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Tyler e o shape

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • há 8 horas
  • 6 min de leitura
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Tem cada uma que parece duas - ditado outrora popular


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Passo Fundo, faltando pouco tempo para iniciar o trâmite para Porto Alegre (289,1 km, livro, podcasts baixados, pensamentos), 18 graus e sensação térmica de, pasmem, o mesmo (há tempos eu não via isso). Mais do que uma 'onda de calor' no final do inverno eu chamaria de onda de temperaturas civilizadas. Camiseta. Sim, acredite, camiseta (nem lembrava como era).


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Não se sabe mais o que é mentira e verdade - aquela coisa - do que rola pela internet e chega até nós na velocidade freak que caracteriza nossa era, mas dia desses 'viralizou' um print de uma mensagem privada de Instagram onde a academia onde ele faz musculação ("treinar" é um termo tão estranho, não? Sempre seguro o impulso boomer de perguntar "para quê"? quando a pessoa avisa que estava "treinando") solicitou que ele não marcasse o perfil do recinto em suas fotos e que a dita conta não iria repostar elas até que ele estivesse com um "shape" melhor e não vergonhoso.


Do mesmo modo, uns meses atrás, circulou outro print onde homens gays (ou assim presumivelmente) de uma comunidade de amigos/conhecidos discutiam sobre a possibilidade de irem ou não a um certo evento/festa mesmo "não estando no shape", e debatiam sobre o eventual julgamento que sofreriam. Alguns resignados, diziam que iriam ainda que sabiam não ostentar o shape ideal, outros se recusavam a ir para evitar desgastes e houve quem ponderou que estava justamente entre ciclos de uso/pausa na ingestão de esteroides e que não conseguiria ciclar de maneira satisfatória para obter o shape até a data marcada.


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Um amigo que vendia seguros disse que teve uma reunião meio insólita com um cliente porque esse recusou a firmar a apólice dado que exames rotineiros que deveriam ser feitos para instaurar o plano de seguro de vida certamente apresentariam alterações esdrúxulas dado que ele estava ciclando com vistas a ir em uma badalada praia europeia dentro de algum tempo ostentando o shape e que preferiria submeter a proposta em outro momento do ano.


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O músico americano Tyler, The Creator dificilmente acredita no que ele próprio publicou em seu perfil no Twitter quando disse, certa vez, irônico, que "não existe cyberbullying" porque bastaria a pessoa abaixar a tela do notebook, ou desligar o celular para que ele acabasse.


Certamente a afirmação pode ser lida como bobagem ou até com um grau meio revoltante de insolência - dado que é, de fato, uma tolice - mas há um ponto que me captura nesse raciocínio um tanto pobre.


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Há um certo nível deprimente de angústias que algumas pessoas habitam porque querem.


Infelizmente não todos, infelizmente não sempre e infelizmente há coisas que vão além da nossa vontade/capacidade em nível tanto social, relacional e biológico.


Porém há coisas que nos enredam porque queremos ou aceitamos, e o truque é sermos diariamente convencidos de que elas residem na esfera do inevitável.


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Seria meio "Tyler" da minha parte dizer que os gays debatendo a suposta polêmica do shape para a festa simplesmente deveriam se ocupar de outras coisas: não posso escolher por essas pessoas qual a festa, o evento, a data ou as companhias que elas consideram tão essenciais e pelas quais tanto anseiam a ponto de determinar que elas não deveriam se preocupar com isso. Mas, sei eu: não é possível que não exista outra galera, outro lugar, outra festa, com outras pessoas interessantes e desejáveis livre de qualquer tipo de imposição neurótica que causa ondas variadas de sofrimentos.


Sei lá, deve haver outras bocas satisfatórias para beijar na cidade e/ou outras sungas brancas no aguardo e alguém para dançar agarradinho na areia com menos julgamentos enervantes.


Ser aceito - evoluindo para ser desejado(a) - é realmente uma coisa muito boa na medida em que o contrário parece um abismo escuro, por vezes. Mas é realmente factível que as pessoas levem algum tipo de pressão nesse sentido ao nível do sacrifício corporal, no mesmo estilo que um piloto de corridas ou que um nadador olímpico simplesmente desista quando larga cometendo algum milimétrico erro que o faz perder centésimos e abandonar a prova diante da já inicial impossibilidade de bater o recorde mundial?


Não depende só de você - do que você quer, almeja ou desdenha - Tyler, esse tipo de coisa, mas custo a acreditar que haja algum tipo de peculiaridade sequestradora em algum evento, happening, local ou ambiente que necessariamente imponha esse tipo de coisa, fora da boa e velha ansiedade compartilhada e alimentada coletivamente. Não participei da conversa em questão, e não sei de eventuais desdobramentos, mas custo, idem, a acreditar que em algum momento algum amigo(a) não tenha escrito alguma coisa, como o estalo do hipnotizador que cessa o transe, no sentido de que todos ali pareciam malucos questionando soluções, sacrifícios, desdéns, desistências sem em nenhum momento perceber a loucura de tudo aquilo - ou sem em nenhum momento cogitar largar de mão de uma galera absolutamente cretina que demanda um shape específico para além de uma padronização estética e social (e política, não esqueçamos). E não estamos falando de pessoas fora de padrões mínimos (já opressivos, por vezes, o que é outra discussão). Estamos falando de pessoas que já obedecem a todos esses contornos, mas que foram se deixando levar ao nível de que ser menos do que um tipo de medalhista olímpico já não basta. As pessoas viraram carros de Fórmula 1.


Não cabe ao Tyler decretar o fim dos julgamentos e dos sofrimentos a eles relativos, mas há um certo nível de entrada onde podemos perceber uma série de coisas mantidas exclusivamente porque queremos não só compartilhar da ambiência de sua manutenção como acabamos, assim, trabalhando para ela.


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Diabo desse conceito de comum e desse conceito de trabalho no sentido biopolítico que, para o mal, funcionam que é uma beleza.


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A academia, aquela, eu nunca mais frequentaria, se fosse o rapaz do (suposto) shape de fim de feira.


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Na minha academia, e talvez por isso eu dure tanto lá (7 anos, sendo que dois, antes, interrompidos por um hiato) não acontece nada de muito grave, tipo 'banheirão' escandaloso, marombas que não usam cueca e deixam um rastro de suor de saco no banco do supino ou gente competindo em silêncio em um campeonato mental meio obscuro. O grande problema é a trilha sonora que abusa de electronic-funk-agronejo em remixes tenebrosos.



UM LIVRO: nas minhas perenes e constantes (ainda mais atualmente) leituras sobre Mark Fisher e seu universo temático circundante, finalmente consegui semana passada, ler Do realismo capitalista ao comunismo ácido, de Antônio Galvão, publicado pela Autonomia Literária e me presenteado com muita gentileza pelo autor. Se você quer começar a entender a lógica fisheriana, corra para esse exemplar. Se você já conhece a lógica fisheriana, não há problema: há muita coisa boa e instigante aqui também. Um grande êxito.


UM DISCO: serei sincero e vou recomendar um disco que ainda não ouvi. Que aliás parei de escrever isso daqui para fazer o download, quando o aplicativo maldito me deu uma notificação enquanto respondia uma mensagem - ah, o mundo cyber: Tron:Ares é a trilha sonora do vindouro terceiro filme da franquia por conta de Trent Reznor em sua mais famosa encarnação, o Nine Inch Nails. O filme anterior (Tron:legacy, uma baboseira grotesca, embora visualmente estonteante) carrega uma trilha sonora sublime, magnífica, em espécie de ópera-eletrônica por parte dos craques incontestáveis do Daft Punk. Aqui pegaram pesado de novo. Posso estar errado, mas verei (289,1 km) e acredito que após retornarei para dizer para vocês que merece, mesmo, a recomendação ahead of.


UM FILME: descarte o tom Disney/pueril do filme de 2010 - apesar, repito, do visual apaixonante e da trilha - e se aventure em Tron, de 1982, uma ousadíssima tentativa de configurar na tela um ambiente de programação por dentro quando ainda não se tinha qualquer exemplo popularizado de o que poderia ser o cyberespaço. A premissa meio boba do filme e sua solução inicial de roteiro para um camarada (Jeff Bridges) ir parar dentro de uma espécie de internet precária que nem isso era é meio irritante, mas garanto que a feiura simpática e factível do cenário se impõe ante a ideia arrojada que a história transmite.

 
 
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