Final de ano, aquela coisa: convites abundantes e (quase) impertinentes para eventos massivos que envolvem comilanças e beberagens fora do prumo normal e causam um certo pânico em algumas pessoas. Bom dia, meu nome é Gabriel e eu sou um desses ("...Bom dia, Gabriel...")
Diego Maradona disse certa vez que não existe um ex-viciado em cocaína, e, sim, um viciado que luta diuturnamente para vencer (por uma sucessão sudorífera de instantes) essa condição.
Lido de modo parecido com comida.
Muito disso, hoje em dia, tem um orgulhoso caráter que gira em torno de saúde e meus planos quanto a esse fator, mas obviamente envolve também uma questão psicológica de autoestima. Na foto acima, tirada na Ilha do Mel-PR, ao lado de um grande parça, visto uma camisa dos Ramones que comprei pouco tempo antes, em 1994, na lendária Megaforce da galeria na Avenida Independência, em Porto Alegre, e encontrei em um armário na casa de praia dos meus pais esses tempos. Ainda me serve - embora em algum desses 30 anos, não me serviu.
A memória que tenho, vívida, desse dia, é que eu não queria tirar a camisa, porque, na minha cabeça, eu era gordo e ia pagar mico para as gurias. Vi as fotos dessa viagem várias vezes, mas foi meio que recentemente que atentei para o fato de que eu era positivamente diferente do que eu tinha certeza que era.
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Eu ando volta e meia de 'dieta'.
(ou algo que o valha)
Um pouco por necessidade, um pouco por uma espécie de profissão de fé assumida, um pouco pela minha ânsia quanto à escassez.
Eu explico: quem já ficou liso, sem grana, conhece um tipo específico de pavor que não desejo a ninguém. Some-se a isso (ou cria-se com isso, não importa) uma verdadeira compulsão por manter reservas, fundos de emergência, segurança, paraquedas, botão do pânico. Em tudo na vida, com algum pesar e um tanto de constrangimento, deixo para lá a cigarra artista fala mansa/boa vida e assumo que sou mais para formiga. Sim, a formiga. Sim, eu sei, aquela formiguinha meio reacionária, vingativa. Formiga filha da puta que pune a cigarra pelo seu viver leve, usando a ética protestante do trabalho como fator moral. Superioridade. "Eu te avisei" - a frase predileta de homens brancos hétero de uma geração ou duas acima da minha, dita com gosto repartido entre a inebriante sensação de estar certo e a inconfessável e prazerosa constatação de que o outro foi por conta própria, e se deu mal. A formiga é a vilã da história, escorada em sua suposta prudência que dá azo à fábula.
Sou fanático por reservas, provimentos, mantimentos. Por vezes tenho medo que o orçamento do meu time de futebol do modo franquia no videogame tenha que inflacionar salários demais e vá à falência. Controlo o budget de duas, três temporadas para frente. Vendo jogadores pensando no longo prazo. Esquematizo, à moda da governamentalidade (ironia).
Quando completei 40 anos (há 5 atrás, portanto) decidi que ia levar a sério as questões de saúde, forma física e bem estar como em nenhuma outra etapa da minha vida. Brincando, mas com uma ponta de desespero flagrante, comparo com uma bifurcação na estrada onde em um lado do y estaria um caminho adornado com uma placa dizendo "vamos tentar mais 40?" e outra, na mão oposta, refletindo os dizeres "o que vier é lucro". Optei pela primeira, sem qualquer garantia de nada, mas com prognósticos baseados em prudência formiguística. A reserva aqui é de tempo. Alea jacta: tudo incerto. Um raio ou um bêbado que troca de pista, amanhã ou depois, periga abreviar tudo. Coisas que surgem sem mais na maquinaria inacreditável do nosso corpo, idem. Mas: é infantilóide dizer que esses fatores fazem com que não se tenha que tentar e simplesmente se lançar em um destino randômico que parece aventura ao sabor do vento, mas é uma inconsequência medrosa, na real. Estocar tempo - como vento na célebre passagem da Presidenta (que estava corretíssima). Ganhar qualidade de vida. Se sentir bem. Perseguir o sonho dourado da humanidade que consiste em uma velhice dotada ao mesmo tempo da sabedoria do Diabo dos anos - tal a advertência de Martin Fierro - e de (algum) vigor físico que não torne o mero levantar da cama uma tormenta.
Sim, faço dieta e exercícios constantes mais para tentar equilibrar algo no organismo do que eventualmente para querer ser algum tipo de modelo fitness fisicultor à moda que anda em voga hoje em dia que não sou e não tenho a menor vontade e saco de querer ser.
Nem tudo são flores, bobagem e ilusão bad trip: por vezes me achei gordo e malcuidado, e estava. Por vezes inclusive estava pior do que eu achava, no quesito. Tem gente que tem facilidade para muita coisa (língua estrangeira, crochê, pintura). Eu tenho, biologicamente, para ganhar peso. Mas, em compensação: tem gente que tem que fazer hemodiálise toda semana. Eu 'tenho' (por autoimposição) que fazer exercícios (eu gosto) e dieta (não tanto). Trocas.
Em um dado momento, se você não me conhece pode pensar que você está lendo algum tipo de neurótico. Calma: eu procuro, digamos, maneirar de forma straight. Sou um grande maneirador. Maneiro como ninguém. Não é algo militaresco. Ao final de semana vou ali e como fatias de bolo, bombom, pizza e chopes. Chocolate - para mim - é um problema similar àquele (do Maradona): é melhor eu não comer o primeiro quadradinho. Não parará. Não abro mão dos prazeres da mesa e fico satisfeito com o tipo de vida que quero levar, onde há algum nível de proveito que consigo fruir sem qualquer tipo de culpa. Mas aqui o cheque-especial é cruel nos juros.
Uma das coisas mais auto aflitivas que pode existir é você (tentar) estar em dois lugares ao mesmo tempo, (tentar) ser duas pessoas ao mesmo tempo e (querer) acochambrar decisões antagônicas. Com a comida fico preso nesse vórtice: adianta tomar o achocolatado light junto a uma fatia de torta (dark)? Adianta comer frango grelhado e salada para depois de lançar na sobremesa mais aviltante. O que é redução de danos e o que é uma espécie de lusco-fusco barroco de culpa cristã em relação aos prazeres alimentícios?
E, principalmente: onde a competitividade pré-programada mentalmente da racionalidade neoliberal te atinge? (porque, sim, ela te atinge): será nas compensações e na necessidade de anunciar aos quatro ventos que a academia da semana "tá paga" para justificar o croissant de doce de leite (que não se pode deixar de fotografar e - ato contínuo, não se pode deixar de publicar), ou será no post do pudim de leite condensado como prêmio público para a vitória da semana? É engraçado reparar que as pessoas por vezes publicam coisas na internet não como se quisessem obter algum tipo de ganho com a publicização da informação e sim como se fosse uma espécie de obrigação externa. O cara anuncia que está se fartando com uma espécie de justificativa pronta tal como se houvesse uma Receita Federal das calorias ansiando por um recurso arrazoado para analisar o caso e aplicar algum tipo de multa.
No meu caso, me sinto mal quando algum tipo de esbaldar não redunda em compensação ou métrica oposta. Exagero em ambos lados, fácil de se perder.
E o pior é a maior das armadilhas do 'ex-viciado': a abertura de exceções que por vezes viram um festival de pequenas brechas 'contratuais' que escalam para uma espécie de estado de anomia total e fica parecendo que um dia fora da curva engata no outro tal e qual um carnaval baiano da falta de regulação e quando se vê - a título de soltar um pouco a correia e "se dar um presente", o sujeito sofre como se tivesse que passar os próximos dias pagando uma conta de um empréstimo infundado feito às pressas de forma imatura.
(Poucas cenas do cinema contemporâneo me prenderam tão fortemente quanto aquela do "A Baleia" onde Brendan Fraser percebe que o tom alarmante de sua condição cardíaca e física era tão desesperador que ele não hesitou de forma alucinada ao devorar um chocolate que encontrou em uma gaveta - ao contrário do que se poderia pensar que era o correto. Não havia forças para nada ali. Sua vida há muito virara um buraco negro desse tipo de exceção).
Você que não convive com esse tipo de raciocínio embutido de fábrica deve estar pensando algo do tipo "ah, quer comer um dogão completo e um milk shake de Ovomaltine em todas refeições do dia come, não quer, não come", mas meu sonho é que fosse simples.
Ninguém vai me ver exaltando aquele tipo de vida das pessoas cuja personalidade consiste em avisar qual a série de treinos da semana (ainda me pego arredio à palavra 'treino' para significar "fazer ginástica/musculação: se está "treinando" para quê?), nem, tampouco, aquela pessoa que exala galhofa (mas oculta um descontrole melancólico) que diz não dar bola para nada, "vivendo como se não houvesse amanhã" (preguiça, sobretudo porque na maioria das vezes, haverá e é tudo um blefe).
Mas problemas de autoimagem e questionamentos similares (e tudo o que eles acarretam e ocasionam) não afligem apenas meninas de 13 anos fazendo teste para São Paulo Fashion Week, posso dizer com tranquilidade.
UM LIVRO: Demorei a ler "O Avesso da Pele" de Jéferson Tenório. Felizmente, o fiz quando meu exemplar já tem o adorno de um autógrafo simpaticamente assinaldo por ele na última Feira do Livro (a moça que adesivava os livros com os nomes dos pretendentes, na fila, colou um post-it escrito "Grabiel", mas Jéferson autografou para o cara correto). Uma narrativa comovente sobre relacionamentos, bem contemporânea que não usa meias palavras para discutir as questões de racismo e choques de realidade a partir de suas rupturas atinentes.
UM FILME: "Abraço de Mãe" é muito do que eu queria para pensar uma estética e um estilo do que viria a ser o "cinema de terror nacional". O Brasil é rico demais em folclora e escapamos por um triz de sermos um país em que os filmes de horror seriam fantasias às avessas de gringos envolvendo selva, curupiras, Anacondas e aquela coisa meio "cenário do Blanka" do Street Fighter II. O filme é por demais parecido com os filmes espanhóis da categoria: soluções que mesclam psicologia, suspense e filmagens práticas para driblar a ausência de efeitos especiais e a leva modorrenta de filmes gringos que não conseguem oferecer nada que não pareça requentado. Honestíssimo, e com Marjorie Estiano, que é uma bandeira de talento inegável.
UM DISCO: um amigo, ao longo desse ano que passou, trouxe ao meu conhecimento essa banda-duo magnífica e com um nome tão trivial que parece de personagem pouco inspirado de filme cafona: Hermanos Gutierrez. Eles próprios parecem inventados por uma inteligência artificial: dois irmãos (de fato) de ascendência equatoriana, porém nascidos em Zurique, Suíça, e com residência estadunidense, que fazem música instrumental à base de violões e guitarras-slide com pegada latino-psicodélica. A trivialidade para por aí. A música é sublime. Agradável. Sedutora. Provoca sensações e propõe. "Sonido Cósmico" é seu último trabalho em álbum, desse ano mesmo e é uma verdadeira joia rara. Só dê play. Em breve, a música se imporá e estará te conduzindo.