Sozinho
- Gabriel
- há 8 horas
- 9 min de leitura

Acho engraçado quando pipocam aquelas conversas, suposições e trends que volta e meia buscam algum viés de confirmação para experiências que (como quase nenhuma) não são exclusivas ou individuais, sendo, uma das principais delas, o (assim dito) debate sobre se atitudes corriqueiras (como ir ao cinema, almoçar fora ou sentar em um parque) sem estar na companhia de alguém denotam "liberdade" (em um tom elogioso quanto à pessoa segura de si) ou "solidão" (de um modo preocupante indicando uma vida marcada pela infelicidade).
Para alguém que não vê qualquer problema (e muito na vida, por opção ou circunstâncias) já fez e faz esse tipo de coisa sem qualquer companhia, não preciso dizer que cravo sem problema "liberdade" nessa urna de votação fictícia, num sentido mais simples da ponderação.
Entretanto, há que se dizer que a facilidade com a qual eu enxergo "liberdade" nesses contextos se dá por - entre outros - um motivo que certamente me coloca não na posição altiva de quem está cheio de si e não vê problema numa resposta óbvia, mas na de alguém que gerou anticorpos em relação a isso. Volta e meia me coloquei na posição de quem não tinha outra alternativa senão a de fazer as coisas sozinho. Digamos que eu aprendi a lidar com essa "liberdade", mais do que a verifico como uma resposta natural para o "dilema".
****
Nunca tive problemas de sociabilidade ou dificuldade de fazer amigos, não me entenda mal.
Mas, vamos aos fatos: criado em um ambiente familiar/caseiro muito pequeno (meus pais e, em dado momento em diante, até o fim de sua vida, minha avó, e só), ausente de irmãos e irmãs, sempre tive o vislumbre de uma casa cheia (como nos filmes de comédia sobre famílias disfuncionais, ou nas pensões de novelas, onde sempre cabe mais um a ponto de todo um núcleo de personagens se amontoar, pelas tantas) como uma espécie fantasiosa de paraíso afetivo (muito embora quem viva a experiência tenha sempre preenchido eu imaginário com toda sorte de problemas - reais - que contrastam com minha visão - idílica ou idealizada da coisa). Valorizo demais, até hoje, as companhias, sobretudo de amigos, porque de uma forma que admito meio boba por um lado (e doentia, por outro) vejo isso como uma chance de partilhar coisas com alguém. Chance que não era exatamente rarefeita, mas que não era tão constante como eu gostaria, ao longo da vida. Sempre tive muitas ideias e muitas coisas para contar, mas nem sempre havia disponibilidade de dividir elas.
Tirando parte marcante (porém curta) da infância e início da adolescência onde parecia viver numa espécie de epicentro (um quarteirão repleto de amigos, amigas, colegas e conhecidos), me criei em um (outro) bairro e em uma zona da cidade que parecia (em realidade: era) avessa à parte do mundo que dizia respeito ao colégio (e depois à faculdade e aos trabalhos iniciais). Um lugar onde peguei uma cruel entressafra de garotada aonde, quando pequeno, eu era o mais novo e desinteressante (apesar dos esforços para participar das atividades possíveis, como andar de skate) e, depois, não tinha exatamente pessoas da minha idade com quem formar uma gang ou algo do tipo.
Sem carro (um sonho distante àquela época de juventude) e sem autonomia financeira (ao contrário, passando alguns perrengues em casa, no quesito) me acostumei a um sem número de finais de semana consecutivos inertes onde tudo o que eu tinha para fazer em termos de fugir de casa onde minha avó monopolizava a televisão alta com a sucessão bizarra de programas ruins do cardápio da Band, da Manchete ou do Sílvio Santos, era andar por aí, pelas redondezas, num misto de contemplação e exercício. Em casa (lembrando que eram tempos em que não se concebia a existência de algo como - pasmem - internet), meu refúgio eram os quadrinhos, livros, a música, revistas de variedades, filmes nos horários em que todos iam dormir. Ir a algum lugar (de vez em quando) lanchar, ou ir em algum cinema com trocados contados, ou mesmo pegar o T5 para ir até o Olímpico ver alguma partida do Grêmio foram coisas que me acostumei (ou me forcei) a fazer sozinho até o modo que passei a achar esse tipo de coisa completamente indiferente (mais do que 'bom', 'possível' ou 'natural').
****
Quem se acostuma a viver sozinho (ao menos comigo foi assim) inventa rotinas.
Ok, total sinceridade aqui: sem amenizar - não digo inventa "rotinas" como quem cria hábitos e procedimentos. Falo especificamente de inventar coisas, passatempos, métodos de entretenimento.
Durante muito tempo os livros-jogos de aventura supriram lacunas importantes: você sabe, aqueles tipos de RPG em compota que consistiam em uma trama que te obrigava a tomar escolhas entre caminhos simbolizados por páginas ou seções, como se fosse a condução de uma trama, e que permitia lances de habilidade ou sorte marcados pelo jogo de dados (os medievais como "Cidade dos Ladrões" ou "Cidadela do Caos" eram meus preferidos. "Mares de Sangue" - uma aventura envolvendo piratas e monstros marinhos - era massa também. Nunca curti a ficção espacial). Era possível viver aquilo sozinho, numa boa.
O videogame também supriu lacunas importantes nesse quesito, muito embora não consigo imaginar a perspectiva enervante de jogar NES (8 bits) e depois Super NES (minha mãe achou um camarada que morava no IAPI e que vivia de trazer muambas eletrônicas do Paraguai, e descolou os consoles com um preço bastante vantajoso para a época) sem o arsenal de possibilidades que se tem hoje em termos de walkthroughs, dicas, códigos e a questão de se poder salvar o jogo, coisa rara em termos dos games daquelas gerações - que hoje parece um dado óbvio ou banal (o tom aflitivo de certos jogos como Ghouls n Ghosts, Castlevania III ou, o pior de todos no quesito, Battletoads, me faz crer onde reside um tanto da neurose considerável de parte da minha geração).
****
Não raramente eu inventava jogos também. Havia um espaço entre a entrada do meu quarto e a sala de estar do apartamento onde culminava com uma pequena mesa de apoio que formava um arco retangular que lembrava forçosamente uma goleira: com uma bola fofa de tecido que veio junto a um brinquedo do tipo daqueles que se apanha com a garra na maquininha dos parques de diversões, eu jogava até suar um tipo de futebol caseiro que não raro tinha um roteiro onde eu driblava um móvel com um corte seco e dava uma janelinha numa mesa (passando a bola por dentro de um dos pés de apoio dela) antes do chute.
Por vezes, já descontente com o livro-jogo, eu mesmo fabricava minha hipótese de gameplay com dados e anotações em caderno. "Campeonatos" de futebol, de corrida, de surfe se deram a partir de eu estabelecer algumas métricas para os times/competidores em termos de itens, em lista, de vantagens e descontos, e jogava rodadas anotadas onde embates eram perpetrados e havia até uma espécie de storytelling relativos aos campeões e aos confrontos.
Acredito que sou um bom inventor de jogos, até hoje - repito: mais por uma necessidade que tornou isso natural do que por efetivamente achar boa ou maneira a perspectiva (deixando claro também que há esse componente, por que não?).
Depois da fase adulta inventei dois jogos, onde um lamentavelmente abandonei (Caixa) e outro pratico costumeiramente até hoje, e joguei mesmo essa semana (solenemente batizado de Sozinho).
****
Caixa é um jogo pensado para jogar em dupla, mas comporta um bom par de horas perdidas caso você tenha tempo, esteja entediado e disponha do background necessário (tal como o Polo sobre cavalos, é preciso toda uma estrutura nem sempre disponível). Ao menos até onde o xadrez e o jogo de botão permitem uma neutralidade com você enfrentando a si mesmo, Caixa opera na mesma lógica.
Inventei Caixa em um apartamento onde morei com um brother certa vez, que tinha uma sala acarpetada enorme, o espaço fruto da ausência de móveis típica de dois fodidos dividindo o teto em uma cidade estranha e onde eu passava muito tempo livre em casa, ao contrário dele.
É como um futebol (há duas 'goleiras' em lado oposto da sala-quadra, que podem ser dois chinelos com alguns palmos de abertura entre si), mas com a peculiaridade de o objeto a ser chutado ser uma caixa de tênis/sapato que só pode ser encostada por cada jogador nas extremidades menores do retângulo (uma versão ideal pinta essas duas extremidades de cores diferentes para formalizar a divisão, mas para isso jamais tive saco). Ou seja: seu chute, tendente a marcar o gol no outro lado da sala (cada 'time" tem direito a um toque na caixa por vez) só pode ser dado em um local específico, o que faz com que por vezes você queira afastar a caixa da zona do seu gol enviando ela para o outro lado, e, por outras, querendo tornar ela enviesada, de forma a não deixar a reta do chute e do lado que pode ser encostado disponível para o adversário. Caixa é estratégia, mais do que força bruta. Se um chute-afastamento muito forte for dado e a caixa virar, há que se cobrado um 'pênalti' contra o gol de quem chutou, a ser batido de onde o chute desastrado fora dado (é preciso ser elegante no Caixa). A fase da ausência total de móveis naquela sala durou pouco (após, inclusive uma visita surpresa de uma amiga nossa na companhia de seu pai - nosso fiador no aluguel em questão - e a constrangedora situação de um senhor de idade, distinto, sentar em um banco de plástico e tomar Heineken em copos mequetrefes - ele não aceitou o salgadinho Cebolitos que tínhamos como acepipe) e com isso as condições para a prática de Caixa se esvaíram - e sigo tentando concretizar elas outra vez até hoje.
****
Sozinho é uma variação da possibilidade de jogar basquete solitário em uma quadra disponível. É uma espécie de potencialização da ideia de ir apenas treinar uns arremessos descompromissados, tentando fazer mais instigante e menos tediosa a hipótese.
Ao invés de encher uma bola de basquete e perder minutos a esmo em jogadas típicas numa quadra você inventa para si um auto-desafio bobo, mas envolvente, que inclusive coloca cobrança em algum nível de imposição (o basquete, ao contrário de outros esportes desse estilo, consegue ser por mais tempo satisfatório quando praticado dessa forma: imagino que tenistas e praticantes de vôlei se entediem rápido ao ficar batendo bola numa parede para respostas secas e previsíveis, e, fora a prática de alguns truques de habilidade, a dada altura enfadonhos, não há qualquer possibilidade se se "jogar" futebol consigo mesmo).
Sozinho consiste em uma provação onde o sujeito deve acertar cestas em quatro níveis: o primeiro, onde começa o jogo, é você acertar uma cesta da linha dos três pontos (parece fácil, mas após um tempo sem jogar e sem a 'calibragem' correta do peso e da técnica, pode ser uma tarefa nervosamente demorada). Se você errar o arremesso, é preciso deixar a bola (por exemplo, após bater no aro ou na tabela) voltar em seu próprio curso, e o trecho da linha dos três pontos onde ela passar, perpendicularmente, deve ser o local de onde o novo arremesso de três será feito, até o acerto (o comum é o cara começar a arremessar de frente para a tabela, mas volta e meia uma batida em algum dos cantos do aro leva a bola a correr paralelamente, escapando pela altura da chamada zona morta, no canto da quadra, de onde uma mão não calibrada pode ficar arremessando sem parar com a bola saindo pelo outro canto oposto de forma irritante e constrangedora).
Vencido o desafio dos três pontos, o próximo desafio é o arremesso da linha do lance livre (mais uma coisa que em teoria é fácil, mas que gera um potencial muito enervante porque em Sozinho, se você falhar em um dos desafios, há que se começar tudo de novo - nada anormal para quem foi criado à base de Nintendo).
Acertando o arremesso da linha do lance livre vem o desafio que considero bastante complicado, que é o arremesso de meia distância em movimento: você dribla em direção à tabela e faz ao menos um maneirismo que configura um giro ou salto para emular fuga da marcação e arremessa. É muito normal errar justamente nesse ponto (e voltamos à linha dos três pontos).
O último desafio é fazer uma bandeja em alta velocidade (sempre fui bom nisso então a fase 3 me assusta muito mais), onde a tarefa autoexplicativa é você correr em velocidade considerável e encestar após uma bandeja (se possível fazendo um eurostep).
****
Geralmente imponho a mim mesmo a condição de só deixar uma quadra de basquete após completar ao menos um ciclo de Sozinho, tarefa que já foi cumprida em questão de minutos algumas vezes, mas já demorou enervantes quantidades de outros, em ocasiões diversas.
Essa semana sob um sol torrante antes de mais uma frente fria seguida de tufão, chuva e temperatura gélida (desisti já de entender isso), tive que dada exaustão simplesmente desistir após chegar a muito custo na fase da bandeja (apanhando quase uma hora na fase 3) e conseguir a proeza de errar. Pedi arrego. Pela primeira vez em uns 20 anos. E pedi com uma certa vergonha, como quem sai de quadra vaiado, eis que, como todo jogo, estou enfrentando alguma coisa. Nem que seja minha própria ansiedade.
****
Não tem mais bobo no Sozinho.
****
UM DISCO: assisti o trailer do vindouro Springsteen: deliver me from nowhere e fiquei bastante comovido. Sou ávido fã de Bruce e saúdo a escolha de uma cinebiografia dele não querer resumir numa tacada cerca de 50 anos de carreira, mas, sim, focalizar num episódio que diz muito sobre sua personalidade, que foi a gravação bem peculiar de Nebraska em 1982. Talvez seja um álbum difícil para iniciantes (o artista enfrentava muitas questões pessoas, e na maioria das faixas emula um Bob Dylan ainda mais tristonho). Então, caso você queira iniciar, vá para algo mais fácil e explosivo, como Born to Run.
UM FILME: já que estamos falando no assunto, que tal talvez se introduzir de vez no universo working class rock de Bruce, assistindo Springsteen on Broadway, uma espécie de peça de stand up onde ele, em um palco, com quase nada além de um microfone, basicamente resume o livro autobiográfico "Born to Run" cantando com a própria voz algumas das histórias, intercalando com canções em versões intimistas e interessantes.
UM LIVRO: sigo estudando algumas coisas para fins acadêmicos-pessoais. Em breve retomo o quesito, juro.