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Anestesia

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • há 4 horas
  • 5 min de leitura
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A condenação do principal núcleo da trama golpista de estado pelo STF ontem colaborou para uma espécie de estágio de dormência do espírito em um sentido estranho e bom que me afligiu essa semana.


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0010110101100111011001101 Porto Alegre, sexta feira itself, algum momento do início da tarde após o almoço e antes de um outro compromisso - incríveis sol e 21 graus (positivos, acredita?). Até corri no parque de manhã cedo escutando uma entrevista sobre advocacia e mundo corporativo das novas tecnologias, após comer mamão com aveia (bem personagem em começo de filme, quando tudo parece certo).


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Tive uma reunião de assuntos de trabalho ontem em uma Secretaria de Estado aqui do RS. Em boa parte, as Secretarias se localizam em andares/setores do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF).


O Centro Administrativo Fernando Ferrari é um mitológico e peculiar exemplo arquitetônico da cidade: um edifício projetado e cuja construção se deu em meados da década de 1970 e cuja inauguração oficial foi ocorrer quase dez anos depois. É enorme, imponente e tem como principal e marcante característica o fato de que do meio até o térreo da estrutura os dois anexos que o compõem vão se derramando sob o solo em formato curvo, fazendo com que ele se pareça com um tipo engraçado e surpreendente de rampa.


Quem vive aqui e viu esse prédio desde que se conhece por gente, como eu (sou mais velho que a inauguração), já acha meio normal, mas fui acometido por um sentimento diferenciado ao pensar nele mais do que já detidamente o fiz em toda vida. De fato, olhando de longe em alguma imagem de alguma aba do google, ele parece uma coisa meio que colocada ali no cenário por algum truque de edição - ou mesmo um daqueles prédios arrojados de fotos antigas de países da cortina soviética.


A questão central é que a piada, brincadeira, sugestão imaginativa ou meme, no sentido aquele no qual o picareta Richard Dawkins criou o termo - "(...) an idea, behavior, or style that spreads by means of imitation from person to person within a culture and often carries symbolic meaning representing a particular phenomenon or theme" - que todo portoalegrense e/ou habitante da cidade já teve em relação ao prédio gravita em torno da questão: imagina alguém descer de skate (/patins/patinete/carrinho de rolimã/tapete de eskibunda - tanto faz) o Centro Administrativo?


Bem. Está acontecendo.


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Há dias estão ocorrendo testes patrocinados pela famosa empresa de bebidas energéticas associada a um imenso número de práticas esportivas - não raramente aquelas "radicais" ou que movimentem riscos e adrenalina em alta rodagem - onde uma rampa foi instalada contígua à imensa parede do prédio (119 metros) e um conhecido e veterano campeão do mundo do skate tem feito testes em uma janela específica de tempo para em algum momento breve e incerto, promover a descida que concretizará a façanha.


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Foi em meio a uma conversa nas redondezas, domingo passado, que percebi o quão surreal e inimaginável é a possibilidade de isso acontecer de fato, e quando olhava para o prédio, de longe, com as peças promocionais gigantescas à vista, me dei conta que esse tipo de coisa é uma realização fantástica de algo que permeou a mente e o inconsciente (meu e de quase todo mundo que conheço), e sempre se verificou no registro da piada boba, ou da imagem caricatural, ou da hipótese do fisicamente impossível. O impacto de saber que não só é (teoricamente) viável como que fatalmente ocorrerá - e logo - é, sem brincadeira, algo que chega em minhas sinapses de uma forma que - imagino - é parecida como a de quando alguém via pela TV que naquele instante havia um sujeito pisando na lua.


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Não pude assistir toda a votação no STF ontem por conta dessa agenda que me colocou (e havia muitíssimo tempo em que não tinha nenhum compromisso que me fazia ir até o CAFF) frente à frente com aquele monolítico edifício e suas rampas de muito perto. Cara a cara. E foi ali, desde o estacionamento, que tirei com meu celular a foto que encabeça essa postagem.


Muita gente fotografando. Muita gente com o mesmo sentimento. E mesmo quem trabalha lá e já entra e sai da boca do gigante sem sequer notar se faz chuva ou sol - dos altíssimos escalões ao pessoal terceirizado e braçal - tinha esse assunto na boca.


Surreal. Onírico. Uma coisa meio feira de interior nos anos 1950. Uma cidade toda presa em respiração esperando algum ás (ou maluco) realizar alguma coisa espetacular pela simples provação de o fazer. Uma preocupação/empolgação absolutamente artificial, inventada, mas que mexe conosco de um jeito quase inescapável.


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Bolsonaro e outros desprezíveis tomaram parte do que realmente merecem a partir de uma decisão judicial. Falta muita coisa ainda, mas há por baixo das camadas de torcidas, ódios, piadas, brincadeiras e hype viral desse tema, uma coisa também meio onírica. Um quê de coisa que imaginávamos, especulávamos. Queríamos. Um quê de coisa que também dá uma espécie de pause no sentido comum dos acontecimentos. Uma espécie de sentimento de flutuação. Algo aconteceu. Algo está no ar. Mais do que um julgamento ocorrendo, mais do que eventual crença isolada e ingênua de que as instituições funcionam. Algo da ordem de como essa imagem e essas palavras penetram em nós como uma rainha e sua comitiva adentram oficialmente à corte: dotadas do peso imponente do realmente acontecido. Do fato dado.


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É esse tipo de comunhão estranha - que está no ar - que não se deve perder em termos de imaginação política. É acessar esse nível de desejos e especulações. É esse mostrar que é possível certas coisas, é esse tornar crível algo que parece impresso em 3-D desde nossas fantasias mais dementes, que devemos buscar. É esse nível de entorpecimento leve, essa coisa tipo anestesia, tipo o brilho do drink na medida certa nos primeiros goles, que tem o poder de nos fazer suportar quase tudo. E nos move para além da inércia afetiva, filosófica e imaginativa, tal e qual a maior das teias de aranha, que é pródiga em nos capturar na gosma da infelicidade.


UM FILME: apesar de ter um filme do Bergman igualmente recomendável com o mesmo nome em português (Vargtimmen em sueco, Hour of the Wolf em inglês), me refiro aqui ao que assisti recentemente, A hora do lobo (The wolf Hour) de Alistair Banks Griffin, 2019. Se me perdoarem a referência a mais um outro filme nesse ainda curto parágrafo, a referência a um dos meus preferidos, O Verão de Sam, de Spike Lee é inevitável: nesse, de Griffin, Naomi Watts é uma escritora com problemas psicológicos, sociais e financeiros que, durante o fatídico verão (que é o 'personagem' principal do filme de Spike Lee) de 1977 em Nova Iorque, vive reclusa em um apartamento enquanto uma onde de calor infernal, uma temporada de saques e criminalidade elevada, de falta de luz e de colapso dos sistemas públicos de limpeza, ainda convive com o medo de um serial killer à solta na cidade. É como se paralelamente ao filme de Spike Lee, alguém tivesse uma espécie de spin-off ou extra de uma hora e meia, sob um outro ponto de vista. Grata surpresa.


UM DISCO: escutando, com mais calma do que perto do lançamento, o Fine Art do Kneecap, do ano passado. É incrível o nível do deboche de qualidade. Temos, enfim, algum trio despudorado e ácido que parece estar, com algum atraso na corrida de revezamento, apto a carregar o bastão passado pelos Beastie Boys.


UM LIVRO: terminei o da semana passada e não comecei nenhum. Pendurem essa na conta, por favor.

 
 
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