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Foto do escritor: GabrielGabriel



Dia desses o perfil Dr. Bluesky (ex-, convenientemente, Dr. Twitter) fez a seguinte postagem:



Concordei de imediato e repostei na mesma rede, comentando que esse filme foi uma das maiores fontes de bobo-alegrismo cientifico jamais visto, dado que propagava com suposto teor "científico" e "pós-moderno" baboseiras tilelê como aquelas que enganaram boa parte das dondocas desocupadas que se pretendiam antenadas e uma multidão de cabeças-fraca esperando para caírem em golpes variados, tal coisas como "O Segredo" e outras supostas auto-ajudas de bolso que na verdade eram soluções mágicas pocket que ofereciam a pior versão da ideia de reencantamento do mundo.


Me surpreendeu o fato de que muita gente não tinha (sequer) escutado falar da obra e pude perceber um choque geracional interessante nessa era em que a suscetibilidade - quando não a vontade, expressa, literal - para ser enganado por baboseiras acomete grande parte da população viva do ocidente.


O período era 2005/2006 e eu tinha acabado uma pós-graduação e estava no primeiro ano do meu Mestrado.


Ainda sob a influência de uma vertente que se erigiu com força nos anos 70 e tomou corpo definitivo na academia nos anos 80 e 90, a interdisciplinaridade era a bola da vez e, em um programa fundamentado no Direito, éramos influenciados a pensar as ciências criminais sob óticas distintas (o que é ótimo), como a história, a antropologia, a filosofia a (sedutora) psicanálise entre outras vertentes. Li poucos textos jurídicos nesse período inicial, me abrindo muito mais para a filosofia e a psicologia analítica - chegando às raias de comprar não um, mas dois livros sobre o pensamento de Ilya Prigogine a respeito de caos e termodinâmica (eu sei, eu sei).


Tudo que se conectasse com áreas do conhecimento que pareciam estranhas (e eram) ao pensamento e à ordem jurídicas nos era atraente e divertido e foi um grande período incubador e de testes de 'foguetes' para muitos ali.


(Claro: não tínhamos tanto cacife, moral, bagagem e talvez vontade de contradizer nossos mestres em relação a algumas curvas epistemológicas bastante esquisitas de gurus como Fritjof Capra, nem de desdizer algumas tolices evidentemente charlatônicas que já se exibiam frondosas nos textos do, então ainda incensado, Boaventura de Souza Santos - figura felizmente em vários sentidos obscurecida, hoje).


Foi no contexto dessa recepção máxima de abertura da mente e da alma no contexto da pós (em 2005) que um filme/documentário do ano anterior, 2004, começou a ser comentado pela comunidade acadêmica: "What the bleep * do we know?" (assim, com um 'bleep' para não escrever 'fuck' - e que em português ganhou um título ainda mais apelativo, mas talvez não menos bizarro: "Quem somos nós?"). Dirigido por William Arntz, Mark Vicente e Betsy Chasse, "Quem somos nós" era um compilado paupérrimo, mas muito sagaz no que diz para com uma série de touchets supostamente científicos em crenças e estamentos comuns de nossa sabedoria usual, tentando provar coisas absurdas como uma ingerência quase mística/direta/super-heroística do "pensamento positivo" em nossa vida (a partir de um experimento meio ridículo e total questionável com palavras escritas em papel e moléculas de água), além de demonstrar que átomos e eletricidade não fazem a gente verdadeiramente "encostar" em nada, e outras simplificações mixurucas quetais. Mas a grande tônica do filme era a de que absolutamente tudo está conectado e pode (em tese - capenga) ser explicado através daquela que desde os anos 90 se popularizara como a grande não-explicação de absolutamente tudo e nada do mundo: a física quântica.


Olhando com um pouco de distância (e era visível a baboseira disso tudo, embora não possa negar que muito do que vi no DVD-R do filme que rodava emprestado por e para todo mundo fez algum tipo de "sentido" para mim, um tanto deslumbrado, à época) se percebe claramente que não há basicamente nenhuma diferença entre as tolices ali propagadas e essa obra fílmica, escrita e ponte de teses/cultos/palestras chamada "O Segredo" que também fez um sucesso estrondoso e puxou toda uma linha de uma nova auto ajuda com pitadas de misticismo patético, fora esse suposto ar mais cientificista que, na realidade torcia total os conceitos científicos para que coubesse dentro da gaveta energético-espiritual bobinha que vendia (a explicação que pessoas se apaixonam umas pelas outras pelo poder da atração "quântica" é uma das coisas mais deprimentemente ruins que já foram em algum momento levadas a sério, no século).


Passado um pouco de tempo, eu e alguns colegas começamos a fazer alguns desvios ligeiros de rota de algumas das pataquadas pós-modernas paga-vale (embora na própria dissertação, ano seguinte, eu segui ancorado a algumas delas), primeiro de forma um tanto como quem foge de um sujeito chatonildo no corredor, e depois, já como algum estofo, declarando guerra aberta, como quem se liberta dos grilhões ou algo que o valha. Era muito estranho seguir referenciando um grupo de autores e textos que parecia repetir como papagaios que a ciência moderna empatou, basicamente, em termos de conquistas porque nos rendeu coisas como a penicilina e também coisas, veja você, como a bomba atômica. Quites. Zero a zero. "Bom mesmo é esse xamã aqui e suas ervas medicinais": e seguia-se uma apropriação totalmente desrespeitosa e simplista da sabedoria xamânica somada a uma leitura completamente desonesta de algum parâmetro científico, conseguindo a proeza de desrespeitar dois saberes importantes na tentativa de homenageá-los (nada mais branco, ocidental - e hétero - do que purgar a culpa procurando não recepcionar uma outra linguagem, mas absorvê-la, capitalisticamente, de forma disfarçadamente alegre ou altruísta).


Pensei nisso porque não se passa uma semana, quiçá um dia, sem aludir a alguma consequência tenebrosa de algum tipo de picaretagem frente a quem está plenamente compatível ou pouco prevenido (se não com vontade expressa de contato) para ser enganado: bets miraculosas, tigrinho, limão curando câncer, conspirações secretas sobre "o que jamais lhe contaram". Não parece ser simplesmente resolúvel, o problema, em uma questão de orientação política reacionária, visão de mundo tacanha e idade geracional. Pessoas sedentas por aberturas de realidade que coloram de alguma forma sua realidade, ofereçam algum tipo de porta para qualquer outra coisa e inundem um mundo sem graça de corantes, mesmo que tóxicos (tal e qual um glitter mental) existem em todos os meios e camadas de instrução.


Longe de dizer que um filme esquecido e esquecível desses condicionou o fazer científico no planeta, é possível dizer que um atraso, mesmo que ínfimo no progresso do pensamento causado por um hype momentâneo de um engodo um pouco mais bem entalado do que os engodos usuais é perigoso: basta ver a indiferença total desse tipo de ideia e filme para coisas que eram absolutamente ridicularizadas oferecendo o mesmo núcleo e recheio.


Não faz muito tempo que se discutia e escrevia a sério no Brasil as pataquadas do Boaventura - que errava epicamente quando errava, e quando acertava, propagava em realidade óbvios ululantes (lembrando que é um Europeu nos ensinando sobre 'favelas', um português nos ensinando sobre decolonialidade e saberes ancestrais, um europeu nos ensinando sobre valorizar a cultura latina e um homem de conduta machista abjeta nos ensinando sobre a feminilidade dos saberes 'marginais' e a feminização de uma ciência da nova era).


Se você separar apenas a última fatia do parágrafo acima vai encontrar em muitas áreas, em especial àquelas afeitas às humanidades, hoje, um sem número de gente assim. Seguem firme, enganando.


Nosso mundo fora prometido como uma expansão sem limites, fronteiras e amarras: fomos cair, de fato, em um mundo tão careta e pobre que a propensão a qualquer venda de terreno na lua do ponto de vista epistemológico e afetivo é um risco tremendo.


Dia desses escrevi um posfácio para o vindouro livro de uma ex-orientanda (já escrevi o prefácio do livro anterior dela, aqui é acompanhamento/serviço completo!): lembrei de Robert Pirsig e seu "Zen and the Art of Motorcycle Maintenance": o rigor metodológico estrito não deveria ser coisa de cientistas antiquados, alienados e reacionários. É, sim, coisa de apaixonados: o verdadeiro cientista é rigoroso e sóbrio, não porque quer construir verdades absolutas, mas porque quer evoluir, construir pontes sólidas e permitir aos próximos que refaçam - e quiçá desmintam - seus passos. O resto é papagaiada e achismo (fontes de outra ordem).


Como a breguice suprema da new age nunca vai embora, por deus?



UM LIVRO: já que fora citado acima, 'Zen e a arte de consertar motocicletas' é um livro recomendável, porém dúbio e, por vezes, maçante até. Relata em tons biográficos um tanto quanto "soltos" a própria busca do autor, Robert M. Pirsig por um meta diálogo científico-acadêmico, narrando uma jornada que parece ela própria uma imensa palestra (ou conversa) sobre os limites e propósitos do estudo e da dedicação técnica e estudiosa. Fala tanto de isolamento, esquizofrenia e problemas de relacionamento quanto discursa imponentemente de forma interessante sobre epistemologia e sobre o que pensar e esperar das ciências (e de seus protagonistas).


UM DISCO: por mais que faça quase 30 anos da morte do genial Chico Science, há pessoas que associam exclusivamente a ele e aos (lamentavelmente apenas) dois trabalhos à frente da Nação Zumbi a trajetória da banda, que por todo esse tempo se manteve ativa e dona de algumas das melhores apresentações musicais que é possível ver em nosso país. Voltando a escutar o disco de 2014, intitulado apenas "Nação Zumbi", é possível ter um testemunho da distância de duas décadas para o primeiro trabalho em um álbum absolutamente ímpar que briga de foice com os discos na presença de Chico como os melhores trabalhos deles. É desse disco que saem petardos como "Foi de amor", "Bala perdida", a adocicada "A melhor hora da praia" e a obviamente reverenciada "Um sonho" (fazer o que, se é uma das canções mais incríveis já lançadas e um dos momentos mais sublimes do gênio da guitarra, Lúcio Maia?)


UM FILME: já havia escutado falar, mas foi a partir de uma dica - do Caio Maximino - no Viracasacas que eu anotei a ideia de assistir "Possessão" (1981, Andrzej Żuławski). Um filme de "terror" (você vai entender as aspas) absolutamente inusual e incrível, onde Isabelle Adani e Sam Neil estão em uma espécie de laboratório de atuação a céu aberto, vivenciando as agruras de um casal com um comportamento errático e absurdo da esposa após ela suscitar o divórcio que parece (e só parece) ser ocasionado por um romance vivido por ela com outro homem. Um paralelo incrível e escancarado com o cenário da trama, que é a Alemanha e a Berlim divididas cogentemente, (coisas que são difíceis de acreditar até hoje). Esquisitíssimo, do tipo que não é um prato que você pensa em encarar o trânsito até o recinto do outro lado da cidade para degustar. Talvez você nunca o peça de novo. Mas: sensações.

Foto do escritor: GabrielGabriel

Atualizado: 4 de jan.




Na reta de praia frequentada pela minha família desde que me conheço por gente (um caminho que ia desde a antiga casa - e atual apartamento - dos meus pais, cruzando pela da minha vó, já destruída), passávamos por um antigo farol que eu ainda peguei funcionando quando pequeno, hoje desativado em prol de um maior, alguns quilômetros ao norte (e já são três coisas demolidas/descontinuadas no espaço de um parágrafo, veja você o quanto o tempo e o capital são implacáveis).


O farol, hoje mal e mal percebido por quem passa pela praça onde ele se edifica, foi transformado por um tempo em um espécie de luminária tristonha, cabide de alguns enfeites mequetrefes de natal do município, e agora só está ali, parado, como um monumento sem sentido.


Faróis são românticos, em todos sentidos do termo, em especial ao evocar uma espécie de nostalgia de um mundo que só conhecemos nas sugestões e imagens ficcionais.


Lembro de Jorge Drexler, usando uma ideia singela e apelativa, mas certeira, apontando que (assim como o sistema de funcionamento e funcionalidade dos faróis) para nos encontrarmos, temos de nos perder: as luzes são todas iguais. O que importa é o código inscrito no ciclo de emissões. Um farol indica algo nos seus segundos de escuridão, não no facho de luz.


Por vezes não queremos encontrar é nada. Por vezes queremos fugir do anúncio, do lugar, da região, de alguém.


Esse texto é sobre medo. E fuga.


*****


Éramos amigos, naquele tipo peculiar de relação que existia e só poderia existir num tempo (hoje inimaginável) sem computadores, celulares, internet ou redes sociais: as crianças de cidades, regiões, colégios e vidas apartadas que dividiam costumeiramente a mesma zona durante os períodos de veraneio. Todo um ecossistema de comunhões sazonais impensável na era da hiperinformação e da ultra conexão. Haviam pessoas em nossas vidas exclusivamente 'de temporada', como algumas frutas (nem isso mais, hoje com a modificação genética que mais parece uma compulsão impaciente de consumidores mimados perigosamente).


Ele, com um ano a mais que eu, seu irmão, com um a menos, e toda uma patota que era composta por meus primos e alguns outros amigos (e amigos de amigos) dessa modalidade temporária. Fazíamos coisas de criança, de pré-adolescentes e de adolescentes que éramos e fomos: jogávamos bola (em especial "três dentro/três fora" - a modalidade alternativa de futebol onde é estranhamente prazeroso ser goleiro), pegávamos jacaré nas ondas cavadas de dias de chuva, corríamos como loucos pela orla, comíamos picolés - que o tempo sugeria serem melhores e mais saborosos naquela época.


Um dia, uma notícia: a família do rapaz (que ocupa um apartamento térreo contíguo a onde minha avó veraneava) não viria esse ano de sua cidade interiorana no centro do estado para a praia. O rapaz, o mais velho, foi acometido por algo até hoje por mim desconhecido, mas, de fato, alguma doença gravíssima. A previsão era de que não sobreviveria. Como sói naquele tempo, informações eram escassas (as mães não tinham Facebook para trocar memes bregas nem para postar fotos não autorizadas pelos filhos, muito menos grupos de whatsapp no estilo 'Amigos do Posto 82' ou algo que o valha). O que se sabia era que o abalo familiar era tamanho e a necessidade de cuidados do rapaz, idem. Hospital, UTI. Coma.


Em meados do ano seguinte, aquele esquema de engenharia social que conecta conhecidos de colegas de parentes distantes de vizinhos - ou algo assim - trouxe um fiapo de notícia: o rapaz havia, a muito custo, sobrevivido e a expectativa agora é que resistisse muito embora em um tipo de estado vegetativo. A família voltou a frequentar o apartamento no ano seguinte e a situação era justamente essa de transportar o rapaz de olhar perdido em uma cadeira de rodas a distâncias não muito fora do perímetro da varanda onde ele ficava "tomando sol" de forma não exatamente ativa.


Mais um ano, mais um verão, mais uma temporada da família abrindo as portas de correr da varanda e agora o rapaz - um tipo de milagre - já caminhava com dificuldade, falava, interagia e parecia vivo, agora oficialmente, mais uma vez. Como um personagem de ficção que teve a energia sugada por algum tipo de força maligna, ele parece ter envelhecido décadas em três anos. Os cabelos muito loiros agora estavam ralos e esbranquiçados. A pele, alva, agora parecia um couro opaco e flácido. A estatura notável já não intimidava nem admirava mais ninguém, uma vez que ele passou a ser dotado de uma fragilidade que se exibe indisfarçável a quem olha. Presa indefesa. Os olhos ficaram fundos e as sobrancelhas mais protuberantes, dado que sua magreza parece ter puxado a pele com força pela nuca, como que para ajustar ela mais ao osso craniano.


Via tudo isso, mas à distância.


Nunca mais passei por aquele trecho de rua. Simplesmente tenho medo de ser por ele avistado por um motivo que pode ser o mais bobo, mesquinho, infantil e quiçá egoísta do mundo: tenho comigo uma impressão que o fato incontornável de que minha vida seguiu, normal, o ofenderia. Mais: o iria agredir de alguma forma. Sinto culpa por ser uma pessoa que não derrapou até agora em curva nenhuma improvável tal alguma doença bizarra que parece uma punição randômica, como se me exibisse, afrontoso, em sua frente. Medo. Prefiro não. Fuga.


Volta e meia me dizem que não aparento ter a idade que tenho - de forma obviamente elogiosa. Ele jamais vai ouvir isso, uma vez que a menção clara seria oposta: quando por vezes passo (pelo outro lado da rua) penso que uma pessoa que não conhece a família certamente vê ele, a mãe e as tias como se fossem idosos (irmãos, talvez) conversando amenidades. Ele tem quase a minha idade. Repito que pode parecer estúpido e muito ridículo de minha parte isso tudo, e o simples aceno de um antigo rosto amistoso pode muito bem trazer conforto e memórias boas a alguém, mas tenho um pavor absoluto de pensar que minha altivez, meu viço ou simplesmente meu caminhar ritmado - normal - pode causar algum tipo de ofensa, ressentimento, angústia ou arrependimento (daqueles que sofremos pensando que tipo de escolha distinta talvez fizesse alguma diferença no desenrolar de tudo). Penso se meu sorriso o afrontaria, especialmente após passar pelo pequeno perímetro que se tornou quase todo seu universo e seguir adiante rumo a algum lugar. Um lugar. Qualquer lugar. Vida passando pela sua frente enquanto algum ponto do destino o multou sabe-se lá porque, de forma a condena-lo perenemente a abrir mão de (quase) tudo o que essa mesma vida poderia ser.


Será que ele sente alguma raiva das pessoas que passam, indo a lugares, numa própria simbologia quanto à vida que ele se acostumou a ver passar como um pagante, da plateia ou arquibancada barata e afastada do palco, o mais distante possível de algum protagonismo? Será que isso diz mais sobre mim do que sobre esse 'ele' hipotético que imagino completando as lacunas do que vejo em um corpo fragilizado em uma varanda? Estaria eu fantasiando - para a tragicidade - uma coisa que ele leva mais de boa do que aparenta?


Até quando vou fugir e terei interditado um lado da calçada de um trecho de rua? Devo cruzar essa barreira e romper essa neura? Estarei eu - há alguma possibilidade, enfim - certo, e devo seguir sendo uma espécie de memória interrompida, personagem de um filme bacana que nunca teve continuação, reboot, série revival da Netflix para não evidenciar ainda mais a desgraça dessa serenidade forçada onde ele foi arremessado pelas circunstâncias?


Até lá, sigo fugindo.



UM FILME: quero muito ver a nova versão do "Nosferatu" pela lente de Robert Eggers - até para apagar o gosto ruim que ficou com aquele "Homem do Norte" onde parece tudo no roteiro e na montagem apressado e sem acabamento (como se ele tivesse algo tipo um material de cinco horas e uma inteligência artificial mal calibrada fez cortes em cima da hora para a versão final ter duas). Do anterior, ora, ora, "O Farol", gostei demais. Porém recomendo mais do que fortemente que todos assistam - antes - "A Sombra do Vampiro" de E. Elias, Merhige, 2000, e sua genial premissa que cobre as filmagens do Nosferatu de F.W. Murneau (John Malkovich) mas imaginando que o ator Max Schreck (Willem Dafoe) seria de fato um vampiro. Magnífico é apelido.


UM DISCO: estou escutando "Todo me recuerda a vos", disco da banda argentina - radicada no México - Surfistas del Sistema (péssimo nome, mas, enfim). Sobre o Drexler (citado no inicio desse post com seu disco de 2006 cujo título evoca a metáfora do farol) um amigo me disse certa vez que a crise era tamanha que o melhor artista da MPB era uruguaio. A premissa parece válida: uma boa banda de pop rock BR atual é argentina (radicada no México). Se não vale por outro motivo, vale para você refletir sobre como figuras de linguagem em baladas românticas parecem diferentes em outra língua.


UM LIVRO: dia desses diante de mais uma improbabilíssima versão de 'Halellujah" de Leonard Cohen como se fosse uma canção religiosa tradicional (Péricles cantando em especial natalino de televisão), lembrei e dei uma folhada a esmo, sem compromisso, no "Energy of Slaves", do homem. Muita coisa ali, e mesmo algumas tentativas e exercícios meio pretenciosos e ruins. Mas muita coisa genial, idem, como sói. Poesia que não é meio provocativa me distrai fácil. Não reli todo, não lembro se há algum poema sobre faróis.



Foto do escritor: GabrielGabriel



Quando Deus desenhou faixa litorânea do Rio Grande do Sul, ele tava namorando.


Sim, dado que é a única explicação para algo ser tão terrivelmente filler sem nenhuma peculiaridade, a não ser que o responsável estava fazendo algo mais importante e deixou a tarefa naqueles instantes com o estagiário menos experiente que meteu um copia e cola ali porque era quase 18h e o setor já estava quase vazio.


**


Lá estava eu sentado na minha funboard (7,0ft) meio à deriva sacolejado por vento, em um flanco, e princípios de elevações vindos de todos os lados, por outro, que, paradoxalmente, não pareciam ter permissão para se erigir e quebrar. Ondulações inconstantes de um modo triste que parecem adquirir força apenas quando próximas de um banco de areia muito raso, porém o suficiente para formarem uma espécie de gancho oco que não permite nada além de uma fuga - se você for sensato - ou uma viagem ao fundo do mar (nesse caso bem raso), temperado por uma areia que é áspera o suficiente para assar e arranhar sua pele, e desagradavelmente sneaky para entrar nos recônditos mais profundos do seu calção e nas dobras mais desconhecidas do seu corpo. Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, Brasil, em um dia típico.


Uma merda, se quisermos usar a concisão propiciada pela língua de Hugo Mãe.


Por vezes eu penso como uma vastidão dessas consegue promover um espetáculo tão tristonho quando o mar típico de Capão da Canoa do ponto de vista de alguém que quer pegar onda. Por outras, pondero que é essa mesma vastidão que permite justamente isso: quilômetros e quilômetros de design natural de baixa qualidade, como final/limite de cenário de jogo de video game (onde em algum momento a repetição contínua do mesmo padrão anuncia - educadamente - a você, que não, não há nada ali, por favor volte e não nos constranja a ter que bloqueá-lo com uma parede invisível). Ou seja, nenhum acidente geográfico, nenhuma enseada, nenhum morro e/ou falésia, nenhum recorte digno de nota no solo. Apenas uma vastidão em linha reta de areia e uma vastidão equivalente de mar que acompanha a linha reta a perder-se de vista para os lados e igualmente para fora.


Um abandono apavorante, especialmente em dias de mar mais revolto e céu escuro. Um sem fim que -em algum momento- dá com a testa na África se você for em pretensa linha reta.


Fiquei em um brainstorm rabugento por alguns instantes, e logo me veio um tipo de pensamento ou piada de consumo interno que sempre é acionada, como uma secreção ou hormônio de uma glândula, nessa hora: "sabe onde está pior de onda? no Rio Guaíba" - e ato contínuo uma mensagem default no meu cérebro me mandando aproveitar, apesar de tudo.


Porém nesse dia me ocorreu algo meio incomum e vergonhoso, ainda, de tão piegas: se um dia alguma condição física inesperada - ou mesmo a idade - me impedir de surfar, eu olharia com saudade e ternura mesmo para os dias de caixotes fechados e ondas funcionando na meia bomba no mar mexido de Capão? "O que eu não daria para", como quem sente falta de alguém, traduzida em vontade mesmo de comer um prato preparado com falta de talento e esmero pela pessoa. "Bons tempos aqueles".


Lembrei, como quem toma uma vacina, do conceito nietzscheano do eterno retorno e do fato de que é um elemento de debate poderoso nessas horas. Nietzsche podia ter (em realidade tinha, é sabido) vários defeitos (a lista é grande). Um deles definitivamente não é a associação "nazista" que fazem a partir de compilações apócrifas e de encaixes pouco eruditos de algumas de suas críticas ao establishment judaico-cristão (como se fossem um antissemitismo vulgar) e de sua exaltação da força e do padrão germânicos como um respiro de imposição vitoriosa helênica de outrora. Há, de fato, em sua obra, uma possível construção de ambiente para que a insolência seja veículo de um individualismo que se pretende amoral (mas geralmente atinge apenas um padrão cínico e deturpado, e só), mas dificilmente cruel do modo sistemático e consciente pura e simplesmente de um fluxo de campos de extermínio ou algo que o valha.


Os personagens daquele que para mim é o melhor filme de Hitchcock, "Festim Diabólico" ("Rope", 1948) recitam uma fala assumidamente "nietzscheana" ao final para justificar seu escabroso plano - numa apropriação deprimente de uma ideia em uma obra cinematográfica tão incrível (embora não se possa, novamente, dizer que não é um dos rumos possíveis que a aplicação dos preceitos do filósofo pode atingir).


Mas: o eterno retorno.


A passagem que sempre me captura e fascina. Uma apropriação completamente inversa da pieguice do "você um dia vai sentir saudades de" ou "você ainda vai sentir falta do". Uma apropriação da mesma figura hipotética, mas sem um jugo moralista-franciscano com um tom nada leve de ameaça em prol do contentar-se. Um convite diferente.


Esse destino, que se descortina à sua frente (e igualmente às suas costas - eis que cada momento vivido carrega todos os anteriores e está grávido de todos que virão): você o afirma? Você toma as rédeas dele e o pratica, como quem o vivencia? Nietzsche nunca falou de resignação. Pode até ter dado aquele que é - paradoxalmente - o primeiro grande conselho de auto-ajuda como a conhecemos hoje, de fato (viver de forma a fazer coisas que, se se repetissem, eternamente, você as afirmaria, de novo e de novo - o 'eterno retorno' como esse compromisso ético é a interpretação que vários estudiosos da obra nietzscheana, inclusive um dos maiores, Roberto Machado - R.I.P. - propõem). Mas há uma inversão interessante de leitura: não viver como se acorrentado tristemente a um roteiro. Vivenciar o roteiro, que não acontece sem o protagonista. Afirmar o que se vive. Ir em direção a esse destino como Édipo alertado por Tirésias, na tragédia famosa, uma vez que ele se coloca diante.


Não há que se paralisar, no presente, por uma promessa de nostalgia (futura) em razão de coisas ruins (ou menos piores do que poderiam ser), no passado. Não há que se 'contentar'. Há que se domar o agora. Vivê-lo. Pratica-lo. Ele é seu futuro e seu passado. Não simplesmente o 'aceite'. O assuma.


Praticar o agora. Afirmar o que se é, para tornar-se exatamente isso.


Ergueu uma ali - milagre. Começo a remar. Fui.



UM LIVRO: dia desses minha prima ganhou de presente do marido o livro "Cozinha Confidencial", a, digamos, biografia do Anthony Bourdain. Fui informado por ela disso e sorri. Estou escrevendo isso olhando para a mesma sacada onde li boa parte dele e onde o finalizei, depois de tristemente ignorar muitas recomendações durante muito tempo para mergulhar na obra - que é rápida, mas repleta de emoção e histórias. Acho que você também deveria se dar esse presente (é clichê usar essa frase, mas é real. Ela vai te dar vontades). O mais legal é que Bourdain era o tipo de cara que permite que todas aquelas histórias sejam tidas por verdadeiras, em que pese ao fim do livro, deliciosamente, ele mesmo desminta algumas coisas - e/ou é desmentido após conversas com as mesmas pessoas, porém sóbrio.



UM FILME: não é bem um filme. É uma série. E já que estamos pervertendo a dica, vamos perverter de vez. É uma série. De animação. "La Frecuencia Kirlian" é uma pequena maravilha em duas temporadas onde o argentino Cristian Ponce nos oferece uma das melhores peças de ficção científica já criadas, e sem a limitação de filmagens, atores e efeitos práticos. O desenho (propositalmente estático, meio tosco e mal acabado como um rascunho em vários momentos) é um charme só. Na estação de rádio da "frequência Kirlian", um locutor misterioso recebe telefonemas e conta causos a respeito de um vilarejo perdido no interior argentino, mas que, aparentemente, é o centro do universo e seus mistérios.



UM DISCO: andei reescutando o disco "Jesus ñ voltará", de 2023, do artista cearense Mateus Fazeno Rock. Considero esse rapaz um dos maiores talentos surgidos no país em muito tempo. Seu som não é "eclético", naquele adjetivo meio aborrecido de quem não se decide e quer agradar gregos e troianos. Seu som é verdadeiramente misturado e consegue a proeza de meter uma crítica social 'foda' à moda rap-canto falado enquanto a banda toca algo digno de Black Sabbath ("Jesus ñ voltará"), um incrível pop-MPB que gruda, forte ("Pode ser easy" e "Indigno love") e um dos funks-batidão mais bonitos do mundo ("Da noite" - que é batidão, mas sem batidão, e, sim, acompanhado por palmas). Sério, vai nessa.

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