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    Gabriel
  • 11 de abr.
  • 8 min de leitura

Então: "boletos"

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Um dos termos mais certeiros e apropriados que a dinâmica de neologismos e novilínguas das redes sociais gerou nos últimos tempos é o da “coitadolândia” – uma subversão da própria gíria/adjetivo/condição pessoal ou estado do “coitadismo” enquanto local fictício-retórico de quem não apenas “se faz de coitadinho” (essa é antiga), como de uma espécie de nova versão do ato, consistente em aproveitar uma certa capitalização bizarra da condição.


O coitadinho das redes sociais (que habita virtualmente a ‘coitadolândia’) talvez não seja exatamente um coitado(a), mas certamente é alguém cujo mote principal de sua estranha autopropaganda internética de persona reside em forçar um contexto onde esteja sempre próximo de algum tipo de buraco metafórico numa revival da hiena chata da Hanna Barbera que só faz reclamar de forma pusilânime e desmotivada.


É um curioso fenômeno que, como já sugeri, talvez quem não transite no meio de redes como o finado (mais propriamente morto-vivo ou dead que walk) Twitter e o BlueSky não conheça com perfeição: certa vez uma amiga se lamuriou para mim que havia sido reprovada na prova da OAB por falta de uma questão na prova objetiva – e em se tratando de uma pessoa estudiosa, com tino para a coisa e que sempre fora acostumada a se destacar na área, aquilo foi um baque terrível. Me confidenciou, ela, ali alguns anos atrás: “...é que tu só usa o Twitter, onde as pessoas passam o tempo todo fingindo rir da própria desgraça de um jeito humorístico. No Instagram é horrível se tu não vence, se tu não está feliz ou se não tem saco para mentir”. Ela deu um tempo das redes naquele período porque não aguentava os vitoriosos histriônicos do Insta, e nem tinha traquejo para simular rir de si mesma (Nota: final feliz – uma questão que ela havia errado fora anulada por conter uma dubiedade na resposta e ela acabou aprovada na temida e genérica primeira fase do Exame).


Claro: há, sempre houve - e não é coisa nova - uma tentativa de angariar algum magnetismo charmoso em se oferecer como o contrário da soberba odiosa dos muito bons. Há um certo tom de limite extrapolado meio ridículo e inato em quem arrota grandeza e vitórias demais e há, de mais a mais, uma certa chance de capturar simpatia, compaixão ou interesse na forma de pena, frente aos derrotados.


Mas, pessoal se passa: uma circulada na timeline do BlueSky e a (acho mais boa do que ruim, frise-se) migração das pessoas e da alma tuiteira para esse site mostra sua força quando as pessoas ostentam o dia todo uma espécie de estado de fudição metafórico ou uma glorificação de algum tipo de fudição material enquanto bandeira virtuosa ou appeal. É completamente over – e até estranho – exibir algo de concretamente bom. Divertido e dentro é passar comentando fracassos amorosos/sexuais, situações de constrangimento e, eles (reais ou artifícios retóricos) os “boletos vencendo”. Dramas. Tragicomédias. Ponte de simpatia.


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Por vezes me pego pensando como um mantra ou anestésico moral ante a coisas tensas, chatas, pesadas, sinistras ou apenas cansativas do meu dia a dia: é incrível como já estive inimaginavelmente pior. Claro: há que se controlar a verve de sedativo opressor que possui esse grau comparativo onde você se orgulha – ou engana a si mesmo – usando os piores patamares do mundo como benchmark ou como demonstrativo de força, tal e qual aqueles coaches que têm medo de ir até a esquina, mas dão palestras sobre “como ser macho” evocando exemplos patéticos de soldados comendo larvas em uma selva chuvosa e coisas que remetem a uma jornada canhestra de remontada por algum herói arquetípico fajuto.

 

Mas, se for pensar bem (e não vou ficar espalhando isso) estou, em larga escala, bem.


Já estive mal em termos financeiros, afetivos, profissionais, morais, físicos e toda a gama de categorias que se possa imaginar. Por vezes, em séries combinadas de um estar mal em vários (quando não todos esses) juntos.

 

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Dia desses passei voltando da Casa de Cultura Mário Quintana e após ver algumas das exposições da Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, por um emblemático endereço na Rua Sete de Setembro. Jamais esquecerei do prédio.


O ano era 1997 e lá estava eu: mal fisicamente, mal em termos de autoestima, mal em termos amorosos, e especialmente no núcleo de vários desses problemas, mal financeiramente. Daquelas vezes em que mal se tem dinheiro cara comprar um chiclé e que se procura ir a pé em parte do trajeto para economizar fichinha do ônibus (era fichinha, na época, como eram as de telefone público). Era o primeiro ano de faculdade e a necessidade de arrumar um emprego para tirar algum trocado contrastava com a questão de que qualquer trabalho na área e que remunerasse consideravelmente estava longe de um pirralho de 17 para 18 anos que mal havia saído do colégio. Fui office boy no escritório que meu pai mantinha com alguns amigos à época, mas a sensação de ou não se estar trabalhando de verdade, ou de se estar simplesmente fazendo um favor (somada com a questão de um que outro pingado significava tirar dinheiro de casa, ao invés de trazer) que permeava o local não me fez querer ficar muito.


Um anúncio no jornal, uma promessa de vaga meio nebulosa, uma estimativa de oferta salarial bem considerável me fez ir junto com uns outros 30 (coitados no sentido literal) às 14h em um andar desse prédio não identificado de escritórios na Sete de Setembro para escutar 40 minutos de palestras indefinidas, ver uns 10 minutos de vídeos que não eram bem específicos e mais uns 5 minutos com o dono da empresa dando algo que hoje seria visto como discurso quântico-motivacional de baixa intensidade. Ao final, eu me achando meio burro, e um sujeito ao lado vivificou aquilo que nós professores sempre falamos: não represe consigo uma dúvida, eis que ela pode ser a de todo mundo. Enfim, perguntaram: em que diabo consiste esse emprego? Para quê é essa vaga?


Por trás de toda uma cortina de fumaça que não ousava dizer seu nome, diante do tom curto e grosso, o chefe foi obrigado a dizer, sem enrolação, que era uma firma que entregava galões d’água para escritórios e conjuntos comerciais. Em algum universo paralelo, o Gabriel ainda tinha mais medo de morrer de fome do que o Gabriel dessa realidade, e alguém iria me ver carregando galões d’água tirados de uma Fiorino no centro de Porto Alegre. Não ocorreu.


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Em outra dessas vagas miraculosas meio indefinidas no jornal, fui a um andar de um edifício mais bonito na Rua Riachuelo, acima do Shopping Rua da Praia. Mais uma vez uma promessa de “oportunidades” e possibilidade de “carreira progressiva” em relação a algo que juro que até hoje não sei bem o que era porque a entrevista foi muito ruim para todos, menos para um rapaz loiro, alto, boa compleição física, olhos azuis, que estava usando (diferentemente de todos com no máximo uma camisa polo mal ajambrada) um terno de cor creme (meio esquisito, mas certamente avançado para a ocasião) que tinha um sobrenome anglófono e que, dada filiação paterna, havia morado e estudado nos Estados Unidos. A entrevistadora basicamente virou seu corpo para o lado do rapaz que de forma constrangedora (para os demais coitados strictu senso) monopolizou a dinâmica e fez todos ali parecerem figurantes tristes. Espero que tenha crescido na empresa e aproveitado a carreira.


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Minha última tentativa naquela leva do fatídico semestre 1 de 1997 foi uma entrevista para ser atendente da então inaugurada Livraria Saraiva do Shopping Praia de Belas: nada mal em termos de trabalhar entre livros e DVDs e auxiliar uma clientela legal. Tinha até uma camisetinha preta e amarela de uniforme que era bacana. Achava que tinha andado bem nas dinâmicas de entrevista. Uma colega de aula ironicamente ficou com a vaga e freudianamente creio quer não a perdoei até hoje.


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Vou poupar vocês do semestre II de 1997 e o I de 1998, quando a quantidade absurda de quinquilharias do apartamento da minha avó (especialmente livros e discos do meu falecido tio) foram objeto de escambo e venda por mim e foram uma fonte de renda interessante entre trocas e revendas nos sebos e brechós de Porto Alegre e região metropolitana e me fez vivenciar uma realidade parecida (embora mambembe) com a do filme “O cheiro do ralo”. Tem histórias boas (talvez me anime a contar, algum dia) e rendeu, incrivelmente, uns bons trocados.


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Em 1999 começou minha história de duradouros estágios respeitáveis e honestamente remunerados em Tribunais (estadual e federal), que foram quase até o começo de uma advocacia sem habilitação (o famoso lugar entre o estagiário que já se formou e o advogado que ainda não é), seguida por advocacia de verdade (o que também teve na linha momentos de coitadismo realmente existente que fariam os coitados hype das redes de hoje chorar convulsivamente).


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É impressionante como sob todos os aspectos estou melhor hoje em dia. Do tipo que pensa naquela época e (somados aos quase 30 anos de distância) quase considera parte de alguma espécie de arco alternativo bizarro, ou pesadelo com a câmera meio desfocada do qual o protagonista acorda de sopetão.


É por isso que coitadinhos da coitadolândia não me descem muito.


Quero distância de má fase. Não preciso anunciar por aí (inclusive fingindo uma bonança financeira total que está longe de ser bem assim) que meu cartão de crédito esse mês deu numa fatura gigantesca – dado que suportou uma parcela de um seguro específico que pago religiosamente de forma anual e que me faz muito bem por existir. E que foi pago com alguma cara feia, mas sem a dor de inviabilizar o resto de minha vida útil. Pequenas vitórias. Confortos em algum lugar. Estabilidades temporárias que, sim, são reais.


O equilíbrio entre olhar para sua linha do tempo, tipo a linha do 'M' da mão, e perceber que andou um belo bocado e triunfou sobre muita coisa, e perceber que lidou com as várias demandas oriundas de lugares ruins e o de não ter isso como um limite judaico-cristão de dádiva suficiente precisa ser encontrado sem que tudo vire bandeira e tentativa de atrair atenção em jogos bobos de posts em uma rede. Acertamos volta e meia uma carreira inteira no cubo mágico. Isso pode não significar nada para o arranjo geral do cubo e o trabalho nunca cessa. Mas já é algo.

 

UM FILME: recebo sempre com surpresa a informação de que algumas pessoas desconhecem totalmente “O cheiro do ralo” de Heitor Dhalia, 1997, com Selton Mello vivendo, talvez o maior de todos seus papéis. Posso garantir que o submundo das pessoas que tentam ganhar dinheiro com a venda de tranqueiras, antiguidades e cacarecos nas cidades grandes é fielmente retratado – mesmo em seus exemplos que parecem mais bizarros.


UM LIVRO: “Ardil 22”, de J. Heller é um livro divertidíssimo que ironiza a co-dependência entre alguns problemas, suas possíveis soluções e a potencialização de outros problemas em uma visão satírica sobre a 2ª guerra mundial que certamente vale à pena. Foi um dos livros que me rendeu um belo dindim quando fui negociá-lo num sebo da mesma Rua Riachuelo onde realizei a entrevista aquela que até hoje não sei para o que era (imagino o rapaz brasileiro-americano loiro com dois filhos igualmente loiros). Deu pena de vender, mas foi.

 

UM DISCO: “Capinan, o viramundo” era um dos discos que dava sopa entre as quinquilharias que minha avó detinha num cômodo específico da casa. Uma pena tudo isso ter ocorrido antes da retomada da brisa do vinil. Eu estaria rico, lhes digo. Esse é mais um que foi para o azeite. Mas, de forma precária em uma vitrola já quase destruída pelo tempo, em uma casa que não mais escutava discos de vinil, eu testava, conhecia e reconhecia tudo o que lá estava antes de ir à luta pelos trocados no centro. Esse tem umas pedradas brutais: “Soy loco por ti América”, “Papel Machê” e especialmente “Gotham City”, até hoje misteriosíssima (mas que na versão original cantada por Jards Macalé supera e muito a do Camisa de Vênus, meio amorfa)

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    Gabriel
  • 4 de abr.
  • 7 min de leitura

Gosto - desde que me entendo por gente - de filmes de terror, embora os motivos dessa predileção foram, se não sendo substituídos, aprimorados, ao longo dos anos de vida e cinefilia. Hoje em dia, costumo dizer que o terror - especialmente quando acoplado a algum tom fantástico, surreal, sobrenatural ou metafísico - é uma possibilidade narrativa infinita que, como os sonhos ou os delírios, pode se dar o luxo de contextualizar uma história a partir de patamares que nada devem à lógica. Um espírito atormentado. Uma antiga maldição. Um cemitério indígena. Pessoas que mudam de rosto. Mortos que dão recado.


Gosto de acompanhar um pessoal que entende do riscado falar a respeito de modo que volta e meia dedico parte de tempo livre das semanas dando play em materiais como os do República do Medo, do Não Apague a Luz e dos Esqueletos no Armário e me delicio com as tiradas e reflexões deles em cima desse tipo de temática.


O terror também é um gênero que possibilita uma amplitude estética e de proposta cinematográfica absurdamente larga e faz consequentemente com que até produtos ruins sejam fonte de prazer e contentamento: uma comédia ruim é (para mim) insuportável; de um filme de romance fraco e condescendente com standards morais médios eu fujo sempre que possível. Agora, um filme de terror pode ser pesado, estilística e historicamente significativo, como "O Exorcista" ou "O bebê de Rosemary", tanto como há noites que pedem diversão em ponto morto, tal e qual algum lixo adorável consistente em meninas sem sutiã sendo mortas a facadas por psicóticos em acampamentos de maconheiros.


Foi nos últimos anos - e após já acompanhar uma geração inteira de fãs e produtores de conteúdo que reajusta filmes que eu vi na adolescência como verdadeiros clássicos jovens (o patamar atual que é consenso em torno de "Pânico", de Wes Craven, 1996, é um exemplo), que me dei conta de uma coisa que sempre achei implausível ao nível até de perturbar um pouco o sangue doce com o qual assisto certas produções: há um padrão de condução da história onde se aloca esse tipo de filme onde universitários/colegiais inconsequentes morrem em um contexto onde tudo parece lúdico até começar a ficar estarrecedor - e é ao mesmo tempo uma exigência narrativa que compõe o fator tradicional do estilo. Deve, em algum momento do enredo, haver uma festa ou carnaval alucinado (uma casa onde os pais do anfitrião foram viajar? uma casa de campo que estará vazia em um dado final de semana, talvez?), e onde ocorrerá algum tipo de clímax com um ou vários cadáveres que começarão a ser notados a partir de dado momento em que pessoas começam a literalmente sumir dos olhos do público. O que sempre me intrigou nesse tipo de condução é o singelo fato de que: quem faria uma festa (e alugaria barris de chope?) em uma mesma semana onde alguém na sua escola ou bairro foi morto a golpes de foice e teve o intestino delgado pendurado em uma estante de troféus de campeonatos interestaduais de basquete? Bem: muita gente faria. Nós, inclusive.


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Acompanhando não apenas a literal ladeira abaixo do mundo como a interação dessa consequência com várias das causas que podem ser associadas à versão de racionalidade neoliberal e ao tipo de individualismo cruel e histriônico que nos percorre no estágio atual da aventura do capitalismo, me dei conta do tom altamente poético e visionário de várias películas que, como em automático, foram ao longo dos anos produzidas em série sempre utilizando das mesmas fórmulas. A menina recatada (porém sexy) que é cheia de dúvidas (porém impetuosa) que se candidata a final girl (em oposição à sua amiga 'piranha' e espalhafatosa), e o louquinho do corredor que já de antemão sabemos que é absolutamente inocente em termos de não ser o vilão (apesar de haver pistas imbecis e constrangedoramente descaradas de que ele oculta alguma coisa) são tão elementares quanto a "festa inoportuna" que precisa ocorrer apesar de o município viver aparentemente uma onde de assassinatos brutais.


Na era do TikTok onde tudo freneticamente já chega em uma transmutação quase instantânea e quase total de notícia/relato em meme/interpretação extrativa, é mais do que óbvio que, sim: ninguém vai cancelar o churrasco na mansão afastada ou a invasão do salão da escola na madrugada apenas por que Jenny, a cheerleader capitã, foi esfaqueada trinta e seis vezes num beco atrás da loja de conveniência da main street local de uma cidade com 12 mil habitantes. Talvez alguém - na mesma tarde do dia em que a notícia se espalhou - faça algum 'edit' de suas melhores fotos com Jenny e um brinde a ela com algum tipo de destilado duvidoso. Mas, definitivamente, a festa no sábado seguinte ao evento não só não será cancelada como vai bombar. Era a coisa que eu achava a mais implausível - mesmo em filme que pessoas usam máscaras e machados - e virou aquela que considero mais óbvia.


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Vi a reportagem essa semana do estarrecedor ataque a facadas que uma professora de uma escola pública de Caxias do Sul-RS recebeu de dois alunos. Comunidade, Diretor, professoras, pais dando depoimentos esbugalhados, reticentes e chorosos na TV. Psicopedagogas e promotores de justiça falando do caso com sobriedade em entrevistas. Ao fundo das câmeras de um dos depoimentos, adolescentes faziam o que costumam fazer nessas situações e se propunham a macaquices para tentar trollar a transmissão.


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Eu e minha companheira fomos em um show da Lana Del Rey há dois anos em um malfadado festival que tomou corpo no centro de São Paulo, no Vale do Anhangabaú (péssima logística e acústica). Éramos as únicas pessoas com mais de 40 anos (e héteros) em um raio de muitos metros, paciência.


Em dado momento, uma menina no bolinho de garotas radiantes de alguma combinação de álcool com coisas ainda não bem identificadas, à nossa frente, simplesmente deu tilt e caiu dura no chão, apagada. Alguns segundos (menos de minuto) de uma espécie de desespero tomou conta do grupo enquanto nós e alguns poucos viventes ao redor demonstramos preocupação em alertar o pessoal do balcão do bar próximo em chamar os socorristas, eventualmente. Pouco tempo passou (menos de minuto) e a decisão do grupo foi singela: deixa a amiga deitada como um moletom acomodado no centro da rodinha porque Lana estava divando no palco (cantava a ironicamente emblemática "Ultraviolence" no momento). Uma amiga da turma dava uma que outra olhadela para a desmaiada enquanto alternava a câmera do celular gravando stories da musa no palco e o modo frontal, para filmar a si mesma cantando e emulando um choro meio forçado. As demais faziam algo similar. A guria no chão demorou a esboçar reação que indicava sinais vitais, mas acordou, aparentemente. O importante é não perder o timing da postagem. Várias curtidas ao vivo (coraçõezinhos subindo em profusão na tela, pude notar).


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Imagino a situação do estupor (há que se admitir) dos alunos da escola de Caxias. É o mesmo de quando alguma falta de luz inesperada causa cancelamento de aulas, de quando há alguma bem sucedida ameaça de 'bomba' na escola (uma tradição brasileira que ganha outros contornos e contextos, bem piores, se falarmos em países do norte global, sobretudo um deles, específico), alguma greve ou mesmo aquela coisa meio eufórica do começo da epidemia (depois pandemia) de Covid, onde achávamos inicialmente que tudo se resumiria a um ponto facultativo episódico de duas semanas e era até excitante o aviso para ninguém andar na rua.


Colegas atacaram uma professora a facadas. Aulas suspensas. A ideia é apostar com os amigos nos grupos internéticos quem consegue aparecer atrás do repórter. Os comentários. O perverso e absurdo ciclo dos autores do fato serem ora jogados na lama, ora compreendidos com um certo tom de advogado do diabo, ora (há que se admitir e pensar nisso) heroicizados. Quem tem novidades? Quem sabia de algo? Quais as figurinhas e os memes mais engraçados sobre? Não se pode ir à aula. Há um assunto conectando a todos (mesmo a galera de outros colégios). Debates. Choro de alguns. Galhofa de outros. Todo mundo frenético, mas ao mesmo tempo, meio em suspenso, vivendo um curto circuito onde uma conexão geral mantem todo mundo de um jeito ou outro na mesma página.


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Não me surpreenderia nem um pouco que seja esse o assunto que domine as rodinhas na 'festa' que certamente vai haver em Caxias do Sul em algum momento, de algum jeito, nesse final de semana. Presumir que essa galera está necessariamente em um clima funesto é não saber nada vezes nada.


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Há gente falando em transmitir a série "Adolescence", da Netflix e seu previsível e merecido sucesso em escolas como forma de discutir e enfrentar a questão da violência, do bullying e do masculinismo tóxico nas escolas.


Sinceramente? Sou de uma geração que teve exibida para si doses maciças do filme da Christiane F. e do livro respectivo para supostamente discutir e enfrentar a questão das drogas e do sexo. Eu diria que não adiantou muito (muito embora nunca na minha vida quis me aproximar de heroína - e embora, também, eu já era um jogo ganho nesse sentido: jamais na vida quis usar uma droga que envolve agulhas na veia e uma tremenda mão de obra daquelas).



UM FILME: "Pânico" (Scream), o original da franquia (odeio esse termo) consegue várias proezas meta linguísticas. A maior delas a de ser o filme mais plain em termos de obedecer todos os critérios chiclete para um filme de "terror adolescente" ser empacotável, quanto sua premissa central ser justamente dobrar a aposta e debochar especificamente disso, de forma aberta. Poucas coisas nesses últimos quase 30 anos foram tão certeiras - e geraram uma cadeia igualmente meta linguística de imitações de imitações, algo não igualado sequer pelas suas próprias continuações (a maioria sofríveis e indignas de nota).


UM DISCO: escutei essa semana um disco meio down e esquisitinho que em algum momento há uns 20 anos atrás foi hype no exterior segundo algum site especializado em tendências fugazes. O nome da banda/duo é Fischerspooner e o nome do álbum é "# 1". Em alguma playlist dessas que a vida traz estava a faixa "Emerge", único registro que fez referência a algo que minha memória registrou parcamente desse caso. Resolvi ouvir o disco todo e é música eletrônica da cena electroclash afetada, do tipo que me fez saber porque nunca dei tanta atenção (no quesito, eu curtia Peaches, por exemplo).


UM LIVRO: gosto demais do argentino Pedro Mairal. Ele tem coisas lindíssimas (como "Salvatierra"), coisas estilo crônica urbana e divertida (como "A Uruguaia"), mas eu queria mesmo indicar aqui a coisa mais adorável - sobre 'adolescência... - que você lerá em termos de "romance" (que não é romance, é bem curtinho e mais singelo) "de formação": Uma noite com Sabrina Love. Tempos de uma juventude mais simples, com sonhos mais (literalmente) palpáveis.

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    Gabriel
  • 28 de mar.
  • 7 min de leitura

Eu sempre tive um ranço tremendo do Super-Homem (o kryptoniano do S no peito. Do ubermensch Nietzscheano, nem tanto, embora alguns problemas). Não obstante, eu colecionava avidamente as revistinhas mensais sob a rubrica do personagem, naquele início de década de 90.


Entenda: além de contar com o traço do meu (à época) desenhista favorito (John Byrne), as histórias que circulavam na edição do "homem de aço" eram uma espécie de Aeroporto de Guarulhos do universo da DC Comics, e invariavelmente tramas que envolviam outras edições e sagas de outros heróis tinham ali quase sempre alguma conexão ou referência, de forma que não ler a "Super-Homem" da Editora Abril era como assistir um jogo da Seleção Brasileira sem ser pela Globo (e você pode igualmente ter um tremendo ranço da Globo, mas atire a primeira pedra se não há uma espécie palpável de sensação de que se está fazendo algo do jeito errado, nesse caso).


Minha bronca maior com o Super-Homem é a necessidade tremenda de invenção aleatória e cada vez mais imaginativamente custosa para conferir alguma emoção a uma história de um sujeito que mal e mal se despenteia se aparar no peito um míssil atômico: para correr algum risco, o cara precisa enfrentar alguma vilania cósmica absolutamente non sense e pautada em algum tipo de gigantismo apelativo - ou ficar próximo de uma lasca de uma pedra verde esquisita (é uma opção).


Eu sempre gostei de heróis díspares entre si (vide, abaixo, maus três preferidos) mas que contêm uma característica que os aproxima de um tom trágico iminente: por mais habilidades, poderes sobre-humanos e apetrechos que possua, o sujeito, se levar um tiro na fuça ou uma facada bem dada, bem: morre.


Um é um personagem tão saturado na cultura geral e tão revisitado e escrutinado de tantas maneiras que não vale gastar muito tempo falando (e minha fissura por ele é notória e o assunto poderia render demais, ao nível do inoportuno). Vou me resumir a lembrar que não gosto das versões que visam conferir uma sobre-humanidade e uma espécie de exoesqueleto embutido numa fantasia (a partir de toda e qualquer invencionice fanfarrona que o dinheiro do Banco de Gotham City possa financiar), que terminam por lhe conferir um grau de invencibilidade e virtual imortalidade que depõe contra a poética do personagem (e ver ele falhando e se machucando no "Ano Um" de Miller e Mazzucchelli - meu quadrinho predileto do personagem - e em alguns momentos similares do filme, último, com Robert Pattinson, são bálsamos frente a algumas bizarrices dos últimos tempos onde o sujeito tem algum tipo de armadura aborrecida à prova de balas e possui algo como sete vidas - eu sei disso sobre gatos, não morcegos).


O segundo, vejamos: um garoto picado por um aracnídeo radioativamente modificado que passa a conseguir subir em paredes (que merda é essa?) e que mesmo na pindaíba absoluta é genial e sagaz o suficiente para conseguir não só elaborar um uniforme colant eficiente quanto um dispositivo (pelo amor de deus) acoplado ao seu punho que dispara um fluído que ele mesmo inventou (na boa...) que se solidifica enquanto uma teia firme o suficiente para pendurar um automóvel entre dois edifícios. Ofensivo (que os deuses do cânone me perdoem, mas as versões cinematográficas dos anos 2000 - onde parte da mutação genética fazia com que ele pudesse brotar teia dos pulsos - eca - e mesmo a última versão das 'franquias', onde tudo de mirabolante que ele tem foi presenteado em forma de altíssima tecnologia por um herói/tutor bilionário - fazem mais sentido).


O terceiro é um guri que fora cegado por um acidente com produtos químicos quando pequeno e secretamente mantém uma gama de habilidades impensáveis que o próprio acidente sem querer conferiu a ele em termos de todos os sentidos restantes serem exacerbados, a despeito de tirar-lhe a visão. Em que pese de suas necessidades especiais aparentes (ou fingidas, no caso), conseguiu se formar em Direito e atua como dublê de advogado ao dia e fantasiado de diabinho nas noites de um bairro de Manhattan onde salta de prédio em prédio com desenvoltura de ginasta suicida e surra de bastão uma catrefada que ele mesmo vai se oferecer para defender pro bono na Corte dias depois (a dupla Miller e Mazzucchelli igualmente assina um arco que também está entre meus contos preferidos da vida desse personagem).


Tirante diferenças colossais de lore e de tendências comunicativas e/ou simbologias, Batman, Homem Aranha e Demolidor possuem essa coisa que me encanta que é carregarem a mortalidade banal possível como traço de humanidade que me faz pensar com gosto em suas possibilidades e historietas. Os dois últimos ainda lançam mão de outro traço de humanidade que sabida e antipaticamente (fonte de um sem número de críticas e teses nessa nossa era) não é compartilhado pelo primeiro. Se Bruce Wayne parece se complicar cada vez mais para o gosto de certo público ao rodar uma espécie de ciranda infinita com ares de profecia que se auto cumpre (não seria ele e sua fortuna babilônica um dos genuínos motores da miséria - inclusive moral - que atordoa sua cidade natal?), Peter Parker e Matthew Murdock precisam rebolar para pagar os boletos.


No caso de Murdock (o Demolidor) a quantidade de pontos de contato é cruel: rapaz católico, em constante conflito com sua revolta e os limites parcos da ética onde fora doutrinado, vive o dilema de ser o demônio vingativo, mas controlado por um tom de respeito a preceitos fundamentais que o arremessa nessa singela porém apaixonante dicotomia. Não há arco do Demolidor onde não haja algum momento limite onde a tensão reside em saber se (e quando, e onde) ele vai perder as estribeiras que o caracterizam normalmente.


Uma das coisas - inegável - que sempre me fascinou em Matt (e influenciou meu futuro mais do que talvez deveria ou mais do que eu devesse admitir em um blog) é o fato dele ser advogado. Não apenas advogado, mas o simpático - e charmoso - tipo mais adorável de advogado: o camarada que defende a ralé mais baixa e desamparada da redondeza (que geralmente não tem qualquer trocado para o faz-me-rir do doutor), e o faz com maestria pois é dos bons. Craque no regulamento e no gogó. Rei da tribuna. Showman. Malandro. Casca grossa de bater de frente na audiência de custódia. Mestre do júri. Galanteador. Piadista. Erudito.


É basicamente o epíteto do romantismo advocatício. Sofre com e pelos seus clientes, como na imaginação do Carnelutti e suas "Misérias". Bebe um whiskynho caro guardado para as vitórias memoráveis. Quebra a cabeça nos recursos e sempre encontra a solução em uma madrugada insone.


Não estou gostando muito não, se querem saber, da série televisiva atual que arrecada o personagem para o universo cinematográfico da Marvel. Há algo ali em termos de roteiro e referências explícitas a problemas políticos cotidianos que me parece azedo e artificial. Inegável que um acerto pleno é manter um fio condutor que remete à série que há dez anos foi veiculada na Netflix (que é uma espécie de prólogo ainda que não bem assumido, porém 'oficial', da atual exibição). Charlie Cox é a encarnação física da versão consagrada do personagem nos quadrinhos, de um modo até então jamais visto e dificilmente superado em qualquer futuro imaginável hoje. Vincent D'Onofrio faz um Rei do Crime magistral - que, enfim, atendeu minhas preces e vai retratado como um homem gordo plausível, e não uma montanha descomunal absolutamente inverídica (e a predileção por desenhistas fazerem seus Reis do Crime, ano após ano, de uma forma cada vez mais paquidérmica sempre me intrigou e mesmo irritou - não há suspensão da descrença que aguente).


Mas mesmo torcendo o nariz para a série atual em larga escala, há algo a dizer: o Matt advogado está impecável. As visitas aos presos, os papos com os clientes, a negociação onde (em um dos episódios) ele vibra por conseguir algo crível para um caso perdido de um acusado em termos de acordo judicial (e ainda assim toma esporro por sua incompetência), os corredores de delegacias e fóruns com as famílias de vítimas e réus e seus dramas, maiores que o mundo (no estilo do poema: eternos enquanto duram). Tudo é retratado de maneira peculiar e certeira. O Matt que sente o abalo do clima desfavorável (e sua audição e percepção aguçadas captando acelerações e disritmias cardíacas para usar como trunfo em situações diuturnas é sempre um ponto alto dos episódios), o Matt que sofre com o touché do Promotor sedento por sangue. O Matt safo, que ri com uma ironia fanfarrona quando se dá bem (e que faz conter a raiva de todos por crerem que se trata de um pobre deficiente, ao fim e ao cabo) são definitivamente (e estranhamente) a melhor coisa de um produto audiovisual que narra as desventuras de um (super) herói.


Eu dia dizer que ele lembra um Gabriel de outrora (sempre queimado nas prestações e economizando o almoço para pagar a janta), mas que era capaz de sorrir após alguma tirada boa em uma audiência defendendo algum pobretão que depois se esquivava de cumprir os honorários devidos, ou cobrando (cheio de documentos e razão) algo em juízo de alguém que já tinha penhorado as próprias calças três vezes e mesmo perdendo, não ia pagar é nunca.


A correria de uma hoje impensável justiça de prédios e salas físicas, de processos físicos, de chuvas bem físicas que engarrafavam tudo e a apreensão indo para o Fórum de Porto Alegre e/ou para o TJ à bordo por vezes de um Gol mil, por outras de um ônibus da linha T7.


Se aquele Gabriel sorria bastante e não perdia uma piada, é até um insulto esse daqui que escreve isso o fazer. Traz o whiskynho, por favor. E dos bons, importados, sem miséria. E já aviso que é para botar na conta que depois eu vejo. Pendura.


UM LIVRO: está chegando aí "Desejo pós capitalista", uma coletânea de transcrições de aulas de Mark Fisher que são as últimas expressões do cara em vida. Vou ler ele após ter lido "Marx além de Marx" do Negri, que igualmente é um curso pensado e ministrado em 1979. Ler coisas de aulas, ver como um "show, ao vivo" desses pensadores é como ler não um livro/história, mas o roteiro da peça de teatro que o encena. Adoro. Adoro quando as peças descrevem cenografia enquanto narram, inclusive.


UM DISCO: emocionadíssimo com o show "Caetano & Bethânia" que vi ('ao vivo'...) do gramado da Arena do Grêmio em Porto Alegre, semana passada. Vamos essa semana com um dos meus preferidos de Caetano, cuja fitinha k7 tinha lá em casa quando eu era pequeno "Cinema Transcendental".


UM FILME: segue a entressafra de filmes aqui. Mas: que série impressionante e forte é "Adolescence", não? Meu deus, dê play sem pestanejar. Quatro episódios. Paulada.


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