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Foto do escritor: GabrielGabriel





Um brisa fresca soprava e o mar azul explodia em uma única onda - que beijava a costa com força e barulho - enquanto eu olhava pela janela quase na borda do trecho de estrada sem saída: assim foi o dia em que eu almocei em um restaurante ridículo de cool em Malibu, Califórnia. Tem foto para ilustrar a cena (e comprovar) e ela está postada logo abaixo (e que, como todas fotos do post, foram tiradas por mim e fazem parte de meu arquivo pessoal).


Vínhamos do norte, pela Highway 1 que volta a ganhar esse nome após alguns afastamentos da costa e uma mistura, pelas tantas, com a US 101 que foi nosso chão desde San Luis Obispo, no centro do estado, após um dia de mais estrada, desde San Francisco.


Antes do monstro - L.A. - uma parada na icônica Malibu (já nas cercanias do condado) para abastecer, comer algo e refletir sobre o que iria acontecer em alguns quilômetros.


***


Sempre tive uma opinião que fora quase que literalmente (e me refiro às mesmas palavras basicamente na mesma ordem) exibida no incrível documentário "Los Angeles plays itself": Los Angeles é possivelmente a cidade mais documentada do mundo, embora você talvez não saiba. É possível quase intuir quando um filme é, por exemplo, ambientado em Paris ou em Nova Iorque sem jamais ter estado nessas cidades (ou sem imagens da torre ou da estátua que você sabe quais são), pela carga extrema de símbolos culturais e imagéticos: uma moça tentando graciosamente se comunicar com garçons de bistrôs (e falhando), de boina de tricô, andando de bicicleta por ruas charmosas? Paris. Outra, apressada entre bueiros fumegantes engolindo algo quase sem mastigar e equilibrando o café enquanto fala ao celular e atravessa a rua em meio a centenas de pessoas e carros? Nova Iorque - no máximo das concessões, Chicago.





Los Angeles é tão múltipla e tão alheia ao cenário usual que habita os signos da "Califórnia" metafórica (como palmeiras onipresentes - isso, bem: realmente há, bom dizer - e as praias com garotas andando de patins em biquinis coloridos), e é tão assustadoramente extensa no sentido horizontal, que parece infinita (em todas acepções da palavra). Não à toa o fascínio de tantos geógrafos, urbanistas e estudiosos críticos (como Edward Soja ou Mike Davis, por exemplo), para tomar a cidade como simbologia e como palco para digressões sobre espaço, tempo, lutas sociais, cultura e futuro. Naquele fantástico filme de Jim Jarmusch sobre vampiros (assunto da moda hoje em dia), o personagem de Tom Hiddleston chama os humanos de "zumbis" e agracia Los Angeles com o título de "capital dos zumbis", numa alusão à perdição humano-capitalista-egocêntrica e deprimente de nossa vida mortal. Ver Los Angeles iluminada à noite, de algum ponto alto, como os hills que imprensam Hollywood, é ver ao mesmo tempo o deserto, suas miragens e a esfinge (não o monumento - e seu nariz caído - mas a da mitologia, que lhe impele a ser decifrada ou a você, por ela, ser devorado).


Há muita coisa que você já viu por aí que é Los Angeles: por vezes um centro urbano frio e tecnocrático; por vezes hotéis de caráter tropical entupidos de celebridades bêbadas e cheiradas; por vezes, periferias miseráveis repletas, por vezes, de população negra, por outras, de população hispânica; bairros que emulam comércio e camaradagem de cidades pequenas; bicho grilagem e casas de praia que parecem daquele seu tio tido por esquisito na família, que foi morar na praia e viver das coisas que a natureza, etc.; outras, palacetes herméticos que gritam old money e são habitados sazonalmente por pessoas que ditam rumos de economias e guerras. O melhor cachorro quente que você já comeu, no lugar mais simples (beirando o insalubre). O - poucas quadras ao lado - restaurante mais caro e badalado do momento, servindo aperitivos a preço de banquetes. Lugares, quadras, ruas, bares inteiramente étnicos do tipo que você é malvisto se não for filipino, coreano, guatemalteco, armênio.


A esfinge é mutante e indecifrável. Invariavelmente sempre ganha o jogo e nos devora.


***


Los Angeles me influencia desde minha tenra idade. Sou fã de skate (Os Z-Boys de Dogtown, especialmente e, sim, ainda), de surfe (a influência do filme "Caçadores de Emoção" na minha vida é inverbalizável), dos Beach Boys, do glamour hollywoodiano. Filmes antigos que meu pai me incentivava a ver e me amadureceram antecipadamente ("Crepúsculo dos Deuses", por todos). Filmes "novos" (sobre tudo e todos: "Boyz n' the hood").


Depois, na pré-adolescência e na adolescência, em si, veio o punk-hardcore do NOFX ("Punk in Drublic", divisor) e do Bad Religion, quase ao mesmo tempo que o gangsta rap de Dre. (O "Chronic" resume absolutamente tudo), Snoop, Tupac. Os Chili Peppers e Jack Nicholson sempre apareciam nas quadras e/ou usando regatas dos Lakers e parecia ser correto escolher torcer para essa equipe dentre as transmissões iniciais dos jogos da liga de basquete americana que a Bandeirantes começava a exibir às sextas feiras, por mais que só se falasse nos Bulls de Michael Jordan. Havia inclusive um cara que era tratado por "Mágico" e outro de sobrenome muçulmano que usava óculos para jogar e parecia ter três metros - o time era esse, não adianta.


Mais tarde a literatura e John Fante narrando sempre a mesma pessoa, ainda que sempre diferente, vivendo numa Los Angeles que parecia ser a de agora, e cujas agruras pareciam ser as minhas, com muitas décadas e algumas milhares de milhas de diferença. Os policiais e as intrigas daquela cidade que parece sempre guardar algum segredo. O sol que é constante mas parece sempre um intruso. A morte da Dália Negra e John Lennon - a essa altura um símbolo novaiorquino de 'licença' - enlouquecendo na noite do Rainbow, pareciam habitar o mesmo espaço-tempo. Os tumultos quando os assassinos de Rodney King foram absolvidos. A "Estrada Perdida" e "Mulholland Drive", de David Lynch (sempre David Lynch). Tarantino e sua coleção incontável de vagabundos. A efervescência (para quem nem entendia o significado cultural desse termo, mas podia senti-lo nos olhos).


E havia o mar. Não qualquer mar. O Oceano Pacífico, o mar oposto a tudo o que eu conhecia de mar. Quase uma promessa, um mito. E a marra atinente ao espírito litorâneo. Não me imagino idealizando e fantasiando com qualquer lugar longe de algum trecho de mar.


***


Conheci Los Angeles com uma devoção até meio ridícula, se vista friamente.





Uma primeira conclusão feliz é que a demora para visitá-la valeu à pena: uma ida (impossível sob vários aspectos) quando era mais novo me apanharia com menos referências - embora eu devore tudo sobre a cidade há mais tempo que você suporia e que seria recomendável, garanto. Não sou refratário aos Estados Unidos, e igualmente não sou um entusiasta. Quase sempre não tinha dinheiro para qualquer tipo de aventura como essa. Quando passei a ter, já na vida adulta, agarrado pela minha própria unha, por vezes não tinha oportunidades. Quando se aliaram algumas vezes dinheiro e oportunidades, priorizei outros lugares. Os "Estados Unidos" são uma coisa na minha afetividade. A Califórnia, e Los Angeles, outra.






Ao contrário e incompatível com o universo de piadas e ironias meio enfadonhas que sugerem acompanhar um tragédia em algum país hegemônico com um ar de satisfação meio estúpido e insolente, vejo com tristeza parte da cidade ser consumida nesse início de janeiro por uma combinação de ventos secos alucinantes com queimadas que promove verdadeiros furacões de fogo. Lógico: quem não ri frouxo e/ou solta o afamado arzinho pelo nariz ao saber que celebridades que primam por reacionarismo burguês e discursos de ódio branco e heteronormativo (além de negacionistas climáticos) se deram mal, está meio morto por dentro. Mas fingir que está tudo bem um negócio desses (por ser nos Estados Unidos) é um tipo de performance de cinismo (e vida consumida pela dinâmica de replies e memes) que está contaminando demais as redes sociais, e uma prática da qual quero total distância.


A sensação é um misto estranho de pena com um certo alívio por ter vivido e visto com os próprios olhos tanta coisa. É o exato misto de saber que o fogo se alastrou por Westwood e Brentwood, comunidades ultra-bilionárias onde, não muito longe, se localiza o The Getty, um museu-cidade-espetáculo cria de uma fundação de outro desses hecta-trilhardários querendo possivelmente purgar a culpa inata ou ser visto pelas letras douradas da história oficial como uma espécie de herói. Whatever: monumento tanto do absurdo da desigualdade social quanto de tudo o que o dinheiro pode fazer em termos de bom gosto, o lugar é apaixonantemente lindo. É lindo no nível que dá dor de cabeça. E enxerga a esfinge de cima de um modo até tranquilizante, quase de igual para igual.





UM DISCO: não é bem disco o que indicarei hoje, mas uma proposta (lá vem). Uma tradução contemporânea incontornável do espírito frenético, perturbado, jovial e meio ensimesmado e egocêntrico da cidade é inegavelmente representada pelos Red Hot Chili Peppers. Mas deixarei de dica, na verdade, uma série de vídeos de Youtube com os trechos de guitarra de John Frusciante isolados e solitários. A qualidade técnica de Frusciante despida do resto da banda se revela como falha - meio tosca, até em vários momentos - e áspera, mas descasca outra camada sublime e linda de suas ideias, que parecem trilhas sonoras perfeitas para o que se pode encontrar sob o sol daquele trecho de mapa. "Scar Tissue" eu jamais conseguirei a partir de agora ouvir se não assim


UM LIVRO: leia "Pergunte ao Pó" de John Fante. É, é só isso. Simples assim. E se puder dizer mais uma mísera coisinha: pelo amor de deus, fuja daquele filme de 2006. Não assista sob nenhuma hipótese.


UM FILME: "Under the Silver Lake" é um filme longo, cansativo, por vezes pedante e, por outras, como medo de se levar até às últimas consequências (e assim debochar de algumas das próprias incongruências). Se após isso sobrou ainda em você alguma vontade de assistir, saiba que ali se encontra um estudo/tentativa de mapear uma Los Angeles ainda não tão escrutinada, que é a do pós-hipsterismo da região de Silver Lake/Echo Park pós-anos 2010. É quase uma crônica sobre a cidade, com muita verdade entre algumas doses de bobagem meio além da conta.

Foto do escritor: GabrielGabriel



Dia desses o perfil Dr. Bluesky (ex-, convenientemente, Dr. Twitter) fez a seguinte postagem:



Concordei de imediato e repostei na mesma rede, comentando que esse filme foi uma das maiores fontes de bobo-alegrismo cientifico jamais visto, dado que propagava com suposto teor "científico" e "pós-moderno" baboseiras tilelê como aquelas que enganaram boa parte das dondocas desocupadas que se pretendiam antenadas e uma multidão de cabeças-fraca esperando para caírem em golpes variados, tal coisas como "O Segredo" e outras supostas auto-ajudas de bolso que na verdade eram soluções mágicas pocket que ofereciam a pior versão da ideia de reencantamento do mundo.


Me surpreendeu o fato de que muita gente não tinha (sequer) escutado falar da obra e pude perceber um choque geracional interessante nessa era em que a suscetibilidade - quando não a vontade, expressa, literal - para ser enganado por baboseiras acomete grande parte da população viva do ocidente.


O período era 2005/2006 e eu tinha acabado uma pós-graduação e estava no primeiro ano do meu Mestrado.


Ainda sob a influência de uma vertente que se erigiu com força nos anos 70 e tomou corpo definitivo na academia nos anos 80 e 90, a interdisciplinaridade era a bola da vez e, em um programa fundamentado no Direito, éramos influenciados a pensar as ciências criminais sob óticas distintas (o que é ótimo), como a história, a antropologia, a filosofia a (sedutora) psicanálise entre outras vertentes. Li poucos textos jurídicos nesse período inicial, me abrindo muito mais para a filosofia e a psicologia analítica - chegando às raias de comprar não um, mas dois livros sobre o pensamento de Ilya Prigogine a respeito de caos e termodinâmica (eu sei, eu sei).


Tudo que se conectasse com áreas do conhecimento que pareciam estranhas (e eram) ao pensamento e à ordem jurídicas nos era atraente e divertido e foi um grande período incubador e de testes de 'foguetes' para muitos ali.


(Claro: não tínhamos tanto cacife, moral, bagagem e talvez vontade de contradizer nossos mestres em relação a algumas curvas epistemológicas bastante esquisitas de gurus como Fritjof Capra, nem de desdizer algumas tolices evidentemente charlatônicas que já se exibiam frondosas nos textos do, então ainda incensado, Boaventura de Souza Santos - figura felizmente em vários sentidos obscurecida, hoje).


Foi no contexto dessa recepção máxima de abertura da mente e da alma no contexto da pós (em 2005) que um filme/documentário do ano anterior, 2004, começou a ser comentado pela comunidade acadêmica: "What the bleep * do we know?" (assim, com um 'bleep' para não escrever 'fuck' - e que em português ganhou um título ainda mais apelativo, mas talvez não menos bizarro: "Quem somos nós?"). Dirigido por William Arntz, Mark Vicente e Betsy Chasse, "Quem somos nós" era um compilado paupérrimo, mas muito sagaz no que diz para com uma série de touchets supostamente científicos em crenças e estamentos comuns de nossa sabedoria usual, tentando provar coisas absurdas como uma ingerência quase mística/direta/super-heroística do "pensamento positivo" em nossa vida (a partir de um experimento meio ridículo e total questionável com palavras escritas em papel e moléculas de água), além de demonstrar que átomos e eletricidade não fazem a gente verdadeiramente "encostar" em nada, e outras simplificações mixurucas quetais. Mas a grande tônica do filme era a de que absolutamente tudo está conectado e pode (em tese - capenga) ser explicado através daquela que desde os anos 90 se popularizara como a grande não-explicação de absolutamente tudo e nada do mundo: a física quântica.


Olhando com um pouco de distância (e era visível a baboseira disso tudo, embora não possa negar que muito do que vi no DVD-R do filme que rodava emprestado por e para todo mundo fez algum tipo de "sentido" para mim, um tanto deslumbrado, à época) se percebe claramente que não há basicamente nenhuma diferença entre as tolices ali propagadas e essa obra fílmica, escrita e ponte de teses/cultos/palestras chamada "O Segredo" que também fez um sucesso estrondoso e puxou toda uma linha de uma nova auto ajuda com pitadas de misticismo patético, fora esse suposto ar mais cientificista que, na realidade torcia total os conceitos científicos para que coubesse dentro da gaveta energético-espiritual bobinha que vendia (a explicação que pessoas se apaixonam umas pelas outras pelo poder da atração "quântica" é uma das coisas mais deprimentemente ruins que já foram em algum momento levadas a sério, no século).


Passado um pouco de tempo, eu e alguns colegas começamos a fazer alguns desvios ligeiros de rota de algumas das pataquadas pós-modernas paga-vale (embora na própria dissertação, ano seguinte, eu segui ancorado a algumas delas), primeiro de forma um tanto como quem foge de um sujeito chatonildo no corredor, e depois, já como algum estofo, declarando guerra aberta, como quem se liberta dos grilhões ou algo que o valha. Era muito estranho seguir referenciando um grupo de autores e textos que parecia repetir como papagaios que a ciência moderna empatou, basicamente, em termos de conquistas porque nos rendeu coisas como a penicilina e também coisas, veja você, como a bomba atômica. Quites. Zero a zero. "Bom mesmo é esse xamã aqui e suas ervas medicinais": e seguia-se uma apropriação totalmente desrespeitosa e simplista da sabedoria xamânica somada a uma leitura completamente desonesta de algum parâmetro científico, conseguindo a proeza de desrespeitar dois saberes importantes na tentativa de homenageá-los (nada mais branco, ocidental - e hétero - do que purgar a culpa procurando não recepcionar uma outra linguagem, mas absorvê-la, capitalisticamente, de forma disfarçadamente alegre ou altruísta).


Pensei nisso porque não se passa uma semana, quiçá um dia, sem aludir a alguma consequência tenebrosa de algum tipo de picaretagem frente a quem está plenamente compatível ou pouco prevenido (se não com vontade expressa de contato) para ser enganado: bets miraculosas, tigrinho, limão curando câncer, conspirações secretas sobre "o que jamais lhe contaram". Não parece ser simplesmente resolúvel, o problema, em uma questão de orientação política reacionária, visão de mundo tacanha e idade geracional. Pessoas sedentas por aberturas de realidade que coloram de alguma forma sua realidade, ofereçam algum tipo de porta para qualquer outra coisa e inundem um mundo sem graça de corantes, mesmo que tóxicos (tal e qual um glitter mental) existem em todos os meios e camadas de instrução.


Longe de dizer que um filme esquecido e esquecível desses condicionou o fazer científico no planeta, é possível dizer que um atraso, mesmo que ínfimo no progresso do pensamento causado por um hype momentâneo de um engodo um pouco mais bem entalado do que os engodos usuais é perigoso: basta ver a indiferença total desse tipo de ideia e filme para coisas que eram absolutamente ridicularizadas oferecendo o mesmo núcleo e recheio.


Não faz muito tempo que se discutia e escrevia a sério no Brasil as pataquadas do Boaventura - que errava epicamente quando errava, e quando acertava, propagava em realidade óbvios ululantes (lembrando que é um Europeu nos ensinando sobre 'favelas', um português nos ensinando sobre decolonialidade e saberes ancestrais, um europeu nos ensinando sobre valorizar a cultura latina e um homem de conduta machista abjeta nos ensinando sobre a feminilidade dos saberes 'marginais' e a feminização de uma ciência da nova era).


Se você separar apenas a última fatia do parágrafo acima vai encontrar em muitas áreas, em especial àquelas afeitas às humanidades, hoje, um sem número de gente assim. Seguem firme, enganando.


Nosso mundo fora prometido como uma expansão sem limites, fronteiras e amarras: fomos cair, de fato, em um mundo tão careta e pobre que a propensão a qualquer venda de terreno na lua do ponto de vista epistemológico e afetivo é um risco tremendo.


Dia desses escrevi um posfácio para o vindouro livro de uma ex-orientanda (já escrevi o prefácio do livro anterior dela, aqui é acompanhamento/serviço completo!): lembrei de Robert Pirsig e seu "Zen and the Art of Motorcycle Maintenance": o rigor metodológico estrito não deveria ser coisa de cientistas antiquados, alienados e reacionários. É, sim, coisa de apaixonados: o verdadeiro cientista é rigoroso e sóbrio, não porque quer construir verdades absolutas, mas porque quer evoluir, construir pontes sólidas e permitir aos próximos que refaçam - e quiçá desmintam - seus passos. O resto é papagaiada e achismo (fontes de outra ordem).


Como a breguice suprema da new age nunca vai embora, por deus?



UM LIVRO: já que fora citado acima, 'Zen e a arte de consertar motocicletas' é um livro recomendável, porém dúbio e, por vezes, maçante até. Relata em tons biográficos um tanto quanto "soltos" a própria busca do autor, Robert M. Pirsig por um meta diálogo científico-acadêmico, narrando uma jornada que parece ela própria uma imensa palestra (ou conversa) sobre os limites e propósitos do estudo e da dedicação técnica e estudiosa. Fala tanto de isolamento, esquizofrenia e problemas de relacionamento quanto discursa imponentemente de forma interessante sobre epistemologia e sobre o que pensar e esperar das ciências (e de seus protagonistas).


UM DISCO: por mais que faça quase 30 anos da morte do genial Chico Science, há pessoas que associam exclusivamente a ele e aos (lamentavelmente apenas) dois trabalhos à frente da Nação Zumbi a trajetória da banda, que por todo esse tempo se manteve ativa e dona de algumas das melhores apresentações musicais que é possível ver em nosso país. Voltando a escutar o disco de 2014, intitulado apenas "Nação Zumbi", é possível ter um testemunho da distância de duas décadas para o primeiro trabalho em um álbum absolutamente ímpar que briga de foice com os discos na presença de Chico como os melhores trabalhos deles. É desse disco que saem petardos como "Foi de amor", "Bala perdida", a adocicada "A melhor hora da praia" e a obviamente reverenciada "Um sonho" (fazer o que, se é uma das canções mais incríveis já lançadas e um dos momentos mais sublimes do gênio da guitarra, Lúcio Maia?)


UM FILME: já havia escutado falar, mas foi a partir de uma dica - do Caio Maximino - no Viracasacas que eu anotei a ideia de assistir "Possessão" (1981, Andrzej Żuławski). Um filme de "terror" (você vai entender as aspas) absolutamente inusual e incrível, onde Isabelle Adani e Sam Neil estão em uma espécie de laboratório de atuação a céu aberto, vivenciando as agruras de um casal com um comportamento errático e absurdo da esposa após ela suscitar o divórcio que parece (e só parece) ser ocasionado por um romance vivido por ela com outro homem. Um paralelo incrível e escancarado com o cenário da trama, que é a Alemanha e a Berlim divididas cogentemente, (coisas que são difíceis de acreditar até hoje). Esquisitíssimo, do tipo que não é um prato que você pensa em encarar o trânsito até o recinto do outro lado da cidade para degustar. Talvez você nunca o peça de novo. Mas: sensações.

Foto do escritor: GabrielGabriel

Atualizado: 4 de jan.




Na reta de praia frequentada pela minha família desde que me conheço por gente (um caminho que ia desde a antiga casa - e atual apartamento - dos meus pais, cruzando pela da minha vó, já destruída), passávamos por um antigo farol que eu ainda peguei funcionando quando pequeno, hoje desativado em prol de um maior, alguns quilômetros ao norte (e já são três coisas demolidas/descontinuadas no espaço de um parágrafo, veja você o quanto o tempo e o capital são implacáveis).


O farol, hoje mal e mal percebido por quem passa pela praça onde ele se edifica, foi transformado por um tempo em um espécie de luminária tristonha, cabide de alguns enfeites mequetrefes de natal do município, e agora só está ali, parado, como um monumento sem sentido.


Faróis são românticos, em todos sentidos do termo, em especial ao evocar uma espécie de nostalgia de um mundo que só conhecemos nas sugestões e imagens ficcionais.


Lembro de Jorge Drexler, usando uma ideia singela e apelativa, mas certeira, apontando que (assim como o sistema de funcionamento e funcionalidade dos faróis) para nos encontrarmos, temos de nos perder: as luzes são todas iguais. O que importa é o código inscrito no ciclo de emissões. Um farol indica algo nos seus segundos de escuridão, não no facho de luz.


Por vezes não queremos encontrar é nada. Por vezes queremos fugir do anúncio, do lugar, da região, de alguém.


Esse texto é sobre medo. E fuga.


*****


Éramos amigos, naquele tipo peculiar de relação que existia e só poderia existir num tempo (hoje inimaginável) sem computadores, celulares, internet ou redes sociais: as crianças de cidades, regiões, colégios e vidas apartadas que dividiam costumeiramente a mesma zona durante os períodos de veraneio. Todo um ecossistema de comunhões sazonais impensável na era da hiperinformação e da ultra conexão. Haviam pessoas em nossas vidas exclusivamente 'de temporada', como algumas frutas (nem isso mais, hoje com a modificação genética que mais parece uma compulsão impaciente de consumidores mimados perigosamente).


Ele, com um ano a mais que eu, seu irmão, com um a menos, e toda uma patota que era composta por meus primos e alguns outros amigos (e amigos de amigos) dessa modalidade temporária. Fazíamos coisas de criança, de pré-adolescentes e de adolescentes que éramos e fomos: jogávamos bola (em especial "três dentro/três fora" - a modalidade alternativa de futebol onde é estranhamente prazeroso ser goleiro), pegávamos jacaré nas ondas cavadas de dias de chuva, corríamos como loucos pela orla, comíamos picolés - que o tempo sugeria serem melhores e mais saborosos naquela época.


Um dia, uma notícia: a família do rapaz (que ocupa um apartamento térreo contíguo a onde minha avó veraneava) não viria esse ano de sua cidade interiorana no centro do estado para a praia. O rapaz, o mais velho, foi acometido por algo até hoje por mim desconhecido, mas, de fato, alguma doença gravíssima. A previsão era de que não sobreviveria. Como sói naquele tempo, informações eram escassas (as mães não tinham Facebook para trocar memes bregas nem para postar fotos não autorizadas pelos filhos, muito menos grupos de whatsapp no estilo 'Amigos do Posto 82' ou algo que o valha). O que se sabia era que o abalo familiar era tamanho e a necessidade de cuidados do rapaz, idem. Hospital, UTI. Coma.


Em meados do ano seguinte, aquele esquema de engenharia social que conecta conhecidos de colegas de parentes distantes de vizinhos - ou algo assim - trouxe um fiapo de notícia: o rapaz havia, a muito custo, sobrevivido e a expectativa agora é que resistisse muito embora em um tipo de estado vegetativo. A família voltou a frequentar o apartamento no ano seguinte e a situação era justamente essa de transportar o rapaz de olhar perdido em uma cadeira de rodas a distâncias não muito fora do perímetro da varanda onde ele ficava "tomando sol" de forma não exatamente ativa.


Mais um ano, mais um verão, mais uma temporada da família abrindo as portas de correr da varanda e agora o rapaz - um tipo de milagre - já caminhava com dificuldade, falava, interagia e parecia vivo, agora oficialmente, mais uma vez. Como um personagem de ficção que teve a energia sugada por algum tipo de força maligna, ele parece ter envelhecido décadas em três anos. Os cabelos muito loiros agora estavam ralos e esbranquiçados. A pele, alva, agora parecia um couro opaco e flácido. A estatura notável já não intimidava nem admirava mais ninguém, uma vez que ele passou a ser dotado de uma fragilidade que se exibe indisfarçável a quem olha. Presa indefesa. Os olhos ficaram fundos e as sobrancelhas mais protuberantes, dado que sua magreza parece ter puxado a pele com força pela nuca, como que para ajustar ela mais ao osso craniano.


Via tudo isso, mas à distância.


Nunca mais passei por aquele trecho de rua. Simplesmente tenho medo de ser por ele avistado por um motivo que pode ser o mais bobo, mesquinho, infantil e quiçá egoísta do mundo: tenho comigo uma impressão que o fato incontornável de que minha vida seguiu, normal, o ofenderia. Mais: o iria agredir de alguma forma. Sinto culpa por ser uma pessoa que não derrapou até agora em curva nenhuma improvável tal alguma doença bizarra que parece uma punição randômica, como se me exibisse, afrontoso, em sua frente. Medo. Prefiro não. Fuga.


Volta e meia me dizem que não aparento ter a idade que tenho - de forma obviamente elogiosa. Ele jamais vai ouvir isso, uma vez que a menção clara seria oposta: quando por vezes passo (pelo outro lado da rua) penso que uma pessoa que não conhece a família certamente vê ele, a mãe e as tias como se fossem idosos (irmãos, talvez) conversando amenidades. Ele tem quase a minha idade. Repito que pode parecer estúpido e muito ridículo de minha parte isso tudo, e o simples aceno de um antigo rosto amistoso pode muito bem trazer conforto e memórias boas a alguém, mas tenho um pavor absoluto de pensar que minha altivez, meu viço ou simplesmente meu caminhar ritmado - normal - pode causar algum tipo de ofensa, ressentimento, angústia ou arrependimento (daqueles que sofremos pensando que tipo de escolha distinta talvez fizesse alguma diferença no desenrolar de tudo). Penso se meu sorriso o afrontaria, especialmente após passar pelo pequeno perímetro que se tornou quase todo seu universo e seguir adiante rumo a algum lugar. Um lugar. Qualquer lugar. Vida passando pela sua frente enquanto algum ponto do destino o multou sabe-se lá porque, de forma a condena-lo perenemente a abrir mão de (quase) tudo o que essa mesma vida poderia ser.


Será que ele sente alguma raiva das pessoas que passam, indo a lugares, numa própria simbologia quanto à vida que ele se acostumou a ver passar como um pagante, da plateia ou arquibancada barata e afastada do palco, o mais distante possível de algum protagonismo? Será que isso diz mais sobre mim do que sobre esse 'ele' hipotético que imagino completando as lacunas do que vejo em um corpo fragilizado em uma varanda? Estaria eu fantasiando - para a tragicidade - uma coisa que ele leva mais de boa do que aparenta?


Até quando vou fugir e terei interditado um lado da calçada de um trecho de rua? Devo cruzar essa barreira e romper essa neura? Estarei eu - há alguma possibilidade, enfim - certo, e devo seguir sendo uma espécie de memória interrompida, personagem de um filme bacana que nunca teve continuação, reboot, série revival da Netflix para não evidenciar ainda mais a desgraça dessa serenidade forçada onde ele foi arremessado pelas circunstâncias?


Até lá, sigo fugindo.



UM FILME: quero muito ver a nova versão do "Nosferatu" pela lente de Robert Eggers - até para apagar o gosto ruim que ficou com aquele "Homem do Norte" onde parece tudo no roteiro e na montagem apressado e sem acabamento (como se ele tivesse algo tipo um material de cinco horas e uma inteligência artificial mal calibrada fez cortes em cima da hora para a versão final ter duas). Do anterior, ora, ora, "O Farol", gostei demais. Porém recomendo mais do que fortemente que todos assistam - antes - "A Sombra do Vampiro" de E. Elias, Merhige, 2000, e sua genial premissa que cobre as filmagens do Nosferatu de F.W. Murneau (John Malkovich) mas imaginando que o ator Max Schreck (Willem Dafoe) seria de fato um vampiro. Magnífico é apelido.


UM DISCO: estou escutando "Todo me recuerda a vos", disco da banda argentina - radicada no México - Surfistas del Sistema (péssimo nome, mas, enfim). Sobre o Drexler (citado no inicio desse post com seu disco de 2006 cujo título evoca a metáfora do farol) um amigo me disse certa vez que a crise era tamanha que o melhor artista da MPB era uruguaio. A premissa parece válida: uma boa banda de pop rock BR atual é argentina (radicada no México). Se não vale por outro motivo, vale para você refletir sobre como figuras de linguagem em baladas românticas parecem diferentes em outra língua.


UM LIVRO: dia desses diante de mais uma improbabilíssima versão de 'Halellujah" de Leonard Cohen como se fosse uma canção religiosa tradicional (Péricles cantando em especial natalino de televisão), lembrei e dei uma folhada a esmo, sem compromisso, no "Energy of Slaves", do homem. Muita coisa ali, e mesmo algumas tentativas e exercícios meio pretenciosos e ruins. Mas muita coisa genial, idem, como sói. Poesia que não é meio provocativa me distrai fácil. Não reli todo, não lembro se há algum poema sobre faróis.



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