uma competição fantasiosa (às vezes com plateia ou com uma aposta comigo mesmo ganhando ares de desenho gráfico até abstrato). Tudo, absolutamente tudo para esse pavor se encerrar e o objetivo, mais do que o exercício e seu trabalho muscular em si, seja satisfeito:


Acabar logo. Acabar logo esse sofrimento infernal.


****


Minha semana docente esse semestre contém um dia em que dou aula à noite, seguido por uma manhã onde também dou aula, que engata em uma noite do mesmo dia onde também dou aula. Parece pouco, à primeira vista, mas para quem conhece minha rotina de viagens e meus outros compromissos invariáveis, já se demonstra cansativo e pesado, mormente na manhã de quarta feira quando, após uma noite de trabalho na terça e um sono avassalador a ser vencido, vislumbro o compromisso da mesma noite como um exército numeroso que cedo ou tarde estará às portas do castelo para me triturar, e já é visível nas colinas próximas.


Esses dias me peguei pensando se o sentido da vida é torcer para que uma rodada de devil press passe logo, como quem se vê em uma situação em que faz o que faz mais pela anestesia posterior de alguns segundos de descanso entre as séries do que por elas, em si.


Perguntas sobre o porquê de eu fazer isso comigo mesmo - estando correta a pressuposição de que não sou um prisioneiro torturado nem um atleta bodybuilder patrocinado - são da mesma categoria do tipo de cinismo infantil que manda o cara, caso não esteja gostando, trocar de emprego ou ir trabalhar na construção civil, para ver o que é bom para a tosse.


Não queria - creio, ninguém queria - me tornar aquelas pessoas que passam o tempo todo dizendo "menos um" para qualquer coisa e, num passe de mágica, transformam a vida toda em uma dificuldade tal e qual uma série de devil press que você, pelas tantas começa em dado momento a questionar o porquê de tudo isso em um labirinto de perspectivas.


***


Minha avó, ao final da vida, começou a não ver mais a novela das 20/21h até o final, depois ela já estava meio que para dormir no Jornal Nacional, por vezes já adormecia no sofá durante a novela das 19h e repentinamente o café com leite da tarde já basicamente virava uma janta e cada vez mais cedo ela se punha recolhida, não como quem está momentaneamente doente ou indisposta, mas como quem dava sinais de que queria acelerar o fim de cada dia, de todos os dias, de todos os eventuais dias que ainda restassem, como se pudesse correr numa velocidade mais rápida do que os próprios dias para que - cheia do saco - pudesse descansar de um jeito definitivo tão logo.


***


Era uma manhã dessas após acordar pelas 6h depois de ter ido dormir passada uma da manhã (trabalhe à noite, falando por quase três horas e veja uma desproporção entre o precisar e o conseguir adormecer) e eu tinha em mente que, se aguentasse (esse é o termo) aquela tarde e seus compromissos atinentes, e depois mais uma noite, na quinta feira eu poderia dormir um pouco mais. Um momento. Uma chance. Um objetivo. Uma missão. Aturar. Sobreviver. Mais uma tarde. Ótimo, você conseguiu. Mais uma noite agora. Quase chegando em casa. Chegou. Come uns snacks caros da lojinha de produtos naturais. Toma um iogurte. Liga a TV. Está passando Lakers contra Nuggets (o Lakers vence bem, surpreendentemente dada ausência de Lebron, mas o Nuggets também está sem Jokic então há uma facilidade enganadora no ar). Deita na cama. No dia seguinte mais trabalho. E estrada (volta para Porto Alegre). Soa o sinal. Volta ao ring. Olho roxo.


A vida tipo rounds de uma luta de filme onde o protagonista está em maus lençóis. O corner como não um respiro e um tempo tático. O corner como um minuto de paz. O desejo já não pela vitória, pelo nocaute, mas pelo corner. O corner e os poucos segundos sem jogo de pernas nem socos na cara e na barriga como objetivo, em si. Gelo. Gelo no olho. Toalha. Um banquinho para sentar.


***

Que coisa. "A depressão quer me pegar, vou sair fora". O verso do Mano Brown. Uma singeleza e tanto. Depressão? Vou sair fora. Como, bem: Brown não explica. Dá teus pulos. O fato é: viver esperando o Gatorade da pausa técnica não dá. A consciência de que está errado já é um começo (será?).



UM DISCO: disco, disco, não é a prioridade aqui, mas se você for para o disco "Maravilhas da vida moderna" da banda portoalegrense Dingo (ex Dingo Bells) você vai se deparar com um pop rock bem agradável, mas mais do que agradável é uma das faixas que me emociona de sobremaneira desde a primeira vez que escutei (e tem uma relação direta com uma coisa referida no texto acima). "Dinossauros". Mais do que escutar, volta e meia, penso, real, na letra.


UM LIVRO: está em breve chegando nas livrarias (um passarinho me contou) a compilação traduzida em versão nacional das últimas aulas e palestras do Mark Fisher (falei dele dia desses). Para um dos seminários da minha disciplina do mestrado indiquei alguns artigos dele, procurando fazer uma entrecruza de suas ideias com uma crítica jurídica vanguardista. A edição brasileira de "Realismo Capitalista" é um excelente - e rapidinho começo - para conhecer quem melhor trabalhou com a questão da depressão e trabalho atuais como fonte de vazio existencial e sofrimento.


UM FILME: não vi filme nessa semana que passou, mas vamos com mais uma série - "Entre Estranhos" (The crowded room) é bem interessante, embora resvale várias vezes para o absolutamente previsível (uma psicóloga obstinada reconstitui peças de um quebra cabeças mental de um acusado por um crime atabalhoado e mergulhamos num recorte sobre a vida desse sujeito. Tom Holland está bem demais, assim como a cenografia de uma Nova Iorque dos anos 70/80). Não é preciso andar quase nada nos 10 episódios para sacar qual é o lance, mas 'o lance' não era para ser exatamente um mistério, anyway.




  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 14 de mar.
  • 8 min de leitura

Há algo como dez anos atrás (não resisto ao Google: onze, embora fique menos dramático do que o número redondo) estreava na HBO aquela que é uma das peças ficcionais de maior e mais inegável qualidade já produzidas para consumo televisivo: a primeira temporada de True Detective.


A ambiência estética do primeiro episódio, a forma como a narrativa era tomada e a informação (extra) oficial (então) de que se planejava uma exibição no estilo "antologia" me trouxe não apenas a certeza de que aquela história, daquele caso policial investigado, naquela região onde se passava a trama, com aqueles personagens, teria começo, meio e fim encapsulados na própria temporada, como me fez apostar (e acertar em cheio) quanto a algo não tão previsível assim: em um misto de futurologia com torcida fervorosa, sugeri, à época, que aquilo estava me cheirando (bem) a um tipo de percurso onde não necessariamente o mistério do plot não fosse inteiramente resolvido (ou quiçá o seria), e que talvez o final reservaria surpresas amargas àqueles que têm tara por explicações, encaixes, arredondamento e tranquilidade na interpretação das tramas.


Bingo: o final da - curta - temporada se encerrou com um clímax catártico, que apontava para lados e leituras beirando o surreal e o sobrenatural que poderiam ser pinçadas em um livro de Robert W. Chambers ("The King in Yellow" - corri para baixar e ler após o fim do episódio) tal um hyperlink, bem como para um baixíssimo índice de desfecho convencional, que deixou boa parte do público confuso, ou indignado, ou um misto curioso de ambos. Eu adorei estar certo (e adorei o não-cartesianismo da conclusão, considerando-o, de certa forma, educativo). Deal with it.


***


Foi um sentimento cruelmente inverso àquele de quando descobri que já há planejada mais uma temporada de 'Ruptura', interessantíssima versão de um punhado já conhecido de críticas (às relações humanas conduzidas pelas lentes da postura desejável no ambiente corporativo e ao próprio ambiente e - ausência de - ética, em si), levados à tela semanalmente com originalidade e arrojo, complementando a primeira temporada de exibição que reside em um hiato que remonta há mais de dois anos.


O anúncio de mais uma temporada desse tipo de série costuma ser celebrado pelos fãs em uma curiosa dinâmica, como se a continuidade tranquilizante do produto predileto fosse suficiente para uma estabilidade, e como se eventual cobrança posterior por manutenção de qualidade, ou por decepção com algum rumo de roteiro ou condução (invariavelmente ocorre), não tivesse ligação direta com essa simbiose esquisita onde tudo passa do limite porque os envolvidos assim desejam - e é o que de fato arruína a relação, não raro.


Enfim: já estou assistindo a uma coisa sabendo que não haverá a agradável tensão de imaginar o que a série vai oferecer frente aos episódios que faltam no calendário, eis que qualquer tipo de amarra ou desfecho não precisará ser feito com coragem que vislumbra uma deadline e suas escolhas, e poderá ser realizado em uma terceira, quarta, décima oitava temporada, whatever.


***


Do mesmo modo, de uma maneira que acho curiosa e meio inexplicável, as pessoas adquiriram (junto com o vocabulário específico) a mania de reclamar de forma bastante veemente quando um seriado semanal frustraria as expectativas de andamento da história com algum episódio categorizado como filler (literalmente 'preenchedor'), o que é visto entre as comunidades de fãs como uma ofensa atroz, dado que o filler é universalmente notado como uma espécie de perda de tempo que irrita na medida em que não revela nada ou não faz (em tese) avançar a trama.


A comunidade de fãs não parece se importar com uma sucessão de renovações e anúncios de extensão de temporadas, mas justamente se enfurece de modo desproporcional quando ocorre algum episódio dedicado - não raramente - a expor justamente algum resquício de mensagem ou de oferta estilística que a produção e os autores do programa visam colocar como em um diálogo ou demonstração de um ponto. A regra é clara: a trama não pode se esticar para os lados, ou dar uma voltinha para que vejamos o caimento da costura. Ela só pode andar para frente, para frente a para frente, tal um cavalo treinado que supostamente não se cansa nem bebe água nunca.


Arrisco a dizer que é no filler que vemos a veia artística ou a válvula de escape dos roteiristas e produtores frente a essa roda maluca - e em alguns desses ditos fillers estão os mais memoráveis episódios de algumas séries. Espécimes famosos (ou infames, a depender) são o "episódio da mosca" de Breaking Bad ("Fly", episódio 10 da terceira temporada), onde uma notável (e importante) conversa é travada pelos protagonistas enquanto estão à caça de um inseto em uma sala fechada, e mesmo uma sensível e bela recapitulação da vida pregressa de uma das personagens centrais de The Bear, em um episódio que é dirigido por outra das atrizes da série, tal um presente ("Napkins" - episódio 06 da terceira temporada, dirigido por Ayo Edebiri).


Ambos episódios foram bastante criticados - e constato, refletindo, que outra das mais geniais coisas que já assisti, "Atlanta", em suas quatro (porém enxutas) temporadas, é composta por algo que periga ser a metade do conteúdo de coisas que poderiam ser tidas por fillers.


***


Madonna (sim, a própria, eis que, inclusive, só há uma) disse certa vez que percebia um videoclipe como um 'poema', em comparação a um filme como um 'romance'. A opinião de Madonna nesse quesito (uma artista musical, mas que possui um trabalho basicamente inseparável do teor visual e estilístico) é importante e pertinente: um clip é associado a uma canção, mas pode inclusive se dar ao luxo de exibir alguma coisa paralela ou mesmo não diretamente conexa, eis que, tal um poema, é tanto uma abordagem quanto uma nova chave de leitura (e não um tipo de romance, porém pequeno). Do mesmo modo que um artigo científico não é um manual menor, ou uma monografia não é uma tese ou um tratado, apenas com um limite de páginas marcado e reduzido. Há um outro ritmo, e com ele, outras possibilidades. Há um core significativamente distinto que reside na proposta que vem com os estilos, o que radicaliza inclusive sua forma de recepção mais apropriada ou proveitosa.


Pensando em um filme como um romance - ou em uma série como um romance em partes ou capítulos - no entanto, é premente que se fuja desse caráter que pauta a questão de forma tosca, a partir do volume, do tamanho, literalmente.


Um romance com 10 mil páginas e 12 volumes não traduz imediatamente grandiosidade, não impõe por si só um tom épico e - doloridamente - não significa nem redunda em pertinência, muito menos em qualidade. Aliás: é um tipo de exercício onde o mais provável é que haja uma confusão entre se ter algo (e muito) a dizer com um singelo dizer muito. Nossa hipotética e interminável saga de 10 mil páginas provavelmente não traz nada além de uma sucessão narrativa modorrenta e arrastada onde, ou um detalhamento ao nível do enlouquecedor da velocidade de descrição da história e seus predicados, ou uma vontade de pura entrega cronológica de fatos, cria um desagradável efeito. É como um mapa que, em busca de algo como o suprassumo detalhístico, é concebido tal uma folha de papel manteiga sobre a cidade inteira, se mesclando a ela por quilômetros e quilômetros cúbicos, para suposto maior e mais fiel espelhar. Um mapa do tamanho preciso do território que visa cobrir, eliminando a necessidade de escalas em prol de uma suposta exatidão mais plena. Ou seja: além de instrumento inútil, como mapa, em si, é um fracasso.


O 'consumo' de 'conteúdo' (pavor dessas palavras empregadas desse jeito nesse contexto) obedece hoje em dia algumas visíveis marcações que não parecem primar pela singeleza e, de fato, se aproximam do léxico dos termos tal como seria dizer 'comer comida' ou 'ingerir alimentos'.


Nessa mistura de público que anseia por ser mimado - como se filmes, livros, seriados e outros produtos tais precisassem também servir tal analgésico - com lucratividade explorada em novos níveis e confins, reside um estilo e uma era de produções que, a mim, ao menos, dá nos nervos. Tiresome.


***


"Conclave" tem duas horas de duração. Gostei do filme, ainda que ele traga - como muito já se disse - diálogos óbvios e meio constrangedores que explicitam claramente o tom, a moralidade, o caráter e o papel na trama de cada um dos envolvidos nas cenas respectivas. "A substância" (que achei uma ideia cativante presa - sem trocadilho infame, juro - em um corpo esquisito de execução), tem a tortura de quase três horas de duração onde boa parte desse tempo é gasto com repetições do mote central (que todos haviam entendido já na primeira leitura da sinopse), com flashbacks e outras piscadelas narrativas que, adivinhe?, procuram explicar mais, e mais (e mais) o que já estava explicado.


"Anora", o filme polemicamente (...) premiado com o Oscar, tem mais de duas horas de tela, enquanto que "Wicked", uma espécie de re-fábula em torno de "O mágico de Oz" em versão pré-adolescente, tem cerca de duas horas e quarenta minutos.


Nada dos valores exorbitantes de tempo de exibição desses filmes redunda necessariamente em algo a dizer ou em alguma necessidade de proposta, senão que é basicamente como se às crianças na piscina do clube fossem dados alguns minutos a mais na hora do fechamento, para que elas, já exaustas, façam mais algumas vezes o que exatamente fizeram ao longo de toda a tarde em termos de descer o escorregador. Boring.


***


Não há porém nada em termos cinematográficos esse ano que se compare à exaustiva jornada de se assistir a "O Brutalista", um exercício enfadonho de quase quatro horas de duração onde, acho, meu ponto aqui fica mais visível: não há qualquer motivo para a metragem da película atingir esse tamanho, senão uma pura e simples vontade de exploração altamente linear de uma história a ser narrada sem precisar fazer escolhas cênicas pesadas e complexas a ponto de dizerem muito mostrando pouco. É (e esse trocadilho infame veio mesmo, de propósito, aqui, podem por na conta) como uma obra de reforma que é tocada sem limite de orçamento, sem prazo de entrega e, especialmente, sem qualquer fiscalização por capataz algum. Uma excruciante experiência que parece durar não o tempo que a narrativa ou o enredo pede, mas, sim, o que o realizador - externo à tela - quer. E aqui estamos acorrentados a uma tendência que por um lado trata o 'consumidor' dessas vertentes de arte como o legítimo 'consumidor' que o público quer ser e, por outro, tenta usar o mesmo remédio alargando as narrativas sem confins visíveis enquanto espécie de manifesto artístico bobo ensimesmado. Considerando que que o público no geral parece não querer fillers vistos enquanto 'enrolações', nem aceita cortes finais que redundam em notada mão firme de autour, péssima trend.


UM FILME: falei de vários aqui, mas para não residir gosto amargo algum, deixo de brinde uma série que enfoca uma história verídica de quando a ex-membro do IRA Dolours Price resolveu se chocar de frente com as antigas lideranças do movimento republicano irlandês do norte, esquadrinhando toda uma era do discurso da tensão político militar na região. "Say Nothing" (Não diga nada), 09 episódios, zero bullshit.


UM DISCO: Como pensei em jazz (dada indicação de livro abaixo e da, praticamente, monomania do autor em relação ao tema) vou tacar algo diferente, que já tem um tempinho mas que é do tipo de coisa que chega em você e fica - e volta. "Your queen is a reptile" do Sons of Kemet. Faz o seguinte: dá play agora, na primeira música. Eles te explicam o resto no caminho.


UM LIVRO: terminei de ler "O Fim do Mundo e o Impiedoso País das Maravilhas" de Haruki Murakami. Hoje em dia há uma involuntária propaganda que pode ser feita sobre esse livro de 4 décadas atrás, dado que parte do seu enredo tem um viés de ideia encontrado justamente na série...Ruptura! Pretendo falar mais dele em breve, sou fã do escritor e acho que 'capto' algo em seu estilo que pede uma ou outra palavrinha a mais.


Inscreva seu email para atualizações

Inscreva seu email para atualizações

bottom of page