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Ruptura(s)

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • há 3 dias
  • 9 min de leitura
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Passo Fundo, já é possível arregaçar as mangas de uma camisa (entre chuvas quentes e frentes frias) e, sim, já é o mês número dez. Passou. O ano passou. Em breve começam as decorações de natal.


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Esqueça leituras de aeroporto travestidas de filosofia. Vamos falar da sociedade do cansaço da real.


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Por mais que seja consenso que àquela altura a série The Office já passava longe do seu auge criativo e potente, e que mais parecia uma infindável repetição de seus temas antes exitosos, há um episódio - ou melhor, uma cena/sequência específica - na 8a temporada, mais precisamente em seu capítulo 19, intitulado "Get the girl" (foi ao ar originalmente em 2012), que considero uma das mais incríveis e fundamentais de todo o arco da produção.


Mais: considero uma das mais fortes (e tristes) lições que a série deixou, embora geralmente não seja assim um highlight tão incensado - quando não se possa dizer que passa batido entre o arsenal anedótico non-sense que faz a história ser tão amada e revisitada constantemente.


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Naquele momento, parecia evidente que o potencial de interesse máximo da trama e de seus personagens já havia sido extraído, e nenhuma tirada mais conseguia exibir o grau de sarcasmo e inventividade tão verossímeis quando absurdos - em mesma medida - que faz a The Office estadunidense ser absolutamente icônica (ofuscando a versão inglesa original, que não angariou nem fração da popularidade global da coirmã), da forma que as primeiras temporadas são pródigas em oferecer.


The Office - caso você não saiba - exibe a realidade de uma empresa de porte médio/pequeno que trabalha no (à época: early 2000's) constantemente ameaçado de extinção ramo de produção de folhas de papel para ambientes de escritório, com uma organicidade e um fluxo que, igualmente, parecem arcaicos (e ameaçados de extinção). É uma companhia com sede em Nova Iorque, mas com filiais em cidades interioranas de alguns estados no nordeste americano: a série enfoca, basicamente, as agruras particulares de uma dessas, localizada em Scranton, Pensilvânia, gerenciada por um absoluto lunático sem qualquer traquejo social (vivido magistralmente por Steve Carell até a sétima temporada de nove, no total), que se acredita uma espécie de líder carismático e se choca o tempo todo com mínimas medidas de boa governança típicas emanadas pelo comando central em busca de fórmulas de independência absolutamente bizarras. Tido como núcleo cômico e eixo central da série, o personagem de Carell constantemente se utiliza de um tipo de humor cínico, crendo que tem o domínio de situações onde claramente não possui, buscando saídas cada vez mais embaraçosas para problemas criados por ele mesmo, procurando enfatizar possuir uma importância fundamental que jamais possuiu - e deixando pistas de que na realidade deve ser lido muito mais como um tipo de pagliacci deprimente do que como um epicentro de alívio cômico.


No escritório, em questão, convivem vários tipos peculiares, maniáticos, um tanto cretinos e repletos de particularidades estranhas, mas agrupados, todos, por um fator comum notadamente agridoce, mas que, ao cabo, é a real tônica da série: nenhum deles de fato gostaria de estar ali.


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Uma das séries de maior e merecido sucesso atual, Ruptura (Severance) exibe uma interessante alegoria ficcional sobre uma inescrupulosa empresa que adota um regime de trabalho secreto onde os próprios funcionários operam sob o esquema-produto em questão: tendente a desenvolver uma tecnologia que permite a dissociação de personalidades em multiplicidade, permitindo (quando enfim aperfeiçoada) que uma mesma pessoa possa viver vários "eus" distintos, com sentimentos e habilidades específicas, a empresa aplica a técnica em seus próprios setores e mão de obra, fazendo com que um chip instalado no cérebro dos funcionários simplesmente 'desligue' suas personalidades cotidianas assim que entram na área laboral da sede corporativa. A tônica (e o suspense) se dá pelo fato de que para cada personagem, seus dramas, segredos e conflitos típicos, a questão se multiplique por dois, dado que há basicamente uma personalidade (um eu) seu durante o horário de trabalho e outro, completamente diferente, quando abandona o prédio da empresa, não havendo conexão de memória entre ambos - salvo alguns lapsos psíquicos colaterais que obviamente permeiam uma modificação cerebral desse porte, e suas consequências.


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A galhofa de The Office que visa atingir níveis-ápice de humor a partir de exibir graus de constrangimento poucas vezes vistos com tamanha crueza na televisão difere bastante em termos de estilo, qualidade cinematográfica e (obviamente) proposta de algo como Ruptura, porém há algo que uma adianta em relação à outra de modo sensível: o fato de que há uma espécie de aprisionamento (ainda que sem ficção científica e/ou thriller) dos funcionários.


Se fosse The Office feita no Brasil, a tentação seria grande para exibir algo escorado no clichê de alguma repartição pública onde eventualmente não se cobra a produtividade típica do mercado corporativo - tema que fora explorado, por exemplo em Os Aspones, na Globo (sobre a rotina estúpida de servidores atuando em um órgão governamental obsoleto, sem serviço nem demanda, precisando gastar o tempo de alguma maneira), e que ecoa em comédias-pastelão como Brooklyn 99 (sitcom que brinca exageradamente sobre como os funcionários de um distrito policial conseguem ficar envoltos em atividades infantilóides paralelas ao serviço durante o horário de expediente).


A cobrança de produtividade e as ironias com as táticas e com a gramática típica do mundo empresarial em seu linguajar incipiente do século XXI estão presentes em The Office, mas assim como os personagens (de certo modo 'sequestrados') de Ruptura, os funcionários da Dundler-Mifflin na filial de Scranton vivem em um tipo de claustro: desajustados, lentos, preguiçosos, alguns incompetentes e outros engambeladores, todos eles têm aspirações, sonhos, desejos e preferências que passam longe de seu maçante serviço no escritório (férias paradisíacas, aposentadoria, carreira artística, um casamento, uma vida no campo) e todos, sem exceção, procuram maneiras de sobreviver até o final do expediente para escapar o mais rápido possível e procurar se dedicar ao que quer que seja - ou, mesmo, procuram vivenciar o tempo de expediente voltados sem muito disfarce para interesses paralelos que capturam seus focos de atenção de um modo divertido (porém inegavelmente tenso) ao ponto da loucura. Apostas sobre trivias banais, fofocas, decisões sobre de que lanchonete da cidade ordenar um delivery, romances e crises internas, panelinhas e questões de funcionamento orgânico das relações pessoais da filial, que nada ou pouco tem a ver diretamente com o serviço, ocupam os interesses dos personagens de modo quase doentio.


Mesmo quem eventualmente opere visando cumprir as tarefas diárias prestando eventual atenção aos seus 'índices' (como o emblemático Dwight Schrute, vivido por Rainn Wilson, ou Angela, interpretada por Angela Kinsey), o faz mais por uma espécie de compulsão frenética e traço psicótico de personalidade do que por uma aplicação normal (sem esquecer do antes estagiário e, depois, case de ascensão e queda meteórica na empresa, Ryan, vivido por B.J. Novak, que sempre esteve mais preocupado em galgar posições de escalada social em detrimento de alguma solidez ou efetivo conteúdo quanto às mesmas, e é o símbolo incipiente do pretenso "gênio tech" que se popularizaria na era posterior das redes sociais - um típico alpinista loser que se crê engenhoso).


A série é evidentemente cômica, mas tem um potencial dramático bastante patente nem sempre destacado: as 'pegadinhas' (pranks) que o personagem de Jim (John Krasinski) aplica freneticamente em Dwight ocupam parcela considerável de seu tempo na empresa, ao ponto de uma namorada com quem ele vivenciou um romance que durou um curto período de episódios - Karen Filippelli (vivida por Rashida Jones) - o questionar (ao fazer uma ponta/participação especial em um episódio posterior), se ele "seguia perdendo tempo com esse tipo de coisa", em um sinal bastante claro que uma das únicas pessoas que parecem (tecnicamente) "normais" de todo elenco é em realidade alguém bastante perdido quanto aos rumos e prioridades de sua vida.


Aprisionados por baixa autoestima e escassas perspectivas econômico-sociais mais do que por qualquer engenhoca ficcional sinistra, o pessoal da filial de Scranton vê seus sonhos se distanciarem cada vez mais enquanto se afundam na perspectiva de procurar alguma suportabilidade em seu cotidiano medíocre e resistem à moda boba procurando equilibrar a necessidade de mantença do emprego com o mínimo esforço possível dedicado à ele como forma de não sucumbir ou enlouquecer. São verdadeiramente hilárias (porque se comunicam com a grande maioria do público, de forma até preocupante) as invencionices usuais dos funcionários para driblar o serviço - de típicas simulações de doenças para ausência no horário laboral (tal uma liberdade condicional - ou fuga), à descoberta de locais/santuários de esconderijo para matar tempo ou realizar furtividades sexuais no edifício, ao nível inacreditável onde debates comezinhos sobre assuntos bobos podem priorizar a atenção geral.


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Em sua oitava temporada The Office viu um revezamento tentar preencher a lacuna da então saída de seu mais carismático e simbólico personagem, Michael Scott (Carell), procurando centralizar o eixo da série na mesma medida, mas dotando-o de outras figuras de liderança tão esquisitas e patéticas (à sua maneira) quanto ele: o visível golpista Robert "Califórnia" (vivido por James Spader) que aplica para a vaga de Scott e é contratado após uma estranhíssima dinâmica de entrevista, ou Jo Bennett (Kathy Bates), no papel de uma milionária excêntrica que é dona da empresa que incorpora a fábrica de papel e pretende mudar o mote do negócio, de assalto.


É nesse momento que conhecemos a personagem de Catherine Tate, Nellie Bertran: a princípio uma empregada incorporada quando da fusão de empresas promovida por Bennett, mas que, aproveitando-se de uma notada lacuna de liderança da filial então provisoriamente exercida pelo inseguro e abobalhado Andy Bernard (Ed Helms, excelente no papel de um sujeito de família rica formado em uma universidade ivy league, mas que transpira fracasso de forma desanimadora e vê seus potenciais privilégios todos derrocados), resolve simplesmente se inventar enquanto líder-gerente de fato, ocupando o gabinete da chefia e distribuindo ordens como se promovesse uma espécie de tomada do poder via golpe.


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A cena em questão ocorre quando Pam (Jenna Fisher, tranquilamente uma predileta do público) decide sair em defesa de Andy, pretendendo destituir a 'chefia' imposta absurdamente por Nellie e realocar o comando formal do escritório. Constantemente cansada (a essa altura na série, vivendo uma crise conjugal - com dois filhos a tiracolo), Pam é o retrato da precariedade laboral. Ao entrar na sala cheia de (eventual) razão, Pam é engrupida de um jeito fácil por Nellie que parte para um diálogo surreal sobre a exaustão feminina-materna de Pam e, como que em um feitiço, a conduz sugerindo que tudo o que ela precisa é de um descanso. Não exatamente destacada no rol dos incontáveis memes e momentos usualmente memoráveis da série, a cena mostra Pam cedendo de modo absolutamente rendido a Nellie quando essa lhe propõe que deite no chão do gabinete e ali possa permanecer tirando um cochilo na tarde, sendo coberta por Nellie com uma manta aconchegante e tendo a luz apagada antes de a porta se fechar. Pam simplesmente esquece do absurdo contra o qual iria se insurgir, de Andy, de seu companheiro, Jim, dos afazeres da tarde, dos filhos, dos problemas familiares, da estagnação deprimente de sua carreira, e se põe a dormir no meio do expediente.


Há um corte de câmera rápido alguns minutos depois, para, abruptamente, enquanto outra ação se desenrola na trama, mostrar Pam ainda dormindo, adoravelmente alheia a tudo, fracassando na missão de defender algum tipo de racionalidade (e razoabilidade) no funcionamento da dinâmica do escritório em troca de alguns instantes de um sono tranquilo, porém nada mais do que amortecedor ou mesmo inútil. Pam não tem qualquer esperança de resolução para sua avalanche de angústias naquele momento. Ela só quer dormir.


Foi o jeito mais triste - e emblemático - com o qual alguém deixou uma tarde de expediente passar ao longo de nove temporadas da série. Diz muito. Sobre tudo. A impressão que dá é que os roteiristas - tão hábeis em captar com sarcasmo nossa relação tensa com as obrigações de trabalho nesse século atroz - deram ali sua cartada maior. Mais do que "ir às compras" ou inventar alguma relevância para alguma viagem ou compromisso extra que os faria durar mais tempo do que o prudente/necessário fora do escritório (c0mo muitos personagens o tempo todo faziam), Pam se entregou, entregou sua lealdade, seu espírito de equipe e mesmo decência, ante a possibilidade de dormir. De sumir do mapa. De ser esquecida por ao menos um turno. De se anestesiar e deixar o mundo rodando rumo a algum lugar enquanto ela não nota os problemas se acumulando para depois e não sofre com o próprio acúmulo, mais do que com a questão insolúvel dos próprios problemas.


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Costumo dizer (eu inventei isso) que no capitalismo tardio há um índice (dados empíricos e sumamente qualitativos em amostragem pequena, ainda) que batizo de "ninguém aguenta mais" e tal e qual o "relógio do fim do mundo" que está sempre próximo de uma "meia noite" apocalíptica (two minutes, to midnight, dizia a música aquela, do Iron Maiden), o "índice ninguém aguenta mais" mede o momento do ano em que "ninguém aguenta mais" ou ao menos o momento que essa frase passa a ser pronunciada individualmente pela primeira vez.


Entramos essa semana em outubro e meu índice de "não aguento mais" - ao menos o meu - está bastante elevado, já. Já pronunciei essa frase, mais do que mentalmente. Verbal, mesmo, old fashioned way. Mais de uma vez.


I wanna be sedated. Eu quero um cobertorzinho. O resto eu vejo depois. Outra hora.


UM DISCO: ainda não havia escutado com calma o último do Nick Cave, Wild God, de quase um ano atrás, e segue soberba a pegada de "velho sábio" que "já viu demais" que ele tem emanado, mas para quem precisa de algum tipo de up, é bem menos sombrio que os antecessores. Visivelmente. Quase 'alegre'.

UM LIVRO: (voltei aos estudos, re/lendo sobre biopolítica. Nada para ver aqui. Circulando!)

UM FILME: tá ruim no quesito essa semana. Um que outro episódio de séries sem muito interesse funcionando como soníferos para dias de cansaço (ps: "Não aguento mais")




 
 
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