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  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 20 de jun.
  • 9 min de leitura

A cama tremeu.


Parecia algum tipo de equívoco sensorial causado por algum movimento de eventuais molas no colchão, ou engano dado movimento das pernas. Eu estava de bruços, tv ligada, eventualmente teria me confundido.


Achei estranho e fiz aquele silêncio típico das pessoas que querem prestar atenção em algo, como quem desliga o rádio para estacionar melhor (em tese nenhuma relação, mas: sabemos), e permaneci estático.


A cama tremeu de novo instantes depois. A cama, o chão, as cortinas. O quarto. Estava de bermuda e camiseta de dormir. Desesperado, desci pelas escadas - o quarto era no segundo piso - e cheguei à Recepção aflito (não lembro se cheguei a calçar sapatos) e comuniquei o fato ao sujeito no balcão. Ele, sem tirar os olhos do monitor, mexendo no mouse respondeu, aborrecido: "É, deu uma sacudida. Desse tipo acontece bastante".


Foi talvez um dos terremotos mais suaves da história da Guatemala. Mas: foi meu primeiro terremoto.


Olá: meu nome é Gabriel e assim teve início um dos dias mais malucos da minha vida e - acredite - o terremoto não foi exatamente a parte mais excêntrica dele.


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Desde 2017 faço parte do corpo docente de um curso de Maestría em Criminologia na Universidad San Carlos, Guatemala, capital. Esse tipo de curso, na USAC (é a quarta mais antiga universidade das Américas) costuma ser repleto de professoras e professores dos mais variados cantos das Américas do Sul, Central e México - além de gente da Espanha, igualmente. É uma oportunidade incrível de troca de experiências, de poder lecionar em outro idioma, de conhecer outras paragens (a Guatemala hoje é, matematicamente, um dos países onde mais estive) e de escutar sobre outras visões - acadêmicas e de mundo, em si.


O módulo consiste em uma semana onde ministro aulas das 17h30 às 21h no horário local (três horas abaixo do nosso fuso brasileiro - geralmente eles me encaixam em algum voo que chega domingo de tarde e parte no sábado de manhã seguinte: de Porto Alegre são seis horas direto até o Panamá e de lá mais quase duas até o La Aurora). Na maior parte dos dias eu fico livre para desfrutar as benesses do ótimo hotel em que sempre me hospedam (jamais pensei que me transformaria em um tipo desses, mas: a academia do hotel é de primeiríssima linha e sou cliente habitual) e para passear pelas redondezas (estrategicamente perto de uma excelente cafeteria e da loja oficial da Zacapa, o melhor rum do planeta inteiro).


Por vezes, há algum compromisso com a universidade, como, por exemplo participação em algum seminário ou debate e, bem, digamos que era uma ocasião dessas naquela manhã de algum dia qualquer de junho de 2018 - para a qual houve convite excepcional para participação em Bancas examinadoras de Teses de Doutorado. Estava rolando Copa do Mundo e nos mais aleatórios horários passava algum jogo na TV. Havia um (não recordo qual) durante o café daquela manhã onde ocorreu um mini terremoto e eu, ainda nervoso, mal e mal engoli alguma coisa e tratei de vestir um terno logo em seguida. Eu e um professor mexicano da Universidad de Puebla iríamos ser apanhados pelo motorista cedo para irmos até o campus e participar da avaliação de dois trabalhos de doutoramento (me foram inclusive enviados, fisicamente, pelo correio semanas antes)


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No caminho, o professor parecia muito mais aflito com a situação da definição da classificação do México para a fase eliminatória da competição do que com o eventual terremoto júnior, que revelou ter sentido, fazendo igual ou menos caso que o recepcionista (era um dia em que eles perderam de 3x0 para a Suécia e a cada gol, via alerta no aplicativo do motorista programado para acompanhar o minuto a minuto da partida, o mexicano desfalecia em lamúrias). O motora (o conheço desde a primeira vez que estive lá - sujeito querido, mas de pouquíssimas palavras) parecia também mais atento ao futebol do que em comentar uma tremidinha corriqueira no solo.


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Após trajarem-nos de forma altamente pomposa e protocolar, com togas e chapéus com detalhes vermelhos, os organizadores nos conduziram à sala dos exames, em uma mesa de madeira antiquíssima e elegante, e procederam-se os debates jurídicos sobre os trabalhos e suas respectivas defesas. O primeiro era um rapaz que fez um compilado inacreditavelmente grande sobre as formas alternativas de resolução de conflitos que poderiam dispensar a lógica padronizada dos tribunais. A segunda, era uma mulher na casa dos seus 40 anos, que discorreu sobre tipos penais e lógica de enquadramento de acusações de corrupção.


Em meio à apresentação dessa segunda candidata, fiquei sabendo que ela era juíza na capital e pude notar que no momento da sua vez de tomar a palavra, entraram na sala um senhor mais velho de cabelos grisalhos e dois tipos carrancudos vestindo terno preto e óculos num pique men in black (a sala ficou vazia durante a apresentação do primeiro, que foi embora assim que se encerrou sua avaliação).


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Feitos os cumprimentos (a candidata foi aprovada) o senhor grisalho pediu a palavra: era o pai da agora Doutora, um ilustre advogado tarimbado do país, que fez algo como que um discurso louvando sua filha. Digo 'fez algo como' porque o sujeito falou por cerca de dois minutos e eu basicamente não entendi nada. Nada. Zero.


Considero que sou bom com língua espanhola e mais ainda quando se entra no modo Guatemala-visitante, quando o idioma é tudo que se escuta por uma semana inteira (o cara chega a falar sozinho em espanhol, acredite - não raro). Mas, o fato é: jamais tinha escutado um sotaque e uma pronúncia daquele jeito. Não compreendi nada fora de algumas palavras soltas - e o nome da filha, em meio ao falatório do homem.


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Percebi que qualquer movimento na sala agitava os men in black presentes e que a menção de todos deixarem o recinto os fez saltar rapidamente dos assentos e conduzirem uma checagem estranhíssima da porta e dos corredores.


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Na sala onde nos desmontamos das togas e estávamos assinando as papeladas atinentes ao protocolo, fiquei sabendo de duas coisas:


A juíza, em questão, era basicamente uma das pessoas mais famosas da Guatemala. Ficou conhecida por ser persona non grata ao condenar e mandar prender acusados de corrupção em esquemas de fraudes públicas na capital, fora mandada para uma comarca próxima ao México onde conduziu julgamentos de narcos perigosos, tirada de lá por sua segurança e enviada para uma comarca onde bateu de frente com grileiros locais (estamos contabilizando já o terceiro grupo que a jurou - literalmente - de morte), e atualmente trabalhava em um rumoroso caso onde uma família de um empresário russo que havia fugido de seu país por estar em maus lençóis com o governo Putin estava preso por uso de documentos falsos para forjar uma cidadania guatemalteca, e cuja família estava movendo campanhas de difamação contra ela na web, dizendo ter provas de que ela e outros órgãos guatemaltecos agiam perseguindo-os (à mando e pagos pelo governo da Rússia).


Meio espantado e nervoso, brinquei que teríamos corrido 'risco de vida' em realizar essa banca hoje e ninguém riu. "A sala foi inspecionada pela equipe de segurança da juíza e a janela atrás da mesa da Banca foi considerada uma das menos propensas para haver o enquadramento do espaço por algum sniper próximo", me disse o coordenador do curso de forma bastante séria. "Poderíamos fazer em um gabinete mais fechado, mas não queríamos que a doutora se sentisse aqui também sitiada como costuma viver nos últimos tempos". Passei cerca de duas horas de costas para uma janela, sentado exatamente em frente onde uma pessoa poderia estar sendo alvo de snipers, real/oficial.


A segunda coisa é que a doutora e seu pai estavam muito felizes e faziam questão de levar eu e o professor mexicano para almoçarmos. Era início da tarde e parte da equipe de segurança da juíza que não estava na sala estava analisando sua camionete preta blindada para um double check sobre eventual instalação de bombas e existência de pessoas estranhas no perímetro do prédio do Direito.


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Houve um impasse na hora da divisão dos carros - o motorista da universidade tinha saído em outra missão - e em um átimo de segundo ficou para mim a decisão se eu cumpria um trajeto de cerca de 25 minutos na companhia de um homem de quem eu não entendi sequer uma palavra, ou em uma camionete Dodge gigantesca com plausibilidade de ser atingida por um míssil vindo de um descampado ou por sicários com metralhadoras antiaéreas desde a caçamba de um caminhão em frente. Como prefiro ser dado como louco (ou mal educado) do que como falecido, optei por acompanhar o senhor e mais alguns dos 'homens de preto'. O professor mexicano entrou na trevosa camionete, e partimos.


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O sotaque do homem era realmente estranho (não parecia o cadenciado e limpo espanhol guatemalteco típico da capital, nem nenhum outro que já escutara), mas, para minha sorte, meus ouvidos se acostumaram mal e mal da mesma forma que nossos olhos, pelas tantas, se acostumam e passam a distinguir uma que outra coisa na escuridão repentina. Foi quase meia hora de uma conversa meio errática, mas sem maiores problemas - nem sequestros.


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Chegamos a um restaurante chique em uma zona mais afastada do centro quase pelo meio da tarde. Os seguranças se dividiram entre alguns do lado de fora e dois que foram "almoçar" em uma mesa não tão colada à nossa - mas também não muito distante. O pai orgulhoso anunciou que eu e o professor mexicano éramos convidados de honra e podíamos comer e beber do que quiséssemos (a essa altura percebi que se tratava de um homem de cacife - e muito fino trato). Bebemos vinho, comemos muito bem - a especialidade da casa eram filés - e conversamos em um almoço que transcorreu sem maiores notas. Dessa vez o senhor nos levou ao hotel enquanto a juíza e seu séquito rumaram para outro lado na camionete-fortaleza, desfazendo-se a comitiva.


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No dia seguinte, próximo ao horário da aula, um auxiliar que trabalha como espécie de 'faz tudo' nos cursos das Maestrías sorriu ao me ver no corredor e disse que eu "estava famoso". Não entendi exatamente a brincadeira, que foi repetida quase com mesmas palavras por outro funcionário da secretaria. Quando a secretária do coordenador veio falar comigo me indagando se eu esperava vir do Brasil para acabar virando tema de discussão na Guatemala, eu tive que - meio consternado - perguntar do que ela estava falando. "Você não viu no Twitter?". Era difícil, naquela época, eu não ter visto alguma coisa no Twitter, mas obviamente assuntos internos da Guatemala não eram minha área de domínio e eu não tinha ainda a dimensão exata do que tinha sido minha tarde do dia anterior.


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Ela me espichou a tela do seu celular e havia um engajadíssimo post da conta do empresário russo que estava preso (a conta - bem como um site dedicado ao tema - eram alimentados por familiares do acusado, que se martirizava como 'preso político' e 'perseguido' e sustentava uma campanha voraz contra a pessoa da juíza em questão). Na tela, uma foto da nossa mesa no almoço no restaurante chique, tirada de uma proximidade perturbadora, onde se viam as costas da juíza e seu pai, e, de frente, eu e o outro professor.


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Imagine, sei lá, no Brasil, no mesmo ano de 2018, alguém ser fotografado, tipo, numa lanchonete com Sérgio Moro e Deltan - é mais ou menos esse o pique.


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Na legenda, uma clara tentativa de fake news que perguntava "o que a grandessíssima baluarte do combate à corrupção no país estaria fazendo em um almoço ~secreto ~em pleno meio da tarde de um dia de semana, na companhia de ~advogados misteriosos?"


Seguiam-se mais algumas fotos onde estava lá eu bebendo um vinho de gabarito e mandando altos papos com a juíza. Os comentários eram igualmente pérolas do sugestionamento que começaram a alcançar ares fantasiosos delusionais: uma pessoa questionou se a impoluta juíza não deveria estar trabalhando para justificar seu alto salário ao invés de estar em convescotes nababescos. Outro disse que "conhecia" os advogados em questão (...) e não eram nada mais nada menos do que os representantes de um réu que fora o único para quem ela havia concedido liberdade em um caso bombástico que havia julgado recentemente.


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Veio uma série de ofensas misóginas e algumas outras galhofas infelizes, como de praxe.


Deitado no hotel, à noite, depois da aula, confesso que dediquei horas que deveriam ser de sono à acompanhar tardiamente o desenrolar do bafafá e procurar ler sobre a situação.


Estava até meio receoso quando do acesso às áreas de embarque do aeroporto (mas passou assim que me uni a um grupo entusiasmadíssimo de locais para ver o jogo Argentina versus França poucos instantes antes da hora da partida).


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Na primeira vez em que estive lá, em 2017, alguns alunos após a última aula, me levaram para jantar, no que se estendeu para um convite para beber em uma boate localizada na surrealmente fantasiosa zona da Ciudad Cayalá (pesquise aí você: renderia, garanto, outro texto) e, de uma sacada no estabelecimento olhava para as luzes da capital pensando "O que poderia ser mais inusitado nessa vida do que eu estar de forma completamente aleatória em uma night na Guatemala?". Mal sabia eu.


UM FILME: assisti "Magic Farm" atraído pela presenta da ídola Chloe Sevigny, que desde sempre é uma referência para mim em termos de coolness. Saí nada desapontado com Chloe (bem pelo contrário), mas maravilhado com a diretora (e também atriz no filme) Amalia Ulman e todo seu trabalho de produção artística e visual que sequer conhecia.


UM DISCO: "Caro vapor II - qual a forma de pagamento" de Don L. Que figura interessantíssima do rap brasileiro é esse cabra. O seu "Roteiro pra Aïnouz vol 2", anterior, já era um petardo magnífico. Abre portas para bossa nova, samba, pop e muito mais, mas mantém a crueza, o veneno e a malandragem 'ruim' nas rimas. Excelente.


UM LIVRO: Guatemala? Não diga mais nada --> "Homens de milho" (Hombres de Maiz), Miguel Ángel Asturias.


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    Gabriel
  • 13 de jun.
  • 7 min de leitura

Ontem de noite eu estava na estrada - sim, você já sabe - e eclodiram bombardeios em Teerã - sim, você também já sabe - e promessas de respostas a Tel Aviv.


Eu nasci no ano da revolução iraniana que colocou o Aiatolá no poder (ou seja, embora já veterano, assim como vocês eu nunca vi um Irã de outro jeito) e vivi minha infância inteira sob a égide do chamado "Conflito Irã-Iraque", de tal maneira que creio que foi minha primeira experiência de 'hipernormalização': todo dia o noticiário tinha alguma notinha para dar sobre o conflito, de tal modo que desenvolvi minha personalidade meio que achando normal e inescapável o fato de que aqueles dois países se bombardeavam. Era do seu feitio.


Quando uns anos depois o Iraque invadiu o Kuwait logo após eu achar que haveria uma folga de tanto tiro nessas quebradas comecei tunar a percepção de que o Oriente Médio não era para amadores - tudo isso entremeado por Israel, aqui e ali, devastando Beirute de tempos em tempos (que demorei a descobrir que era um lugar lindo e cosmopolita, pois na minha cabeça todas as cidades mencionadas em tudo o que saía sobre a região eram uma espécie de escombros de edifícios mal colocados sobre um deserto árido. A visão de garotas de biquini e caras bronzeados jogando vôlei de praia na costa israelense também me deu tilt, na primeira vez).


De lá para cá, muita coisa em termos do que algum não tão jovem (as gírias: adoro como são incapturáveis e como quando você acha que as domou, elas já são obsoletas) chamaria de uma treta infinita que ultimamente tem uma de suas mais cruéis pontas soltas naquilo que Israel pratica com Gaza sob os olhos covardes do mundo e de algumas 'notas de repúdio' ou posts manifestando 'solidariedade'.


O ponto é que era algo como 23h34 e eu já tinha lido um capítulo do livro de Rodrigo Guerón discutindo Deleuze e Guattari, escutado um podcast (grande Gonzo, e seu trabalho excelente com os debates sobre Fisher no CriseCriseCrise) e já estava farto do videogame (o Manchester United começou meio errático sua jornada na Premier League) e uma vasculhada na web (já amaldiçoou o cara que desenvolveu a interface de "scroll infinito"? Vai lá, porque até ele se arrepende, literalmente - pesquise aí, o brother pediu desculpas já) parecia uma boa para aqueles momentos de quase-Porto Alegre. O que meus olhos cansados viram me inundou de tanta, mas tanta, mas tanta opinião que quase desmaiei tipo uma máquina sobrecarregada real (não 'máquinas desejantes', mais pra desktop antigo superaquecido).


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É uma pergunta irônica mas: como algumas pessoas conseguem ter tantos takes sobre tudo? Claro: seria de se elogiar que em alguns casos certas feras descobriram um conteúdo hormonal que às torna imunes a uma das doenças do século, que é a "síndrome da impostora" (uso preferencialmente no feminino, eis que a incidência é sabidamente maior em mulheres). Pessoal vai lá e simplesmente explana a guerra nascente em detalhes, diretamente de seu Motorola em Embu das Artes.


Sim, estamos todos aqui para dar pitacos, comentar, pegar o microfone por alguns instantes na ágora como naqueles programas em que o auditório faz fila para tentar ganhar algum brinde. Alguns tem tino profissional ou talento inato, para. Mas nos últimos tempos mais e mais a fome e a sede com a qual alguns precisam, quase que organicamente, aparecer e querer pautar coisas maiores que sua barriga e sua cabeça é meio incrível. Não acho que seja parte exclusiva do fenômeno de bancar o sabichão e vencer a "impostora", mais do que parte de uma necessidade já natural de acreditar que tudo, a qualquer momento, deve ser publicado. As pessoas andam com uma urgência meio surreal em 'participar' de algo, de algum modo, sendo a presença ou não de reverberação disso um mero detalhe eufórico.


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Uns dias atrás um camarada achou por bem divulgar na web que havia descoberto um relacionamento extraconjugal de sua companheira com um sujeito do trabalho através de vasculha nas conversas de whatsapp dela, printando detalhes sobre os papos entre ela e o amante e dando informações sobre a agência de publicidade em que ambos trabalhavam e onde viviam o romance furtivo - um trecho especialmente tragicômico do diálogo exposto dava conta de que os amantes, que costumavam se encontrar na escadaria do edifício, na altura do terceiro andar, não poderiam o fazer naquele momento dado que repentinamente apareceu outro colega por ali (situação que teve de ser administrada e seguida de uma mensagem de 'abort mission' ou algo que o valha).


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É bem sabido que esse tipo de atitude vai ocasionar muito mais galhofa e potencial de reversão do que uma eventual solidariedade. A opinião pública tem tendências variadas nesse caso - com destaque para a solidariedade com o apaixonado enganado (pacote básico e clássico), justificação heroicizante para o traidor(a) em alguns casos (pacote advanced, em especial se a amante for mulher e o caráter do companheiro for de tino duvidoso ou visivelmente desprezível), torcida eventual para o neo-casal, e mesmo condenação do terceiro elemento (por vezes o papo furado de que esse apenas está aproveitando uma chance - como se não tivesse qualquer relação factível com a outra pessoa enquanto alguém que está deliberadamente enganando outrem e fosse uma espécie de inimputável moral, no caso - já não cola como se em uma peça de Nelson Rodrigues).


Agora uma coisa é certa: o gambling arriscado com essas posições neutras-idealizadas-iniciais é tremendo no instante em que há dois fatores em jogo: pessoal não costuma tolerar bem a transição de vítima/enganado para alguém proativo quando não envolva reações novelísticas (ex: "dar o troco"), e diga respeito a atividades policialescas que incluem uma nem um pouco saudável bisbilhotice em celular alheio. O traído-vítima vira neurótico, se torna instantâneo vilão e - levado em conta o fator meio caótico da internet brasileira em extrair piada de tudo (mormente com a situação típica de 'corno') - as chances eram imensas para que o brado kamikaze do marido enganado caísse na vala comum da anedota com ele sendo o bobo da corte ou a atração do picadeiro. Foi o que ocorreu.


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Pergunto se não foi igualmente o caso tanto de querer de alguma forma prejudicar os amantes, munido de raiva e desolação (quem nunca?) tanto quanto um fator já inerente da vida cotidiana, que é a pessoa acreditar que qualquer coisa que tem em mãos possa ser algum tipo de conteúdo que é publicizado como forma de porta para vantagens e mesmo como espécie de obrigação. Como se não pudesse mais existir histórias privadas.


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(Lembrei rapidamente do "Breve Romance de Sonho" de Arthur Schnitzler, vertido para o cinema no último suspiro de Stanley Kubrick, que é um dos meus filmes prediletos da vida, "De olhos bem fechados". Não pretendo resumir toda a experiência de livro e filme de modo galhofeiro aqui, mas é preciso dizer que uma mera possibilidade de serem traídos faz os personagens enlouquecerem, perdidos em conjecturas com um alto nível de octanagem de absurdo. No filme, Nicole Kidman pira criando cenários dados como fatos somando peças para as quais sua imaginação completa vastos espaços indefinidos, após fumar um baseado enquanto discute a relação, e confessa ao marido que adoraria ter largado a família para ficar um um militar com quem mal trocou um olhar, certa vez, como forma de dar algum tipo de contra-ataque antecipado às supostas cagadas dele. Cruise se embreta em uma jornada de 24h malucas em Nova Iorque para tentar remediar de algum modo sua condição de corno hipotético usando métodos antigos como amigos, putas e convites para festinhas-barbada. É uma -hoje em dia- estranha crise vivida no modo analógico).


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Há (há?) um paralelo meio disforme aqui, no instante em que a pressa para se ter alguma opinião e/ou para ter algum conteúdo publicável não é exatamente - ou somente - respectiva a se tentar algum tipo de ganho imediato, nem é da ordem do "querer aparecer" antiquado (tal e qual velhos yelling at clouds ainda referem as 'coisas da internet'), mas é uma espécie de obrigação ou dívida que se assume.


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Você já viu alguma notícia ou esteve envolvido em alguma situação onde a primeira coisa subsequente que pensou foi na forma de expor, problematizar, exibir, 'postar' isso? (Escrever em um blog - né - vai saber?).


Você já quebrou a cabeça imaginando quase subsequentemente ao fato a forma que isso ia ser narrado? Ou que teria que ser?


Somos os únicos seres da terra que 'contam histórias' - e fazem promessas (Nietzsche). Mas não creio que deveria ser essa a pegada.


Enfim: tudo satura. Coisas importantes, banais, cruciais, inusitadas, informações, estudos, reflexões, fofocas. Tudo parece sugado pelo imenso vórtice das 'coisas que saturam'. Uma massa compacta, da mesma cor. Que passa na nossa frente. Ali, passou. O corno, o genocídio, o golaço (o do Corinthians contra o Grêmio, ontem, foi, infelizmente). O gigantesco bloco de 'coisas que saturam'.


UM FILME: se nunca viu "De olhos bem fechados" (1999) veja. Mas o filme que indico essa semana é "Meu nome é Maria" de Jessica Palud, 2024, que conta a triste história da atriz Maria Schneider e a espiral de depressão que se seguiu após ela participar do infame "Último Tango em Paris" de Bernardo Bertoluci e especialmente marcante por uma cena de violência sexual enxertada de última hora no roteiro por Bertolucci e Marlon Brando sem o conhecimento da atriz (a história é célebre, mas talvez você não saiba maiores detalhes). Uma cena que causou dor, desolação e, acredite, mudou para sempre - e para pior - sua carreira e sua vida.


UM DISCO: gosto bastante da banda Menores Atos e seu indie rock com clara inspiração em algo como "os emos cresceram e agora falam de dores, problemas e relacionamentos reais, ora vejam". É uma barulheira que ganha letras que volta e meia acertam o alvo (embora nem sempre e tudo bem). Passei a semana ouvindo o último trabalho, "Fim do Mundo", muito parecido com "Lapso", de 2018, que me fez reparar na banda pela primeira vez.


UM LIVRO: aqui é um espaço para literatura, com a qual estou há um tempinho em dívida, mas vai esse daqui que estou estudando e foi referido ali em cima: "Capitalismo Desejo & Política. Deleuze e Guattari leem Marx", de Rodrigo Guerón, pela Nau Editora. Didática e abrangência impressionantes.

  • Foto do escritor: Gabriel
    Gabriel
  • 6 de jun.
  • 5 min de leitura

Tive que fazer um jejum de 12 horas para uns exames de sangue. Easy, sem frescura, mas ando em dias que chegar em casa e comer/beber algo é quase um anestésico - e um misto de Jardim do Éden com missão cumprida. Tinha um exame de urina para fazer também, o que obriga o cara a andar até o laboratório com um potinho plástico repleto de xixi. Coisas.


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Tem poucas dicas no mundo de hoje que o cara pode dar sem aquele ar de quem está vaticinando algo e/ou querendo lograr em cima de alguma lição de moral mequetrefe disfarçada de conselho ou direcionamento coach, e uma delas é: ô, você. Mormente você, que já, passou dos 40: bora ver ao menos um médico(a) por ano que lhe passe uma requisição para uma bateria de examezinhos de sangue aí, ao menos aquelas seis ou quatorze coisas que é bom dar uma olhadinha e que têm ligação direta com nosso cotidiano e a vida da qual todo mundo reclama? Colesterol (o bom, o ruim, a média entre os dois - anos fazendo isso e nunca decoro qual é o quê), Glicose, Triglicerídeos. Vitaminas ("D" tá todo mundo em falta, relaxa). Homens: PSA e as paradas relativas à próstata, essas coisas. Umas horas programadas de jejum na semana, um potinho. É mais rápido que parece - e em alguns laboratórios ganha lanche depois.


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Hoje tinha lanche. Um bolo bem suave e molhadinho, que evocava algo como chocolate e passas ao rum. Tinha café em variações sortidas, mas daquelas máquinas horrorosas lá, então passei.


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Tinha que fazer - como usualmente é - o recolhimento do xixi na primeira vez em que se urina de manhã (desprezando o primeiro jato, higienizando a área, praxe). Mirando no potinho. O problema é que eu senti vontade cerca de uma hora antes, algo como 6h da manhã, e pulei da cama e fui reto para o banheiro. Daí pelas 7h e pouco não foi o primeiríssimo e talvez não tenha valor de análise tão útil. Fraudei o teste? Tipo Zendaya drogada na série? Tipo jogadores que tentam arranjar o xixi de outros no anti-dopping?


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Segundo o Google deveria haver uma carência de ao menos duas horas sem urinar. É. Fraude. Anula, pelo VAR.


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Não olhe o Google nem muito menos as perguntas e respostas sugeridas após a primeira pesquisa - que você não deveria ter feito - sobre exames e sintomas (isso é mais difícil do que 12 horas de jejum e caminhar 6 quadras segurando um saco plástico com o potinho do exame de urina. É uma tentação muito grande).


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A satisfação que dá quando o resultado dos exames é satisfatória é bastante inebriante para muita gente. Para mim é. É como o resultado de uma prova onde você foi muito bem. É uma boa notícia pela qual você torcia. Mas também é algo que gera um certo vazio dado que basicamente, é um laudo te dizendo que todos seus problemas seguem os mesmos em todos os outros setores da vida, e aquilo que era para estar normal está normal. Ou seja, a 'boa notícia' é que você não ganhou na loteria, mas, veja bem: não está devendo nada na praça, idem. Pode continuar, aí, seja lá o que você estava fazendo. Nos vemos em alguns meses - e dessa vez veja se urine conforme o procedimento, por obséquio.


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Queria mais daquele bolinho, mas para tomar com um café bom, tipo o passado em casa. Tinha paçoquinhas-rolha em um pote, também. Pensei em pegar uma para levar para casa. Admito: pensei em pegar algumas e por na mochila. Elas e um pacote de Club Social Integral dentre os vários disponíveis. Não o fiz. Peguei uma fatia do bolinho e mais um resto de fatia que sobrou de um corte a faca mal feito, o que computa algo como 1,3 fatias para mim. E deu. Não exageremos (Triglicerídeos, Glicose).


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É exatamente isso, no fim: ando tão, mas tão cheio de problemas relativos a prazos e a volume de trabalho que qualquer resultado alterado ou ruim de um exame de rotina seria um desastre. Estamos como no 'capitalismo': correndo pelo mínimo. Do tipo: ah, que bom, meus leucócitos e bastonetes estão na casa dos milhões usuais. Minha tireoide está ok. Agora é só se preocupar com as outras onze coisas que estão me afligindo do corpo para fora. Imagina se sai uma glicose errada, um colesterol (o ruim) alto? É mais um problema, isso? É sério, mesmo? Descobrir uma coisa séria em um exame que se presta a eventualmente descobrir coisas sérias? Era o que me faltava.


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Os exames laboratoriais hoje em dia facilitam muito a vida dos ansiosos porque costumam ser divulgados com índices bem didáticos onde aparece ali o que seria um padrão 'regular', um 'bom', um 'ótimo' e/ou o patamar onde há alguma coisa bem errada e o cara já pode acionar o serviço funerário de sua confiança. Na maioria da minha vida fui um aluno que se pode chamar de 'bom', com vários momentos-pico de algo como 'excelente', um grande lago de atuações 'na média' e algumas derrapagens que causaram acidentes grosseiros aqui e ali. Geralmente em relação às matérias que eu gostava, na escola, ou quando me direcionei para as áreas que eu queria atuar e pesquisar com mais afinco - da pós-graduação ao doutorado - posso sem modéstia dizer que fui positivamente fora da curva. Desde que completei 40 anos coloquei esse tipo de exame e consulta médica na rotina, tenho sido um CDF na maioria das 'disciplinas' dos exames. Sempre tomo pau na questão de algumas vitaminas que estão abaixo (mas que não são aquelas que ocasionam nada de muito grave), mas geralmente tiro 'notas altas'. É bacana acompanhar e ver seus índices não apenas na faixa do normal/esperado como dentro ou bem próximos das marcações do que seria formidável. O dia de receber os resultados geral alguns minutos de conferência que são bem excitantes.


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Tenho que encarar, as usual, cerca de 5 horas de estrada ainda hoje. E tenho coisas para fazer, dessas que não param para me aplaudir se meu colesterol e minha glicose estiverem em níveis supimpa. E do tipo que seguem ali enquanto eu escrevo sobre minha manhã, em blog.


Tipo aquela frase atribuída ao John Lennon sobre a vida ser o que acontece quando você faz outros planos. Os problemas seguem ali enquanto meu sangue em tubinhos periga atestar que nesse campo está tudo tranquilo.


PS: nem me invente de.


UM FILME: eu não gostei muito de "Pecadores", de Ryan Coogler. As pessoas elogiando demais, e comparações com "Um drink no inferno" pareciam ser fruto de falta de imaginação colonizada do 'cinéfilo' que não sabe nada muito além de "Tarantino" e coisas assim. Adivinhe: achei a comparação não só válida como o filme (com Tarantino na equipe, mas de Robert Rodriguez) bem mais divertido. A questão do blues sulista e do protagonismo negro se dilui em um roteiro fraco e um miolo de "ação" meio sonífero. Há momentos bons. A cena pós-créditos (não está aqui quem deu o spoiler: com Buddy Guy) eu sinceramente achei melhor que todo o filme.


UM DISCO: e essa banda Turnstile que até anteontem eu nem sabia o que era e já considero muito e mal e mal saiu esse disco novo "Never Enough" e eu escuto toda hora, hein, hein?


UM LIVRO: já que não me agradei muito de "Pecadores" - e que você talvez tenha entrado no hype - vou recordar aqui de uma obra muitíssimo interessante que procura dissecar a representatividade negra e sua simbologia (e sua visão "padrão") nos filmes de terror, chamada "Horror Noire", de Robin R. M. Coleman. Do já manjado personagem de "A noite dos mortos vivos" passando por insights sobre várias experiências e referenciais, o ensaio/pesquisa é um barato e discute questão racial de uma forma pouco usual (mas poderosa) em seu ineditismo.


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