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Foto do escritor: GabrielGabriel

Final de ano, aquela coisa: convites abundantes e (quase) impertinentes para eventos massivos que envolvem comilanças e beberagens fora do prumo normal e causam um certo pânico em algumas pessoas. Bom dia, meu nome é Gabriel e eu sou um desses ("...Bom dia, Gabriel...")


Diego Maradona disse certa vez que não existe um ex-viciado em cocaína, e, sim, um viciado que luta diuturnamente para vencer (por uma sucessão sudorífera de instantes) essa condição.


Lido de modo parecido com comida.






Muito disso, hoje em dia, tem um orgulhoso caráter que gira em torno de saúde e meus planos quanto a esse fator, mas obviamente envolve também uma questão psicológica de autoestima. Na foto acima, tirada na Ilha do Mel-PR, ao lado de um grande parça, visto uma camisa dos Ramones que comprei pouco tempo antes, em 1994, na lendária Megaforce da galeria na Avenida Independência, em Porto Alegre, e encontrei em um armário na casa de praia dos meus pais esses tempos. Ainda me serve - embora em algum desses 30 anos, não me serviu.


A memória que tenho, vívida, desse dia, é que eu não queria tirar a camisa, porque, na minha cabeça, eu era gordo e ia pagar mico para as gurias. Vi as fotos dessa viagem várias vezes, mas foi meio que recentemente que atentei para o fato de que eu era positivamente diferente do que eu tinha certeza que era.


***


Eu ando volta e meia de 'dieta'.


(ou algo que o valha)


Um pouco por necessidade, um pouco por uma espécie de profissão de fé assumida, um pouco pela minha ânsia quanto à escassez.


Eu explico: quem já ficou liso, sem grana, conhece um tipo específico de pavor que não desejo a ninguém. Some-se a isso (ou cria-se com isso, não importa) uma verdadeira compulsão por manter reservas, fundos de emergência, segurança, paraquedas, botão do pânico. Em tudo na vida, com algum pesar e um tanto de constrangimento, deixo para lá a cigarra artista fala mansa/boa vida e assumo que sou mais para formiga. Sim, a formiga. Sim, eu sei, aquela formiguinha meio reacionária, vingativa. Formiga filha da puta que pune a cigarra pelo seu viver leve, usando a ética protestante do trabalho como fator moral. Superioridade. "Eu te avisei" - a frase predileta de homens brancos hétero de uma geração ou duas acima da minha, dita com gosto repartido entre a inebriante sensação de estar certo e a inconfessável e prazerosa constatação de que o outro foi por conta própria, e se deu mal. A formiga é a vilã da história, escorada em sua suposta prudência que dá azo à fábula.


Sou fanático por reservas, provimentos, mantimentos. Por vezes tenho medo que o orçamento do meu time de futebol do modo franquia no videogame tenha que inflacionar salários demais e vá à falência. Controlo o budget de duas, três temporadas para frente. Vendo jogadores pensando no longo prazo. Esquematizo, à moda da governamentalidade (ironia).


Quando completei 40 anos (há 5 atrás, portanto) decidi que ia levar a sério as questões de saúde, forma física e bem estar como em nenhuma outra etapa da minha vida. Brincando, mas com uma ponta de desespero flagrante, comparo com uma bifurcação na estrada onde em um lado do y estaria um caminho adornado com uma placa dizendo "vamos tentar mais 40?" e outra, na mão oposta, refletindo os dizeres "o que vier é lucro". Optei pela primeira, sem qualquer garantia de nada, mas com prognósticos baseados em prudência formiguística. A reserva aqui é de tempo. Alea jacta: tudo incerto. Um raio ou um bêbado que troca de pista, amanhã ou depois, periga abreviar tudo. Coisas que surgem sem mais na maquinaria inacreditável do nosso corpo, idem. Mas: é infantilóide dizer que esses fatores fazem com que não se tenha que tentar e simplesmente se lançar em um destino randômico que parece aventura ao sabor do vento, mas é uma inconsequência medrosa, na real. Estocar tempo - como vento na célebre passagem da Presidenta (que estava corretíssima). Ganhar qualidade de vida. Se sentir bem. Perseguir o sonho dourado da humanidade que consiste em uma velhice dotada ao mesmo tempo da sabedoria do Diabo dos anos - tal a advertência de Martin Fierro - e de (algum) vigor físico que não torne o mero levantar da cama uma tormenta.


Sim, faço dieta e exercícios constantes mais para tentar equilibrar algo no organismo do que eventualmente para querer ser algum tipo de modelo fitness fisicultor à moda que anda em voga hoje em dia que não sou e não tenho a menor vontade e saco de querer ser.


Nem tudo são flores, bobagem e ilusão bad trip: por vezes me achei gordo e malcuidado, e estava. Por vezes inclusive estava pior do que eu achava, no quesito. Tem gente que tem facilidade para muita coisa (língua estrangeira, crochê, pintura). Eu tenho, biologicamente, para ganhar peso. Mas, em compensação: tem gente que tem que fazer hemodiálise toda semana. Eu 'tenho' (por autoimposição) que fazer exercícios (eu gosto) e dieta (não tanto). Trocas.


Em um dado momento, se você não me conhece pode pensar que você está lendo algum tipo de neurótico. Calma: eu procuro, digamos, maneirar de forma straight. Sou um grande maneirador. Maneiro como ninguém. Não é algo militaresco. Ao final de semana vou ali e como fatias de bolo, bombom, pizza e chopes. Chocolate - para mim - é um problema similar àquele (do Maradona): é melhor eu não comer o primeiro quadradinho. Não parará. Não abro mão dos prazeres da mesa e fico satisfeito com o tipo de vida que quero levar, onde há algum nível de proveito que consigo fruir sem qualquer tipo de culpa. Mas aqui o cheque-especial é cruel nos juros.


Uma das coisas mais auto aflitivas que pode existir é você (tentar) estar em dois lugares ao mesmo tempo, (tentar) ser duas pessoas ao mesmo tempo e (querer) acochambrar decisões antagônicas. Com a comida fico preso nesse vórtice: adianta tomar o achocolatado light junto a uma fatia de torta (dark)? Adianta comer frango grelhado e salada para depois de lançar na sobremesa mais aviltante. O que é redução de danos e o que é uma espécie de lusco-fusco barroco de culpa cristã em relação aos prazeres alimentícios?


E, principalmente: onde a competitividade pré-programada mentalmente da racionalidade neoliberal te atinge? (porque, sim, ela te atinge): será nas compensações e na necessidade de anunciar aos quatro ventos que a academia da semana "tá paga" para justificar o croissant de doce de leite (que não se pode deixar de fotografar e - ato contínuo, não se pode deixar de publicar), ou será no post do pudim de leite condensado como prêmio público para a vitória da semana? É engraçado reparar que as pessoas por vezes publicam coisas na internet não como se quisessem obter algum tipo de ganho com a publicização da informação e sim como se fosse uma espécie de obrigação externa. O cara anuncia que está se fartando com uma espécie de justificativa pronta tal como se houvesse uma Receita Federal das calorias ansiando por um recurso arrazoado para analisar o caso e aplicar algum tipo de multa.


No meu caso, me sinto mal quando algum tipo de esbaldar não redunda em compensação ou métrica oposta. Exagero em ambos lados, fácil de se perder.


E o pior é a maior das armadilhas do 'ex-viciado': a abertura de exceções que por vezes viram um festival de pequenas brechas 'contratuais' que escalam para uma espécie de estado de anomia total e fica parecendo que um dia fora da curva engata no outro tal e qual um carnaval baiano da falta de regulação e quando se vê - a título de soltar um pouco a correia e "se dar um presente", o sujeito sofre como se tivesse que passar os próximos dias pagando uma conta de um empréstimo infundado feito às pressas de forma imatura.


(Poucas cenas do cinema contemporâneo me prenderam tão fortemente quanto aquela do "A Baleia" onde Brendan Fraser percebe que o tom alarmante de sua condição cardíaca e física era tão desesperador que ele não hesitou de forma alucinada ao devorar um chocolate que encontrou em uma gaveta - ao contrário do que se poderia pensar que era o correto. Não havia forças para nada ali. Sua vida há muito virara um buraco negro desse tipo de exceção).


Você que não convive com esse tipo de raciocínio embutido de fábrica deve estar pensando algo do tipo "ah, quer comer um dogão completo e um milk shake de Ovomaltine em todas refeições do dia come, não quer, não come", mas meu sonho é que fosse simples.


Ninguém vai me ver exaltando aquele tipo de vida das pessoas cuja personalidade consiste em avisar qual a série de treinos da semana (ainda me pego arredio à palavra 'treino' para significar "fazer ginástica/musculação: se está "treinando" para quê?), nem, tampouco, aquela pessoa que exala galhofa (mas oculta um descontrole melancólico) que diz não dar bola para nada, "vivendo como se não houvesse amanhã" (preguiça, sobretudo porque na maioria das vezes, haverá e é tudo um blefe).


Mas problemas de autoimagem e questionamentos similares (e tudo o que eles acarretam e ocasionam) não afligem apenas meninas de 13 anos fazendo teste para São Paulo Fashion Week, posso dizer com tranquilidade.


UM LIVRO: Demorei a ler "O Avesso da Pele" de Jéferson Tenório. Felizmente, o fiz quando meu exemplar já tem o adorno de um autógrafo simpaticamente assinaldo por ele na última Feira do Livro (a moça que adesivava os livros com os nomes dos pretendentes, na fila, colou um post-it escrito "Grabiel", mas Jéferson autografou para o cara correto). Uma narrativa comovente sobre relacionamentos, bem contemporânea que não usa meias palavras para discutir as questões de racismo e choques de realidade a partir de suas rupturas atinentes.


UM FILME: "Abraço de Mãe" é muito do que eu queria para pensar uma estética e um estilo do que viria a ser o "cinema de terror nacional". O Brasil é rico demais em folclora e escapamos por um triz de sermos um país em que os filmes de horror seriam fantasias às avessas de gringos envolvendo selva, curupiras, Anacondas e aquela coisa meio "cenário do Blanka" do Street Fighter II. O filme é por demais parecido com os filmes espanhóis da categoria: soluções que mesclam psicologia, suspense e filmagens práticas para driblar a ausência de efeitos especiais e a leva modorrenta de filmes gringos que não conseguem oferecer nada que não pareça requentado. Honestíssimo, e com Marjorie Estiano, que é uma bandeira de talento inegável.


UM DISCO: um amigo, ao longo desse ano que passou, trouxe ao meu conhecimento essa banda-duo magnífica e com um nome tão trivial que parece de personagem pouco inspirado de filme cafona: Hermanos Gutierrez. Eles próprios parecem inventados por uma inteligência artificial: dois irmãos (de fato) de ascendência equatoriana, porém nascidos em Zurique, Suíça, e com residência estadunidense, que fazem música instrumental à base de violões e guitarras-slide com pegada latino-psicodélica. A trivialidade para por aí. A música é sublime. Agradável. Sedutora. Provoca sensações e propõe. "Sonido Cósmico" é seu último trabalho em álbum, desse ano mesmo e é uma verdadeira joia rara. Só dê play. Em breve, a música se imporá e estará te conduzindo.

Foto do escritor: GabrielGabriel



A estrada - o asfalto, material (não uma metáfora ou canção idílica) - me matou.


Tempo é igual a: distância sobre velocidade ("desprezando-se o atrito", dizia o a questão no livro de física básica. Risos).


Falei em um podcast certa vez (e da última vez onde eu escrevia coisas a esmo em espaços assim como esse, podcasts não eram essa força popular, eu não era alguém cuja opinião – pensada ou improvisada à moda tiroteio – era escutada semanalmente no país todo), que gosto de andar por aí de mochila. Uso mochila por, basicamente, dois motivos:


Um: me desagrada ter mãos ocupadas enquanto caminho (e a vetusta ‘pasta’ de couro da época onde o ganha pão, perde o sono, dia e noite, era advocacia, e somente advocacia – durou 4 anos – se fazia, como a gravata, uma convenção a que se aderir);


Dois, e aí vem talvez o motivo caricaturalmente principal: desde pequeno tenho ganas de vagar around tal um personagem de RPG, um peregrino sem lenço e sem documento que encontra inimigos e interesses pelo caminho nas florestas, vales e vilarejos.


Real, oficial: a mochila é prática, acompanha seu corpo com adequação, livra suas mãos, e permite ‘itens’. Ando, bem verdade, com papéis, eletrônicos e garrafinhas d’água mais do que com mapas, chaves mágicas ou unguentos de cura – se bem que tenho uma mini-faca tática – afiadíssima - que comprei em uma loja de armas na Guatemala que – salvaje – me acompanha idem. Se, como na canção do Belchior, algum “punhal de amor traído” quiser me encontrar em alguma encruzilhada para dar fim às minhas andanças, vai haver ao menos uma peleia.


A fantasia pré-adolescente de explorar o mundo tal como um mapa de adventure e os exemplos correntes que me fascinaram à época (menções honrosas para “Phantasy Star” do Master System, os primeiros “Zelda” do NES e SNES e para os livros-jogo de Ian Livingstone, em especial, de coração, ao “Cidade dos Ladrões” - bem como ao filme Robin Hood de 1991 com o Kevin Costner) foram, na juventude tenra e adultez verde, substituídos por clichês de garoto branco de classe média como o livro inescapável do Kerouac (você sabe qual), imagens e canções (tive uma rápida fase de blues – adoro, mas definitivamente não é o terreno onde compro meu lote), e por ideias falsárias advindas de outros filmes. Só obedecemos à lei, da infinita highway.


(“Antes do amanhecer”: um sujeito de cavanhaque encontra do nada uma gata charmosíssima – Julie Delpy parece um pêssego, não vou elaborar - disposta a qualquer coisa com um estranho num vagão de trem, e rola simplesmente o maior e mais fofo dia não planejado de um giro europeu de todos os tempos. Pelo amor de deus, em que planeta isso não termina em desilusão, golpe ou sequestro?).


A questão do vagar por aí grinding o mapa desse mundo aberto onde meu personagem habita vai um pouco satisfeita com um hábito que quem me conhece tem por inseparável da minha personalidade: caminho mais por filosofia e exploração do que por 'exercício'. Caminho para pensar e falar sozinho, para ver coisas. Caminho drástica, compulsivamente por ruas, bairros e rotas ilógicas (não precisar fazer o mesmo trajeto de um automóvel é um presente que nem todos sabem aproveitar - tal uma bebida de sabor exótico).


Seguiram-se outros alimentos para o padrão ao longo dos anos: viagens de família em carro passaram a ser viagens entre amigos amontoados: surfe, pouco dinheiro, muita bebida barata, histórias publicáveis, outras não, sacolas, gorro de lã, improviso, caronas, perrengues memoráveis.


"A estrada" enquanto metáfora traz esse ar cult, inquieto, uma verdadeira ideia-força que resiste à prova dos séculos.


Ocorre que a estrada (enquanto quilometragem asfáltica - e por vezes terrosa) passou a ser minha vida desde 2008:


Família, um apartamento próprio a duras penas conquistado e uma vida toda em Porto Alegre, de um lado, trabalho (docência universitária) em Passo Fundo (289km) de outro. Para agravar: a Universidade tem campi espalhados em um raio de cidades vizinhas onde algumas parecem apenas bairros um pouco afastados e outras viagens sem volta e sem hora para chegar ao estilo dos vikings desbravadores.


Ando pouco de carro – um pouco por opção (habitante de centros urbanos: você se surpreenderia em como é fácil adequar sua rotina ao uso de transporte público, ao menos em parte, independentemente de onde você mora), outro tanto por retenção de gastos incômodos, então os ônibus e suas poltronas são meus companheiros simbióticos.


A firma me desloca de microbus ou van (às vezes de carro, até) entre compromissos docentes. Uma das piores e mais inconstantes empresas de ônibus operantes no Brasil me desloca (a preço salgado) entre Passo Fundo e Porto Alegre, uma estrada onde os anos que passam veem se tornar irritante e inexplicavelmente mais árduo o trajeto. Em 2008 era como um reloginho: quatro horas, cravado. Dava para sair às 08h da manhã de Passo Fundo e marcar um almoço ao meio-dia na capital.


Obras, acidentes (em nível assustador), afunilamentos (há um trecho de serra a ver vencido) e a erosão (nesse preciso trecho) advinda, especialmente esse ano, das chuvas que causaram no Rio Grande do Sul aquilo tudo que vocês têm ciência, tornaram o percurso um pandemônio: seis horas. Sete horas. Oito horas. Houve um dia em que um acidente monstruoso e a necessidade de optar por um desvio maluco e insólito fizeram o trecho durar onze horas. Dava para ir para o Japão em situação de menos desconforto.


Dezesseis anos. São dezesseis anos desde que fui aprovado em um processo seletivo e decidi que ia encarar essa estrada, semanalmente, para ver como seria a experiência de ser professor em uma grande instituição e “qualquer coisa peço desligamento semestre que vem e vejo o que faço”.


Tarde, manhã, chuva. Sol, frio inclemente. Paradas para almoço, paradas de madrugada. Lanches ruins. Suco. Cerveja de garrafa. Pessoas perdidas, indígenas vendendo artesanato. Troca de pneu em ranchos insalubres. Árvores que dobram com o vendo. Calor úmido.


Não vejo mais graça em nada isso. Estou ‘curado’. Ver o mundão de uma janela que corre não tem mais qualquer sentido, ao ponto de (somadas as semanas em que há algum compromisso profissional extra que implique em avião ou em outras rotas) costumo dizer mais do que gostaria que meu sonho é dormir quatro dias seguidos na mesma cama.


O soco na cara dado pelo capitalismo é impressionante.


Desculpe Ian Livingstone, personagens erráticos de standards de blues, parceiros fictícios com quem descobriria uma onda perfeita e vazia em algum lugar da Baja California, foi mal: fiquei pelo caminho. Vou pedir um rango no Ifood e ver um episódio repetido de alguma série que já assisti. Julie, meu pêssego: não vou poder hoje, mas a gente vai se falando. Não é você, sou eu.


Quero dormir.


UM FILME: “Tipos de Gentileza” é um exercício ousadíssimo de Yorgos Lanthimos, mesmo para quem está acostumado com seu terror (sim, batizo assim) moldado a base de situações inimaginavelmente descontroladas. Após o sucesso pop merecido com o adorável “Pobres criaturas”, o cineasta de coisas cruéis e grotescas como "O sacrifício do cervo sagrado” (assistam, por favor) meio que pode fazer o que quiser – ainda mais se contar com a magnética Emma Stone, e se dedica aqui a um trio de histórias bizarríssimas que contam todas com o mesmo (e poderoso) elenco, embora não tenham link direto de roteiro entre si. Arrastado, demorado, mas vale à pena inclusive assistir um seguimento por vez. Sou fã.


UM LIVRO: “Páradais” de Fernanda Melchor. É uma novela curta e ligeira, mas com um impacto sensorial até perverso. A descrição naturalística que a mexicana faz do ambiente, dos personagens, dos detalhes como as dobrinhas suarentas e os farelos de salgadinho ao redor da boca do gordinho escroto (com “voz de apito”) que é o parceiro de não-fazer-nada-juvenil do protagonista são absolutamente impressionantes. A autora nos tortura. É pesado. Cruel. Real. Jogado na cara. No condomínio de luxo “Paradise” vai acontecer uma merda gigantesca motivada o mais imbecilmente possível. Até lá, ela nos brinda com amarguras dos muito pobres, deboche do cotidiano dos muito ricos e nenhuma sutileza.


UM DISCO: “Gnx” de Kendrick Lamar é rap. Rapzão. Daqueles. Parece estar alheio à influência do trap jovem, dos padrões do TikTok, dos trending topics (embora as letras mostrem K Dot rimando sobre coisas, fatos e pessoas bem atuais). Rap. Rapzera. Rapzudo. Veio de algum outro momento no tempo e no espaço, mas não é datado, nem saudosista. Kendrick é quem faz o estilo ainda existir bem, obrigado. Seus mestres viraram algo meio comédia. Ele não vai por essa linha. Graças a deus. É rap para você se sentir do mal. Para querer acertar as contas com alguém. Para malhar como se estivesse se preparando para a guerra. Do tipo que te leva ladeira acima na força da raiva. É o que tem que ser.

Foto do escritor: GabrielGabriel

Atualizado: 6 de dez. de 2024




Dia desses fui resolver algumas neuras de um dos mais eficazes jeitos que conheço, que é – munido de bomba de inflar – comparecer a alguma quadra de basquete de rua com minha bola na mochila para treinar arremessos e bandejas a esmo ao raiar do dia.


Nada mais clichê ridículo de série televisiva adolescente, mas, garanto, eficiente: estava eu, de bermuda e moletom preto de capuz, sozinho, com cara de poucos amigos e muitas amarguras existenciais, no assoalho vazio marcado pelo compasso de quiques da bola.


Nos seriados televisivos em questão, há uma mecânica de roteiro e um tropo que nos induz em uma constante dinâmica onde, no início do episódio ou ciclo, o personagem vai errar e errar, a ponto de haver a metáfora usual da bola dando aro para algum impasse pessoal e emocional, ao tempo, insolúvel.






Os manuais de script padrão dão conta do problema com alguma resolução/admissão ou descoberta que retro-simboliza o caos interno do personagem se aplainando, solucionado em dado momento e galvanizado com a bola, na hora do jogo, para valer, nos segundos finais, entrando (de três), mudando gloriosamente o placar.


Na real nada é tão simples.


Pensei nisso e pensei no fato de que não existe o conceito de 'pick me boy', apenas o de 'pick me girl' – você sabe, a garota, aquela, que está planejadamente exibindo referências e sinais para que seja notada como se disso dependesse sua vida e sanidade. A garota lendo o livro-ref, vestindo a camisa de banda-ref, usando a eco-bag-ref, todas meticulosamente arquitetadas para atrair a atenção de alguém (um homem), sem qualquer possibilidade de ser autêntica ou de querer tirar (neutramente) alguma onda, default. Não. Ela quer aparecer para algum homem e ponto.


Pois: não há, correntemente, o conceito de pick me boy. Ele pode estar de moletom preto de capuz exalando desgosto e tormenta sentimental arremessando uma bola sozinho em uma praça – o que lhe confere um charme amargurado e profundidade, mas de forma alguma é tido por um homem pick me ou em busca de alguém que miseravelmente perceba nele algo especial. O esportista diletante, mas que lê Leminski. Ele é malandro, mas tem um bom coração. Olhos semi-cerrados, algum mistério ou dor do passado. O que o leva a ir lá sozinho na brisa da manhã? Aquela coisa.


Com as redes sociais, acredito eu, o próprio conceito empobreceu (até porque qualquer ref é atingível a uma pergunta para algum aplicativo de distância). Mas não o superamos, fomos, sim, engolfados por ele: adequamos nosso layout e nossos cartões periódicos de visita ao que todos querem. Viramos todos, em certo grau, pick me, desesperados, buscando destaque e atenção tal a vendedora esperando a comissão de final de ano que comunica clemência com cada olhar.


A imagem de perfil, a foto de capa, os posts falsamente despretensiosos sobre um cotidiano que berra merchandising - ou que pede socorro.


Há muito se diz que a internet mudou de vez quando as pessoas pararam de frequentar (‘ir’) a sites de sua preferência como quem dá a volta no quarteirão, e passaram a receber conteúdo mediado por máquinas treinadas por sua própria leniência meio atrofiada. O seu avatar não é mais um aventureiro idílico e ativo, mas um conjunto de decisões hipotéticas que você tomaria estático no sofá.


O meio segundo da (tentativa de) captura do interesse é um mar de perdição nesse universo meio estranho de imagens e scrolling infinito de vídeos com gritos histéricos, frenéticos, onde a estratégia – contraditória– é se diferenciar, não se diferenciando tanto, assim, para não virar pária.


Mais estranho ainda é propor algum tipo idealista – ou bobo, ou pretensamente vintage - de comunicação que não está lastreada por algoritmo e não prevê qualquer forma de acúmulo capitalístico a partir de coprodução de trabalho em termos de ‘repost’ ou ‘quote’. É um blog. Nada mais esquisito.


Mas, “e uma newsletter”? Incríveis, várias delas. Assino poucas, e as amo. Isso aqui deveria virar uma? Possibilidades (há logo ali em baixo um espaço para você - por sua conta e risco - inscrever um email para saber quando haverá textos atualizados). Entretanto, seu tom oferecido, invasivo, despejo de caçamba via email, no seu quintal, também não interessa, por hora. Trata-se, isso aqui, de um bar perdido em uma estrada freak. Um hotel bizarro com um cadáver de uma velha maluca empalhado em uma janela, em uma rodovia abandonada. Um armazém esquecido e pouco frequentado. Estático, como nada mais parece ser possível de estar. Adequado a um filme B.


Um lugar onde se deve ir. Algo que despudoradamente não vai a você.


Se contarmos alguns rudimentos em 2003 a magia se dissipa, então prefiro a versão oficial de que minha primeira experiência escrevendo coisas de tom pessoalizado para o universo – hmm, blog – foi em 2004. Emblematicamente, completam-se 20 anos e alguns dos tons daquilo parece que retornam à luz do dia como uma múmia evocada por uma terrível maldição: o caráter de pensamento solto, mas sem a urgência insólita do engajamento instantâneo, nem a necessidade voraz dos feedbacks em forma de ‘likes’ ou ‘comments’ ou ‘replies’.


Um texto. Assim, largado. Assim, abandonado ao universo como um sinal de ondas curtas capaz de ser captado anos depois, fantasmagoricamente.


Alto teor de desespero? Talvez. O quão cool é se esconder fingindo que se expõe pagando de quem se esconde?


Vampiros fingindo-se de humanos fingindo que são vampiros. Avant garde!”.


Enfim.


Vai aparecer alguma coisa aqui, semanalmente, que não é teor ligeiro de redes sociais (há uma que tenho frequentado, como podem ver aqui), nem textos com precisão acadêmica (meu trabalho me obriga a gastar esses em lugares como aqui).


Apareça para tomar uma Coca-Cola e encher o pneu. É o último posto em milhas e milhas, garanto.


Pick-me.


****

Um filme: SEBERG (EUA, 2019, Benedict Andrews). História contada à moda cinemão, mas bem convincente, da desgraça da musa da nouvelle vague, Jean Seberg e da perseguição sofrida por ela pelo FBI após decidir apoiar movimentos sociais radicais como os Panteras Negras nos EUA do final dos anos 60. Justiça para uma grande figura – por vezes obscurecida, ainda que com algum tipo de freio de mão puxado.


Um livro: VALE DA ESTRANHEZA, Anna Wiener. Pelas tantas algo que parece um relato crítico quanto a um punhado de fatores com os quais você convenientemente concorda se você não for um(a) alienado(a). Vai se agudizando a ponto de nos sufocar exibindo a escabrosa face imbecilóide do capitalismo atual. É uma espécie de Germinal hipster. Eu utilizaria fácil em aulas contemporâneas de estudos de direito trabalhista.


Um disco: Sophie Thatcher, a trash-musa junkie de Yellowjackets, parece seguir à risca a tradição das atrizes-problema (como Juliette Lewis, a quem interpreta em versão colegial, na série) e cava seu holofote de modo variado. Lançou um disco (EP) de algo como dream-pop-deprê-fim-de-festa (PIVOT & SCRAPE) na linha de várias garotas tristes (pick’em?) da geração. “Black and Blue” e “Go On” são incrivelmente boas.

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