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Foto do escritorGabriel

Clutch




Dia desses fui resolver algumas neuras de um dos mais eficazes jeitos que conheço, que é – munido de bomba de inflar – comparecer a alguma quadra de basquete de rua com minha bola na mochila para treinar arremessos e bandejas a esmo ao raiar do dia.


Nada mais clichê ridículo de série televisiva adolescente, mas, garanto, eficiente: estava eu, de bermuda e moletom preto de capuz, sozinho, com cara de poucos amigos e muitas amarguras existenciais, no assoalho vazio marcado pelo compasso de quiques da bola.


Nos seriados televisivos em questão, há uma mecânica de roteiro e um tropo que nos induz em uma constante dinâmica onde, no início do episódio ou ciclo, o personagem vai errar e errar, a ponto de haver a metáfora usual da bola dando aro para algum impasse pessoal e emocional, ao tempo, insolúvel.






Os manuais de script padrão dão conta do problema com alguma resolução/admissão ou descoberta que retro-simboliza o caos interno do personagem se aplainando, solucionado em dado momento e galvanizado com a bola, na hora do jogo, para valer, nos segundos finais, entrando (de três), mudando gloriosamente o placar.


Na real nada é tão simples.


Pensei nisso e pensei no fato de que não existe o conceito de 'pick me boy', apenas o de 'pick me girl' – você sabe, a garota, aquela, que está planejadamente exibindo referências e sinais para que seja notada como se disso dependesse sua vida e sanidade. A garota lendo o livro-ref, vestindo a camisa de banda-ref, usando a eco-bag-ref, todas meticulosamente arquitetadas para atrair a atenção de alguém (um homem), sem qualquer possibilidade de ser autêntica ou de querer tirar (neutramente) alguma onda, default. Não. Ela quer aparecer para algum homem e ponto.


Pois: não há, correntemente, o conceito de pick me boy. Ele pode estar de moletom preto de capuz exalando desgosto e tormenta sentimental arremessando uma bola sozinho em uma praça – o que lhe confere um charme amargurado e profundidade, mas de forma alguma é tido por um homem pick me ou em busca de alguém que miseravelmente perceba nele algo especial. O esportista diletante, mas que lê Leminski. Ele é malandro, mas tem um bom coração. Olhos semi-cerrados, algum mistério ou dor do passado. O que o leva a ir lá sozinho na brisa da manhã? Aquela coisa.


Com as redes sociais, acredito eu, o próprio conceito empobreceu (até porque qualquer ref é atingível a uma pergunta para algum aplicativo de distância). Mas não o superamos, fomos, sim, engolfados por ele: adequamos nosso layout e nossos cartões periódicos de visita ao que todos querem. Viramos todos, em certo grau, pick me, desesperados, buscando destaque e atenção tal a vendedora esperando a comissão de final de ano que comunica clemência com cada olhar.


A imagem de perfil, a foto de capa, os posts falsamente despretensiosos sobre um cotidiano que berra merchandising - ou que pede socorro.


Há muito se diz que a internet mudou de vez quando as pessoas pararam de frequentar (‘ir’) a sites de sua preferência como quem dá a volta no quarteirão, e passaram a receber conteúdo mediado por máquinas treinadas por sua própria leniência meio atrofiada. O seu avatar não é mais um aventureiro idílico e ativo, mas um conjunto de decisões hipotéticas que você tomaria estático no sofá.


O meio segundo da (tentativa de) captura do interesse é um mar de perdição nesse universo meio estranho de imagens e scrolling infinito de vídeos com gritos histéricos, frenéticos, onde a estratégia – contraditória– é se diferenciar, não se diferenciando tanto, assim, para não virar pária.


Mais estranho ainda é propor algum tipo idealista – ou bobo, ou pretensamente vintage - de comunicação que não está lastreada por algoritmo e não prevê qualquer forma de acúmulo capitalístico a partir de coprodução de trabalho em termos de ‘repost’ ou ‘quote’. É um blog. Nada mais esquisito.


Mas, “e uma newsletter”? Incríveis, várias delas. Assino poucas, e as amo. Isso aqui deveria virar uma? Possibilidades (há logo ali em baixo um espaço para você - por sua conta e risco - inscrever um email para saber quando haverá textos atualizados). Entretanto, seu tom oferecido, invasivo, despejo de caçamba via email, no seu quintal, também não interessa, por hora. Trata-se, isso aqui, de um bar perdido em uma estrada freak. Um hotel bizarro com um cadáver de uma velha maluca empalhado em uma janela, em uma rodovia abandonada. Um armazém esquecido e pouco frequentado. Estático, como nada mais parece ser possível de estar. Adequado a um filme B.


Um lugar onde se deve ir. Algo que despudoradamente não vai a você.


Se contarmos alguns rudimentos em 2003 a magia se dissipa, então prefiro a versão oficial de que minha primeira experiência escrevendo coisas de tom pessoalizado para o universo – hmm, blog – foi em 2004. Emblematicamente, completam-se 20 anos e alguns dos tons daquilo parece que retornam à luz do dia como uma múmia evocada por uma terrível maldição: o caráter de pensamento solto, mas sem a urgência insólita do engajamento instantâneo, nem a necessidade voraz dos feedbacks em forma de ‘likes’ ou ‘comments’ ou ‘replies’.


Um texto. Assim, largado. Assim, abandonado ao universo como um sinal de ondas curtas capaz de ser captado anos depois, fantasmagoricamente.


Alto teor de desespero? Talvez. O quão cool é se esconder fingindo que se expõe pagando de quem se esconde?


Vampiros fingindo-se de humanos fingindo que são vampiros. Avant garde!”.


Enfim.


Vai aparecer alguma coisa aqui, semanalmente, que não é teor ligeiro de redes sociais (há uma que tenho frequentado, como podem ver aqui), nem textos com precisão acadêmica (meu trabalho me obriga a gastar esses em lugares como aqui).


Apareça para tomar uma Coca-Cola e encher o pneu. É o último posto em milhas e milhas, garanto.


Pick-me.


****

Um filme: SEBERG (EUA, 2019, Benedict Andrews). História contada à moda cinemão, mas bem convincente, da desgraça da musa da nouvelle vague, Jean Seberg e da perseguição sofrida por ela pelo FBI após decidir apoiar movimentos sociais radicais como os Panteras Negras nos EUA do final dos anos 60. Justiça para uma grande figura – por vezes obscurecida, ainda que com algum tipo de freio de mão puxado.


Um livro: VALE DA ESTRANHEZA, Anna Wiener. Pelas tantas algo que parece um relato crítico quanto a um punhado de fatores com os quais você convenientemente concorda se você não for um(a) alienado(a). Vai se agudizando a ponto de nos sufocar exibindo a escabrosa face imbecilóide do capitalismo atual. É uma espécie de Germinal hipster. Eu utilizaria fácil em aulas contemporâneas de estudos de direito trabalhista.


Um disco: Sophie Thatcher, a trash-musa junkie de Yellowjackets, parece seguir à risca a tradição das atrizes-problema (como Juliette Lewis, a quem interpreta em versão colegial, na série) e cava seu holofote de modo variado. Lançou um disco (EP) de algo como dream-pop-deprê-fim-de-festa (PIVOT & SCRAPE) na linha de várias garotas tristes (pick’em?) da geração. “Black and Blue” e “Go On” são incrivelmente boas.

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